Elza Soares era o grande nome deste sábado no Mexefest mas, além da chuva, o dia ainda trouxe algumas surpresas. Numa edição em que os artistas lusófonos receberam o maior destaque, os ritmos cabo-verdianos de Mayra Andrade e a doçura de Mallu Magalhães resultaram em alguns dos melhores concertos da noite. Mas houve mais.
O R&B cheio de alma de Gallant surpreendeu e a tradição folk rock americana de Kevin Morby premiou quem esta noite decidiu trocar o sofá pelas ruas da baixa lisboeta. Ao todo, foram 15 mil as pessoas que deslocaram até locais emblemáticos como o Coliseu de Lisboa ou o recém aberto Capitólio, de acordo com dados da organização. Para eles, o prémio máximo teve sabor a realeza. Elza Soares foi rainha em Lisboa por uma notie.
Gallant
Coliseu dos Recreios
Às 20h20, o Coliseu dos Recreios já estava bem composto. Uns estavam ali para se protegerem da chuva e não sabiam o que iam encontrar; outros, mais atentos, sabiam quem era Gallant e do que era capaz. Mas mesmo estes últimos terão ficado de boca aberta quando o norte-americano de 24 anos mostrou a voz na primeira música, “Open Up”.
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Gallant lançou em abril o primeiro disco, Ology, e vem colecionando fãs desde então, graças às boas críticas que recebeu da imprensa e por apresentações como a que fez no programa de Jimmy Fallon. Foi bom constatar ao vivo que esses elogios são merecidos. Por vezes, a voz de Gallant não parece ser deste mundo, quando puxa dos falsetes — e o público aplaude. Outras, faz lembrar Prince, comparação que ainda vai ter de lidar algumas vezes nos próximos tempos. Ouça-se “Weight in Gold”, ou esta “Bourbon”, duas das canções que nos trouxe este sábado à noite.
Ainda vamos ouvir falar muito dele. E à velocidade com que os artistas se repetem de festival em festival, quem gostava de o rever pode até nem esperar muito tempo.
Mallu Magalhães
Teatro Tivoli
Mallu Magalhães chegou ao palco com um sorriso nos lábios. De guitarra na mão, vestido branco, sentou-se perante uma sala cheia. Lá fora, à porta do Teatro Tivoli, a fila ia grande. Todos queriam ver a paulista, que em 2015 escolheu Portugal para viver.
Uma das primeiras músicas a sair do “violão” de Mallu foi “Sambinha bom”. Apesar de fazer parte do já distante Pitanga, de 2011, o público mostrou conhecer o reportório da brasileira e cantou em coro. No final, choveram palmas. Aliás, salvas de palmas foi coisa que não faltou no concerto de Mallu Magalhães. Da plateia, o público olhava para ela ali em cima — com um foco apenas sobre ela e São Paulo no fundo — com um brilhozinho nos olhos.
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— Rita Cipriano (@ritapcipriano) November 26, 2016
A receção que recebeu foi tal que Mallu disse sentir-se “até emocionada”. “Obrigada por me receberem nesta cidade que, aos pouquinhos vou chamando de minha”, agradeceu, antes de cantar “Me Sinto Ótima”. A cantora mora em Campo de Ourique desde 2005, com o marido, Marcelo Camelo, com quem formou em 2014 a Banda do Mar, e a filha.
Mudando para inglês, seguiram-se os temas “In the Morning” e “Lost Appetite”. “Não vou falar muito, senão… O tempo passa”, disse. E ninguém queria que passasse. Chovia lá fora e estava-se tão bem ali dentro com Mallu. Depois de “Olha Só, Moreno”, levantou-se, a meia luz, para interpretar a capella “Chega de Saudade”, de Vinicius de Moraes. E foi sublime.
“Essa que vem aí é bonita para caramba”, anunciou ainda de pé mas já com a guitarra ao ombro. “Não é minha, senão o show ficava muito egoísta. É meio minha… Com o tempo a gente vai ganhando.” Cantou “Janta”, e o tempo foi passando rápido de mais.
Kevin Morby
Estação do Rossio
Até aqui foi relativamente tranquilo. Mas já se sabe que os sábados do Mexefest são sempre dias de fazer escolhas difíceis. Vamos aos primeiros grandes dilemas: Gallant ainda cantava no Coliseu quando começou Mallu Magalhães. Passado poucos minutos iam começar também Sara Tavares e a cubana La Dame Blanche. Prevíamos que ia ser difícil para Kevin Morby (21h10) atrair público, mas o norte-americano parece já ter os seus fãs fiéis e a plateia estava composta.
