São sete da tarde. Não fosse o som ensurdecedor dos aviões, que sobrevoam o local praticamente de 10 em 10 minutos, e o silêncio apenas cortado pelo canto dos pássaros não denunciaria que estamos em Lisboa. Há cerca de um quarto de hora começaram a chegar os visitantes. Há quem venha pela primeira vez, mas há também quem já tenha vivido a experiência.
No grupo, de 25 elementos, há homens e mulheres, há pessoas de todas as faixas etárias. À hora marcada é Licínio Fidalgo, o guia, quem reúne as pessoas. “Trouxeram lanternas?”, pergunta. “Mas porquê? Vamos entrar dentro de alguma coisa?”, questiona uma das participantes. Começa desta forma a visita noturna ao Cemitério dos Prazeres.
É assim desde 2014. Licínio Fidalgo, coordenador técnico do espaço, conta que na altura pensou se a combinação entre cemitério e noite seria viável, mas a ideia avançou. A primeira visita, inserida no âmbito da iniciativa internacional “Noite Longa nos Museus” (em que instituições culturais ficam abertas ao público até mais tarde), reuniu quase duas centenas de curiosos. Além deste itinerário existem outros sobre arquitetura funerária, história do cemitério, estatuária, maçonaria, simbologia e personalidades.
Construído para acolher as vítimas mortais da epidemia de “cólera morbus”, em 1833, o Cemitério dos Prazeres passou a propriedade municipal em 1840. Hoje, é uma verdadeira “cidade dos mortos” que em muito se assemelha à “cidade dos vivos”, diz Licínio. “Temos quase o mesmo tipo de construções, temos ruas e jazigos com números, tal como as nossas casas.” E acrescenta: “Os cemitérios são também um espaço de diferenciação e afirmação social, os epitáfios são exemplo disso.”
“Isto no fundo é um jardim com peças muito interessantes”
Melissa Carvalho é uma das visitantes de hoje. Vem pela segunda vez. Confessa que cedo descobriu “a paixão pelos cemitérios”, mas que só recentemente percebeu que esta “pode ser perseguida” e não precisa de ser considerada um “hobbie mórbido”. O que lhe interessa? “Tudo, desde a arquitetura, ao silêncio, à memória”, explica. Já Pedro Espírito Santo, apesar de nunca ter pensado fazer este tipo de visita, desmitifica: “Isto no fundo é um jardim com peças muito interessantes.”
19h15. Chegados ao primeiro ponto de paragem, é tempo de ouvir o guia. Trata-se do Jazigo dos Duques de Palmela, o maior mausoléu privado da Europa e que “só por si dava história para quatro ou cinco noites”, conta Licínio. Mandado construir em 1847, há quem lhe reconheça uma ligação à simbologia maçónica. A dúvida é “se o jazigo é um propósito do Duque de Palmela [de quem não se conhece ligação à maçonaria], ou se é um aproveitamento do arquiteto José Cinatti [maçon assumido]”.
Os portões de ferro abrem-se, mas até à entrada principal é necessário caminhar alguns metros. “Entrem que a casa não é vossa, mas eu faço as honras”, diz Licínio com a descontração que lhe é característica. Pelo caminho está sepultada a elite dos criados, homens à direita e mulheres à esquerda. Na capela em forma de pirâmide repousam os familiares e alguns amigos. Uma disposição feudal com “o duque de Palmela dentro do palácio e cá fora os seus empregados”. O jazigo tem capacidade total para 200 corpos.
Chega a hora mais impressionante da visita. Com umas chaves de ferro maiores que a sua mão, o guia abre as portas do jazigo. Lá dentro, à luz das velas, o grupo fica a conhecer os dois pisos. No primeiro, destacam-se os túmulos dos 2ºs e 3ºs duques de Palmela e à entrada, o cenotáfio de Alexandre de Sousa Holstein. Da autoria de António Canova, o painel homenageia o pai do 1º duque de Palmela que está sepultado em Roma. No piso subterrâneo realça-se o túmulo do seu filho, Pedro de Sousa Holstein e os restantes cerca de 150 caixões.
O relógio marca 20h15. Depois de uma hora ocupada com aquele que é o ex-líbris do Cemitério dos Prazeres, a visita continua. Por entre a maior e mais antiga concentração de ciprestes da Península Ibérica, que corta o cinzento dos mais de 7.000 jazigos, há ainda 16 pontos a visitar, seja pela originalidade ou por aspetos históricos relacionados com as pessoas que abrigam. Os que pertencem aos escritores Magalhães Lima, Oliveira Martins, Jaime Cortesão são paragem certa.
