Quando Mário de Carvalho entrou para a Faculdade de Direito de Lisboa nos anos 60 estava longe de imaginar que um dia iria trocar a profissão de advogado pela de escritor. De origem alentejana, nasceu em Lisboa em 1944, cidade que serve de pano de fundo a tantas das suas histórias. Foi também aí que começou a escrever mais a sério, na década de 80. Lançou o primeiro livro, a coletânea Contos da Sétima Esfera, em 1981, quando os anos de combate ao regime já iam longe e o som das grades da prisão eram já uma memória distante, mas ainda viva.
Inspirado pelas tertúlias literárias do grupo dos “Quatro Elementos Editores” (animado pelo professor Fernando Guerreiro) e encorajado pelos amigos que lhe perguntavam constantemente quando é que saia o próximo livro, publicou um ano depois Casos do Beco das Sardinheiras e, em 1982, O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana, o seu romance de estreia. Desde então, nunca mais parou. Editou romances, novelas, contos, ensaios, teatro. Até escreveu para o cinema.
O seu último livro, Ronda das mil belas em frol, foi agora editado pela Porto Editora. É um conjunto de pequenos contos onde o sexo ocupa o papel central. É uma “ousadia” que Mário de Carvalho nunca tinha tido. Mas por que não? “Estava mesmo a pedi-las”, como nos disse o autor sobre o tema, durante uma entrevista no café do Cinema Ideal, no Chiado. Mas mais do uma coletânea de histórias que narram os encontros e desencontros amorosos de um narrador que não parece gostar nada de romantismos, Ronda das mil belas em frol é um retrato das relações entre homens e mulheres — dos seus percalços, dos espantos e incertezas. Da sua beleza.
Apesar da certeza com que escreve, hoje, aos 72 anos, e com dezenas de títulos publicados, Mário de Carvalho admite que nunca teve a ambição de ser escritor. Foi uma coisa que foi acontecendo. Tão simples quanto isso.
O Mário já lançou livros muito diferentes, sobre assuntos muito diferentes, mas nunca falou do sexo com esta abertura. Porque é que decidiu escrever algo como Ronda das mil belas em frol?
Penso que se chamava Edmund Hillary o primeiro homem que subiu ao Evereste. E quando lhe perguntaram porque é que fez aquilo, ele disse: “Porque está lá”. Portanto, neste caso, esta matéria e estes assuntos também estão lá. Assim como em Casos do Beco das Sardinheiras, Alfama e os bairros populares estavam lá. Assim como a matéria literária de Quem disse o contrário é porque tem razão estava lá. Foi isto — estavam disponíveis, estes materiais culturais. Estavam à espera que alguém pegasse neles, e foi isso que eu fiz. Estavam mesmo a pedi-las.
Mas apesar de estarem mesmo a pedi-las se calhar nem toda a gente tinha coragem para pegar neles.
A lata, o desaforo! Mas por que não? Mas agora pergunto-lhe eu, se me é permitido: porque é que o sexo há de ser tão sacralizado? Porque é que havemos de ser tão comedidos e recatados em relação a estas matérias? Porque é que não havemos de tratá-las em português também? Porque é que havemos de tornar o sexo numa coisa tão transcendente?
Uma coisa que é importante é que homens e mulheres — é desta relação fundamental que trata o livro — tentem encontrar um momento de felicidade e que se tentem prestar a esta entrega mútua, que é das coisas mais, enfim, gratificantes na vida dos homens. Este relacionamento com as suas perplexidades, com as suas interrogações, com as suas insuficiências, os seus desencontros também. Há um prazer que está associado e, de certa maneira, também a alegria de viver. Também o gosto da descoberta e da aventura. O gosto do desconhecido e do mistério que estão associados ao sexo.
No Epílogo, escreveu que as mulheres “ateimam no lirismo e na sentimentalidade, mesmo quando não apetece”.
Mas não vamos fazer generalizações! Vamos considerar que isso é a opinião do narrador.
Mas quando ele diz isso parece que existe uma necessidade por parte de algumas mulheres (e talvez de algumas das que estão no livro) de romantizarem a situação. E talvez também de alguns homens.
Sim, pode haver uma propensão para aquilo que popularmente se chama o romantismo. Se considerar, por exemplo, as telenovelas pirosas tem um modelo do que pode ser o romantismo. Qualquer coisa com violinos, cantores mexicanos, os mariachis e essas coisas. Esse envolvimento, esse cenário, esse ambiente. O sexo não supõe necessariamente isso. Supõe, sem dúvida, a tal dimensão intelectual, afetiva, de curiosidade, de interesse pelo outro, pelo corpo do outro e também pelo prazer do outro. Não tem de envolver violinos. No entanto, há quem pense que isso é necessário — que o sexo é qualquer coisa de transcendente, de defendido, de preservado. E não nos esqueçamos que durante séculos houve um conjunto de preconceitos colocados nas mulheres com vista à sua subjugação. E também porque muitas vezes os homens compreendem mal certas exuberâncias e certas maneiras de estar.
Mas muitas das mulheres que retrata no livro têm uma personalidade muito forte.
E tomam a iniciativa. E outras que surpreendem, e outras que se impõem, outras que dominam e outras que ditam.
O que o Mário acaba por mostrar neste livro é que, apesar dos estereótipos, as mulheres não são todas iguais. Têm diferentes gostos, personalidades diferentes.
Bem, não chego lá porque são só 16 e há muitas mais. Mas o livro tem uma variedade muito grande e muitas vezes surpreendente.
Publicou o primeiro livro, Contos da Sétima Esfera, em 1981, e desde então já editou romances, novelas, contos, ensaios e até teatro. Já fez um pouco de tudo. Sente-se confortável em qualquer formato? Ou há algum de que goste mais?