O texano chegou, vestido tal e qual o videoclip de “Dorothy”, e foi com essa que abriu o concerto. Infelizmente, as colunas ao ar livre parecem dar-se mal com a chuva que não cessava e o som não estava bom. O que é uma pena, porque a voz de Morby, as letras que canta e as melodias sacadas da guitarra de Meg Duffy merecem ser escutadas com nitidez. Não foi por isso que os fãs se foram embora. As recompensas vieram em forma de “Harlem River”, “Destroyer” e “I Have Been to the Mountain”.
A estreia do músico em Lisboa coincidiu com o último concerto que dá em 2016, mas nem ele nem os seus músicos pareciam ter pressa de ir embora. No final da belíssima “Singing Saw”, o texano olhou para o relógio, de seguida olhou para o baixista e ambos devem ter concluído que sim, que ainda havia tempo para mais canções. “Portugal is my favourite country”, disse, antes de começar “Parade”. Uma ideia que já repetiu em diversas entrevistas, para que não se pense que diz isso a todos os países por onde passa. E são cada vez mais. Em 2017 chega um novo disco. Cá o aguardamos.
Sara Tavares
Cinema São Jorge
Assistir ao concerto de Sara Tavares é como entrar na sala da sua família e encontrar a lareira acesa: um ambiente caloroso, com as músicas de costume e um jeito salgado de cantar. A cantora mereceu uma sala cheia e heterogénea: havia os casais de 50 anos, havia os jovens de 20, todos atentos às guitarradas que a artista levou pelo São Jorge fora — sim, ouvia-se no piso de baixo, onde as pessoas penduravam os chapéus de chuva encharcados.
Claro que Sara Tavares não seria Sara Tavares sem um traço africano que ia além do sotaque da cantora e do gingar de ancas que não a abandona. A certa altura, pediu a quem soubesse “tarraxar” que levantasse o braço. Aos que responderam, não pediu que dançassem, mas eles fizeram-no sem ordens. A certa altura havia meia sala de pé a dançar ao som do funaná. E foi ao som de funaná que a Sala Manoel de Oliveria foi esvaziando, pouco a pouco, uns para não perder PZ na sala do primeiro piso, outros para conquistarem a fila da frente de Mayra Andrade.
Elza Soares
Coliseu dos Recreios
Elza Soares era o grande nome do último dia do Vodafone Mexefest e, por esse motivo, o Coliseu estava cheio quando apareceu em cima do palco, do escuro. Vinha vestida de preto, com a cabeleira roxa que se tornou a sua imagem de marca nos últimos anos. O seu longo vestido prolongava-se pela escada que dava acesso à poltrona alta em que se sentava, como as raízes de uma árvore. Os problemas de costas e as múltiplas operações a que foi sujeita obrigaram a diva do samba brasileiro a trocar o palco por uma cadeira. Pode parecer estranho imaginar Elza parada durante um concerto inteiro, apenas com um leve abanar de cabeça e o microfone na mão. Mas ali, sentada naquela poltrona alta, Elza Soares parecia uma rainha, uma cleópatra negra. A mulher do fim do mundo.
“Boa noite, Portugal. Boa noite, minha gente fixe”, brincou depois de cantar “Coração do Mar” e “Mulher do Fim do Mundo”, os dois primeiros temas do último álbum, lançado no Brasil em 2015. “Gostaram? Quero ouvir barulho, muito barulho. Ninguém parado, ninguém calado.” Seguiram-se outras canções de Mulher do Fim do Mundo, em versões até mais enérgicas do que as do próprio disco.
Numa breve viagem ao álbum anterior, Do Cóccix Até o Pescoço, cantou “Carne” — “A carne mais barata do mercado é a carne negra” –, música de mensagem forte que ganhou um final quase progressivo. “Agora vamos falar de um assunto muito sério. Presta atenção mulherada”, anunciou a cantora, que se diz feminista até ao osso. “Chega de sofrer calada. Mulher tem de gritar, gemer só de prazer. Denuncie. Levantou a mão, denuncie”, disse antes de cantar “Maria da Vila Matilde”, tema que aborda a questão da violência doméstica.
