Em paralelo com o júri dos prémios Nobel, e num movimento oposto àquele que levou a que um grande músico (e cantautor) fosse galardoado com o prémio maior da literatura mundial, a Vodafone cedo deu à palavra escrita um lugar de relevo nos palcos da música.
Com as devidas distâncias, a importância do gesto não se fica pelas intenções. Compreender que existe um lugar para a literatura em palco não é inovador, o que é novo é a capacidade de reunir nomes de pessoas que leem, que escrevem e que cantam na língua de Ruy Belo, no seio de um festival de música inconformado com os cânones.
O Vodafone Mexefest estreia assim um formato que se afirmou noutros palcos da Vodafone, como por exemplo o Vodafone Paredes de Coura. Em 2015, houve participações de nomes com origem direta na escrita, como Matilde Campilho, Pedro Mexia, Carlos Vaz Marques ou Rui Cardoso Martins.
Sem limites de género literário ou de modos de leitura, os textos escolhidos brotavam dos campos da poesia, das letras de canções, de excertos de romances ou até de crónicas. Mas 2016 foi mais longe, invertendo os papéis entre a música e a literatura, dando voz literária aos autores, compositores e intérpretes de canções: Gisela João, Samuel Úria, Capicua e Adolfo Luxúria Canibal compareceram.
Neste outono, as Vozes da Escrita chegam finalmente ao Vodafone Mexefest e, com elas, a spoken word, literalmente, a palavra dita, em português, em sessões de leitura protagonizadas por artistas das rimas, do ritmo e da força posta na voz e no sentimento que faz vibrar as cordas vocais com pleonasmos, aliterações, metonímias ou silêncios. Repertórios próprios ou escolhas de leituras ecoarão das vozes que habitualmente cantam aos ouvidos dos apreciadores da literatura sem escalões de classificação.
Os quatro artistas que integram a edição de estreia do Vozes da Escrita no Vodafone Mexefest deste ano vão preparar sessões inéditas em torno de textos cuja escolha depende unicamente da sua sensibilidade e gosto.
Apresentam-se aos pares para subirem ao palco em dias diferentes. A 25 de novembro, a sessão de palavras ditas abre com Carlão e Mike el Nite. No dia seguinte, é a vez de Fuse e Da Chick.
Acaso haja quem pense que, afinal, se trata, também, de nomes da escrita, digamos desde já que sim, que estamos de acordo com o júri dos prémios Nobel – que diluiu a fronteira entre as palavras escritas para serem cantadas e aquelas que se escrevem sem um necessário acompanhamento musical.
Para quem ainda não sabe, o ex-Da Weasel, Carlão é, além de um show man, alguém cujo fulgor se torna maior com os nervos à flor da pele. Veremos, pois, de que modo e até que ponto a literatura mexe com ele em palco. E vê-lo-emos na companhia de Mike el Nite, outro rapper português, que ficou conhecido, em 2013, pela música «Mambo N.º 1».
Se hip-hopper é sinónimo de spoken word, fica a curiosidade de saber que escolhas trazem estes dois homens da música ao palco da literatura do Vodafone Mexefest.
O segundo dia conta com as vozes de Fuse e Da Chick para esta «outra face» do Festival. E talvez se possam ouvir alguns versos deste tema, justamente, «outra face», de Fuse: «O movimento cresce a par e passo / Mas navegamos num rio que está manchado / De um lado a incompreensão é o adversário / Do outro aqueles que vestem a camisola ao contrário / Há muitos grupos, muitos projetos / Mas a humildade ainda é pouca no trajeto / Com que olhos somos vistos pelo povo ou pelos média?».
A irreverência e a energia estarão lado a lado, já que a resposta a esta prosa virá, à desgarrada, de Teresa Freitas de Sousa, rapariga que, segundo a própria, sempre teve dentro de si «um lado mais jazzy», até que certo dia confirmou essa existência de «um lado negro», manifesto no álbum «Chick to Chick» – assumidamente inspirado em «Cheek to Cheek», um original de Irving Berlin.
Se traduzirmos a prosa dessa canção – que vibrou nas cordas vocais de Frank Sinatra ou Ella Fitzgerald – à maneira do que Herberto Helder chama «mudar para português», leremos: «Estou no paraíso / O meu coração tanto bate que já nem falo / Encontrei a alegria / Ao dançarmos na mesma face». Mexe, não mexe?