Há tempo para tudo, sabe? Muitas vezes mudo de pista, mudo de faixa. Quando considero que uma matéria, um assunto está esgotado deixa-me momentaneamente de me interessar, passo para a faixa do lado. Houve uma altura em que até escrevi cinema, mas depois essa pista desinteressou-me e passei para outra coisa, para teatro. Enfim. Sou curioso e vou sempre mudando. Tenho a certeza que o próximo livro não será um livro sobre sexo. Costumo dizer a brincar que podia fazer mesmo as mil belas em frol. Fiz 16 mulheres e podia fazer muito mais, mas não é isso que vou fazer. O próximo livro será sobre outra matéria qualquer.
E já sabe sobre o que é que vai ser?
Tenho uma ideia mas não lhe vou dizer ainda [risos].
Há alguma coisa que ainda não fez em termos literários e que gostasse de fazer?
Talvez gostasse de fazer um grande romance em cinco volumes.
Um Guerra e Paz da língua portuguesa?
Pois, talvez aconteça [risos].
Apesar de ser escritor, o Mário começou por exercer advocacia. Como é que se passa de advogado e escritor?
Os advogados falam muito.
Mas o Mário diz que não é muito falador.
Não. As pessoas ficam fixadas na oralidade do julgamento, na verbosidade. Os advogados que eu conheço. E a minha formação foi feita também nisso — no cultivo dessa facilidade de escrita que a advocacia dá e também do contacto com casos da vida interessantes e que podem sugerir a criação de algumas personagens, transfigurando-as, alterando-as, enquadrá-las.
Sempre quis ser escritor?
Não, isto foi-me acontecendo. Só disse que era escritor ao meu décimo livro. Antes era um advogado que escrevia. Só me consolidei ao fim de alguns anos. Só aí é que considerei que tinha chegado a altura de deixar a advocacia.
E como é que tomou a decisão de publicar um livro?
Houve uma altura em que as pessoas se encontravam e falavam sobre literatura. As chamadas tertúlias. Ainda fiz parte de um grupo de jovens universitários que se interessavam por literatura e que na altura publicou alguns livros, alguns volumes temáticos, e que se chamou, por causa dos quatro elementos da cultura clássica, os “Quatro Elementos Editores”. E havia muitos encontros, muitas conversas, animadas pelo professor Fernando Guerreiro. As pessoas trocavam textos, lia-se. Comecei a escrever alguns contos e também escrevi um livro chamado O Livro Grande de Tebas e Mariana, que seria publicado em terceiro lugar. E aí tem. Foram as leituras, estas conversas, estes encontros onde se falava sobre literatura, sobre cultura, que me estimularam.
E depois deixou-se ir?
Sim, exatamente. E depois fui sendo levado. Surgiram situações, perguntavam-me “quando é que vem o próximo livro?”.
Foi também na faculdade que se começou a envolver politicamente, nos movimentos estudantis.
Sim, sim, com muita assiduidade. Participei nos movimentos estudantis desde muito cedo, desde a crise académica de 61, 62. Tudo começou quando um amigo me telefonou a dizer: “Vem para a faculdade, que isto está cheio de polícia”. Em 24 de março, no dia do estudante, que foi proibido. Foi o primeiro grande choque entre o movimento estudantil e o Governo. Enfim, a partir daí as coisas nunca mais pararam e estive sempre envolvido nessas lutas. Estive preso no Governo Civil, tive um mês de suspensão da faculdade. Até que acabaria por ser preso mais tarde, noutras situações, quando já estava licenciado.
Apesar dos problemas que isso lhe trouxe nunca pensou em desistir?
Naquela altura? Não. Eles prenderam o meu pai, não se esqueça disso. Isso foi um choque tremendo. Penso que a prisão do meu pai foi mais decisiva do que a minha. No meu caso, eu era um miúdo, um jovem, que tinha arriscado, conhecia as circunstâncias, estava disposto a sofrer. De peito feito. Tinha toda uma vida para viver. No caso do meu pai, ele era um comerciante. Foi preso por fazer parte de uma coisa chamada Organismo das Cooperativas, que era uma tentativa de organização de cooperativas com empregados de comércio, contabilistas, pequenos proprietários. Era pacato, era gente que estava a exercer uma atividade que hoje em dia seria perfeitamente banal, perfeitamente normal e inofensiva. Absolutamente inofensiva. Isso foi uma coisa que me chocou profundamente, e ainda mais quando soube, mais tarde, que tipo de atividade estavam a desenvolver.
Quando tempo é que ele esteve preso?
Foram 16 meses.
Foi em parte pelo que aconteceu ao seu pai que decidiu envolver-se na política?
Sim, de certa maneira foi uma resposta minha àquilo. Quando o meu pai foi preso, tinha 15 anos e fazia-me falta.
Mas ele chegou a estar preso antes, quando era solteiro. No seu site, o Mário conta que a sua avó lhe mostrou um poço onde escondeu os livros do seu pai quando ele esteve preso.
Envolveram os livros numa lona e estavam lá em baixo, presos por um fio, no fundo do poço.
Como disse, o Mário também acabou por ser preso. Que marcas é que isso lhe deixou?
Ao fim e ao cabo, o que eu fazia era participar em reuniões, distribuir papeis, entrar em discussões. Era perfeitamente banal. Mas encontrei na cadeia muitos bons amigos, e isso é que me ficou. Há um ruído que nunca mais se esquece na vida. Sabe qual é? É o barulho das grades de ferro a fecharem-se. Da fechadura. Ficamos com isso na cabeça para sempre.