O refrão, “Cê vai-se arrepender de levantar a mão para mim”, foi cantado por todos sem música a acompanhar, mesmo antes de seguir para “Pra Foder”, tema também do último disco. “Gostaram?”, perguntou Elza. “Então têm de gritar!” E o público gritou. “Benedita” contou com a participação de um cantor que acompanha Elza nos concertos. Enérgico, correu pelo palco, indo deitar-se aos pés da diva.
“Anda cá, meu amor, senta aqui ao meu lado”, disse-lhe Elza Soares num tom carinhoso. “Deita a cabeça no meu colo. Meu amor, vou-te contar uma história e você vai guardá-la bem guardadinha no seu coração.” A história era “Malandro”, música que interpretou originalmente com Jorge Aragão. No final do tema, alguém gritou: “Poderosa”, e Elza agradeceu. “Obrigada, vocês são altamente fixes!”
O público estava ao rubro e batia os pés no chão de contentamento fazendo o Coliseu tremer. Elza agradecia, vezes sem conta. A cantora desapareceu depois de cantar “Comigo”, numa saída dramática durante a qual o palco se encheu de vultos. É que o concerto de Elza Soares não foi apenas um concerto — foi um verdadeiro espetáculo, com dramatismo e tudo a que uma verdadeira diva tem direito. O público queria mais e mais, e não descansou enquanto Elza não voltou a reaparecer no palco, sentada na sua poltrona de rainha. No escuro, uma voz leu:
“A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.
A mulher do fim do mundo
Chama a luz com um assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas ao rio,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.”
O poema, “Metade Pássaro” de Murilo Mendes, serviu de introdução ao encore. “Eu acho que eles querem mais”, disse Elza no escuro. “Vocês querem mais? Eles querem mais eu vou ter de dar mais”. Seguiram-se dois sambas, num regresso esperado às raízes — “Vatapá” e “Pressentimento”. “Obrigada por terem vindo”, agradeceu já no fim. “Até à próxima. Isto é só o começo, muita coisa boa ainda bem para a frente. Oxalá tudo o que falei se realize. Obrigada por terem vindo. Altamente fixe!”
“Fixe” é apenas uma forma de descrever o concerto de Elza Soares, que ficará na memória durante muito tempo. A “mulher do fim do mundo” é uma lenda do samba brasileiro, mas esse estatuto não a impede de ficar atenta a novas nuances, novas tendências. A banda de jovens músicos paulistas — “m-a-r-a-v-i-l-h-o-s-o-s”, como ela própria disse — é prova disso. A Elza do século XXI tem samba, sim, mas também tem funk, também tem rock. E isso é o mais impressionante nela: Elza Soares não tem tempo nem pertence ao tempo — está acima dele.
Mayra Andrade
Cine-Teatro Capitólio (Parque Mayer)
Há algo em Mayra Andrade que ainda não parece estar totalmente definido — e ainda bem. Às vezes, a cantora parece alinhada com a música cabo-verdiana, não esquecendo o crioulo enquanto canta. Outras vezes, deixa-se escapar para algo mais psicadélico, a lembrar os anos 80, mas menos vincados. Muitas vezes há um som de fundo que nos faz viajar até ao reggae ou até ao hip-hop. Ouvir Mayra Andrade é ouvir muita coisa. Até francês.
Ela é doce de se ouvir e bela de se ver. O seu público não é de massas, nem pretende ser. A maior parte não a acompanha na maioria das músicas, mas vibra com elas, dançando com gestos subtis e entendendo o sentimento transmitido. Faz de coro quando ela pede e fá-lo bem. Isso parece bastar-lhe. Disse uma vez que não queria tanto falar, mas mais cantar porque “o tempo não é assim tanto”. E porque a sua voz combinava tão bem com a chuva que caía lá fora, o Capitólio estava composto para ela.
O ponto alto do concerto de Mayra Andrade foram os últimos minutos, quando se despediu da sua banda e ficou perante o público a cantar a capella uma canção tipicamente cabo-verdiana que deixou todos hipnotizados. Tão hipnotizados como quando Mayra cantou uma canção sobre o tempo e sobre tudo o que ele leva. Nos últimos segundos, pôs o microfone no peito, cantou como se estivesse a chorar e atirou todos para um silêncio que culminou em palmas que pareciam infinitas.