Nada mais original que o Dado, peça funerária que “contém os restos mortais de uma das duas pessoas que se sabe estarem sepultadas na vertical”, o militar e professor de matemática Aniceto da Rocha, que desenhou o próprio túmulo. Coberto por um tampo de ardósia, que sugere ser um quadro de escola, tem no topo um dado. Na face com uma unidade encontra-se um pequeno orifício para introduzir uma alavanca que o faz girar, o que aciona um sistema para trancar o tampo do túmulo.
Poucos metros à frente encontra-se o jazigo do mestre-de-obras. Curioso é o facto de nele não estar inscrito o nome de quem lá está sepultado. Pertence a alguém que se quis “perpetuar pela sua profissão”, explica Licínio. A escultura, feita ao pormenor num único bloco e sem colagens, está hoje coberta por um aquário de vidro. “Nós temos muito aquela ideia de olhar com os olhos e com as mãos e se isto não tivesse esta proteção provavelmente já estaria estragado”, diz o guia.
O desencontro de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz
Nos Prazeres há também lugar para um toque de amor. Depois de anos a pensar que se lhe havia perdido o rasto, encontraram-se os restos mortais de Ofélia Queiroz, a única namorada que se conheceu a Fernando Pessoa. Licínio diz que “foi uma questão de sorte”. Como a cremação está a ser bem aceite, os cemitérios ficaram com espaço livre e o talhão onde estava Ophelia Queiroz foi desativado. Ao retirar as ossadas não houve dúvida: “Naquela cova só esteve ela e mais tarde um senhor que foi cremado”, explica o guia.
Parece que nem só na vida Ophelia e Pessoa se desencontraram. É que o poeta, que estava sepultado nos Prazeres, foi trasladado recentemente para os Jerónimos, pouco antes de a sua amada ser descoberta. Também os avós maternos e o avô paterno de Fernando Pessoa foram trazidos para o cemitério. De acordo com Licínio, está já a ser preparado “um percurso temático com figuras ligadas a Fernando Pessoa”, não só com familiares, mas com pessoas a quem o poeta tinha relação, como o barbeiro, por exemplo.
É com vista privilegiada sobre a ponte 25 de Abril e a margem sul do rio Tejo que se encontra o talhão onde estão sepultados os Bombeiros Sapadores, espaço cedido pela Câmara Municipal para esse efeito em 1911. O guia faz uma paragem na visita. “É de noite e isto tem uma vista lindíssima para tirar fotografias, isto é um privilégio.” Mais à frente, a Cripta dos Bombeiros Sapadores. Inaugurada em 1878, foi projetada pelo arquiteto Dias da Silva, o mesmo que fez a Praça de Touros do Campo Pequeno.
São nove da noite. A visita termina. Além do frio, nota-se a satisfação naqueles que escolheram passar o final de tarde desta forma. E cada vez são mais os que visitam os Prazeres, “o que vai desmitificando a ideia”, diz Licínio. Para o guia, a visita “não é ver onde estão os mortos, mas sim tudo aquilo que eles nos transmitem. Graças a estes mortos, os vivos têm muito para admirar. Deixaram-nos muito.” E acrescenta: “É por isso que as visitas guiadas são interessantes, alertam-nos para coisas que nós estamos a olhar, mas não estamos a ver.”
A par das visitas guiadas, o Cemitério dos Prazeres tem disponíveis folhetos informativos para que se possam fazer visitas livres. Na capela, é possível ver as antigas salas de autópsias e do acervo, onde se podem consultar registos antigos. Desde 2001 que neste espaço se encontra o Núcleo Museológico, com vários objetos de culto, como crucifixos, incensórios, candeias e peças de cerâmica. A exposição inclui também fotografias de funerais de figuras conhecidas e anónimas.
Galardoado com o Certificado de Excelência pelo TripAdvisor, em média o cemitério atrai 300 turistas por dia. Nos Prazeres, os próximos percursos com guia estão agendados para 3 e 10 de dezembro, às 10h00. “Arquitetura funerária, um caminho diferente” e “Último Palco: atores”, respetivamente. As entradas são gratuitas, mas sujeitas a reserva para o e-mail dmevae.dgc@cm-lisboa.pt, já que o limite é de 30 inscrições.
O quê? Visitas noturnas ao Cemitério dos Prazeres
Onde? Praça São João Bosco 1350-297, Lisboa (Campo de Ourique)
Quando? Horário para visitas livres: inverno (1 de outubro a 30 de abril), das 9h às 17h / verão (1 de maio a 30 de setembro), das 9h às 18h. A entrada termina 30 minutos antes da hora de fecho
Como? Contacto para marcações de visitas guiadas e percursos temáticos: dmevae.dgc@cm-lisboa.pt ou 213 912 699 / 213 912 700. Transportes: Autocarros 701,709 e 774 / Elétricos 25 e 28
Texto editado por Ana Dias Ferreira