Um “companheiro”, um “amigo”, uma das poucas pessoas com quem Francisco Pinto Balsemão podia “desabafar fosse sobre o que fosse, sabendo que ele guardaria segredo absoluto” e que lhe “daria bons conselhos”. O antigo primeiro-ministro e presidente da Impresa divulgou esta segunda-feira, no dia da morte do advogado portuense, um texto com o título “Morreu o meu amigo Miguel”, que presta homenagem a Miguel Veiga onde invocou memórias partilhadas e uma longa relação de amizade.
Se era com o advogado social-democrata do Porto que Balsemão desabafava, o contrário era igualmente verdade: “Penso que a recíproca funcionou e ele também se abria comigo sempre que necessitava”. Tinham vivido momentos inconfessáveis juntos:
Naquilo a que se chama vida social, divertimo-nos, nos mais diversos registos, em Portugal e no estrangeiro. Vivemos histórias inacreditáveis, algumas com inevitável preponderância do sexo feminino. E o Miguel era um grande contador de histórias, por vezes acrescentando um ponto, como ele próprio reconhecia”, escreveu Balsemão.
Administrador não-executivo da Controljornal e depois da Impresa, Miguel Veiga foi membro do júri do Prémio Pessoa desde 1987 e um erudito, cujas características Balsemão fez questão se sublinhar. “Com o Miguel aprendi bastante em matéria de livros e de pintura e escultura. Ele lia muito e aconselhava bem quanto aos autores, sobretudo poetas. E tinha um especial talento para descobrir jovens artistas, aos quais comprava, com a generosidade que o caracterizava, quadros e esculturas, alguns dos quais me ofereceu”.
Durante os dois dias que os membros do júri passavam em Seteais (já não pôde ir nas últimas três edições) Veiga levava quase sempre um candidato ao Prémio Camões na manga e “intrigava para que ele vencesse”, recordou Balsemão. “Fazia-o de uma forma tão aberta, mas ao mesmo tempo tão persistente, que mais de uma vez conseguiu ganhar na votação final”.
“Nesta como noutras causas” — continuou o fundador do PSD — “era um advogado brilhante. Um advogado à antiga, que se entregava de alma e coração aos processos e os acompanhava de A a Z. Um advogado que gostava de ir a tribunal, o que hoje vai rareando. Um advogado humano, que aceitava clientes que já sabia não lhe poderiam pagar os honorários.”
Como administrador das empresas de Balsemão, “punha tudo em questão” e obrigava os administradores executivos “a rever o que parecia óbvio”.
Na política, fundador do PPD e compagnon de route de Balsemão desde antes de 1974 na Ala Liberal e depois no partido, tinha uma ação por vezes inesperada, como quando “apoiou publicamente Mário Soares, quando o PSD apoiou Freitas do Amaral”, recordou o ex-primeiro-ministro. “Na sua vida política, nunca com ambição de poder, de ser ministro, por exemplo, conseguiu ser independente e corajoso, mesmo quando sabia ser muito mais cómodo alinhar com a maioria”. Mas quando Balsemão esteve à frente do PSD numa fase muito difícil, teve no amigo um apoio que classifica como uma “fidelidade crítica” que não esquecerá.
“Talvez influenciado pelo pai, que foi um coerente democrata e oposicionista a Salazar, o Miguel, que, como eu, era filho único, teve a coragem de se manifestar contra a ditadura antes do 25 de Abril”, lembrou Pinto Balsemão. “Esteve na reunião da Curia, em meados de 1974, uma reunião fundamental para o arranque do PSD” — quando o programa de Sá Carneiro foi recalibrado, com a ajuda de Barbosa de Melo, para um texto mais à esquerda do que o original. “Foi deputado à Assembleia Constituinte. Saiu [do PPD] no Congresso de Aveiro”, onde houve uma cisão da ala esquerda com o sá-carneirismo. “Voltou mais tarde, reconciliado com Francisco Sá Carneiro, um regresso no qual eu tive influência”, escreveu Balsemão.
No seu texto de evocação, o amigo contou como “nos últimos longos meses” Miguel Veiga se foi apagando suavemente”:
Sempre lúcido, nas visitas que lhe fiz, na sua casa na Avenida do Brasil e nas conversas telefónicas, mas progressivamente menos interessado nos temas que eu procurava introduzir. Respondia, ria-se se fosse caso para isso, mas não dava sequência. Parecia estar já a mergulhar num outro mundo, onde já não entravam duas das atividades que, até aí, mais o motivavam: ler e escrever.
“É esta a última imagem, tranquila e sorridente, mas algo ausente, que conservo dele”, concluiu o presidente da Impresa. “A esta hora, já terá chegado a esse tal outro mundo, se é que ele existe. E já estará a lutar por novas causas e a ser acompanhado por uma legião de seguidoras e seguidores”.