Whitney
Cinema São Jorge
Enquanto Elza Soares e Mayra Andrade terminavam de (en)cantar, uma banda com nome de mulher mas que é feita de homens atraía multidões ao Tivoli. Que fenómeno é este, chamado Whitney? Nos últimos meses, o nome deste projeto foi sendo cada vez mais falado, a partir do lançamento do disco de estreia Light Upon the Lake, em junho. Max Kakacek e Julien Ehrlich passaram por Paredes de Coura este verão (tal como Kevin Morby), como banda de abertura, e chegaram agora ao Tivoli como uma das principais atrações do Vodafone Mexefest.
“Os nossos colegas foram para os Estados Unidos para o Dia de Ação de Graças ou assim, mas nós quisemos continuar na vossa bela cidade”, justifica Ehrlich, para o facto de, em vez da banda de seis elementos, só ali estarem os dois fundadores.
Para além de cantar, Ehrlich trouxe uma guitarra acústica, em vez da bateria onde costuma estar. Kakacek também trouxe uma guitarra e os dois admitem que não sabem bem o que vai sair daquele espetáculo. As melodias são simples — ocasionalmente lamechas — e a voz de falsete é monocórdica. Tal como haviam feito em Coura, tocaram “Tonight I’ll Be Staying Here With You”, de Bob Dylan, uns furos abaixo do que fez Jorge Palma na noite anterior, com “Don’t Think Twice It’s Alright”.
Voltamos a perguntar: que fenómeno é este? O público parecia rendido mas, quanto a nós, as melhores partes foram quando Julien Ehrlich se lembrava de contar ao público que está há uma semana em Lisboa, que ali se bebe muito e que lhe estiveram sempre a oferecer droga falsa na rua.
Digable Planets, Octa Push e Branko fecharam a noite
Para recuperar da desilusão, acabámos no Cinema São Jorge, na companhia dos Digable Planets. Bem regressados sejam os que ainda têm talento para dar ao mundo. O grupo de hip-hop / rap alternativo formou-se em 1992 em Brooklyn, acabou em 1995, voltou a reunir-se em 2005 durante pouco tempo e juntou-se no ano passado para uma digressão, que passou este sábado por Lisboa.
A sala do São Jorge esteve em constante movimento de gente a entrar e sair, e com muitos melómanos de pé a sentir a batida com todo o corpo — entre os quais alguns músicos portugueses de hip-hop, como Valete — atentos ao que fazia o trio Craig “Doodlebug” Irving, Ishmael “Butterfly” Butler e Mary Ann “Ladybug Mecca” Vieira, apoiado por uma banda competente. A aposta nos Digable Planets foi pertinente, numa altura em que letras sobre o racismo, as desigualdades e as injustiças, que se cantavam no início dos anos 1990, continuam, infelizmente, a ser necessárias, quando bem feitas.
Ainda os Whitney estavam a tocar quando subiram ao palco da Estação do Rossio os Octa Push, um duo de eletrónica composto pelos irmãos Bruno e Leonardo Guichon. No mundo da música há dez anos, Bruno e Leonardo juntam nos Octa Push várias influências do mundo dos PALOP. O projeto saiu do forno em 2013 e o último disco, Língua, foi editado este ano. Escrito inteiramente em português, contou com a participação de alguns convidados de luxo, como Tó Trips, Ary, dos Blasted Mechanism, e João Gomes, dos Orelha Negra.
Para o concerto na Estação do Rossio, também levaram alguns convidados, como foi o caso de Cachupa Psicadélica (o outro nome do cabo-verdiano Nasci Cabo). Apesar de tocarem música para dançar, os Octa Push receberam uma reação morna por parte do público. Talvez fosse da chuva, mas ninguém parecia com muita vontade de tirar os pés do chão. A exceção eram duas raparigas que, junto às grandes, dançavam alheias a tudo.
Depois de os Octa Push deixarem o palco, foi a vez de Branko animar a noite. Branko, nome de guerra de João Barbosa, produtor, compositor e um dos membros fundadores dos Buraka Som Sistema, lançou no ano passado o primeiro álbum a solo, Atlas. O disco foi reeditado este ano com o nome Atlas Expanded. Foi nesta edição que foi incluído o tema “Reserva Pra Dois”, um dueto com a cabo-verdiana Mayra Andrade.
Foi a Branko que coube fechar o segundo dia do Vodafone Mexefest, enquanto na outra ponta da Avenida da Liberdade, no Teatro Tivoli, os Irmãos Makossa apresentavam o melhor da música africana. O produtor ficou no palco do Coliseu dos Recreios, entre ecrãs e letras luminosas até às duas da manhã. O festival, onde mexer é a palavra de ordem, acabou como começou — com uma boa dose de dança.