Em 2016, o Observador entrevistou Elza Soares, quando a cantora passou por Portugal. Recuperamos este texto por ocasião da sua morte, esta quinta-feira, aos 91 anos.

Cantora brasileira Elza Soares morre aos 91 anos

Faltam palavras na hora de falar de Elza Soares. Monumento da música brasileira, mulher-sobrevivente, nasceu no Planeta Fome a 23 de junho de 1930 com a pobreza como melhor amiga e a música dentro de si. Quando se estreou num programa de rádio nos anos 50, foi gozada pelo público e pelo apresentador, Ary Barroso, que depois de um valente murro na barriga chamado “Lama” — Não me interessa mais ninguém / Se o meu passado foi lama / Hoje quem me difama / Viveu na lama também — exclamou: “Senhoras e senhores, nesse momento nasce uma estrela”.

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Passaram 60 anos e Elza Soares é hoje a estrela que Ary Barroso previu que seria. Reconhecida internacionalmente como uma das maiores vozes do samba brasileiro (e não só), foi eleita pela BBC em 2000 como a “cantora do milénio”. A poucas semanas do seu regresso a Portugal — para três concertos no Porto, a 24 de novembro, em Aveiro, no dia seguinte, e em Lisboa, no Vodafone Mexefest, a 26 de novembro –, a estrela brasileira diz que não quer parar. Muito pelo contrário.

Aos 79 anos a saúde já não é a mesma, é certo (os problemas na coluna obrigaram-na a passar por várias intervenções cirúrgicas nos últimos anos e a passar a cantar sentada), mas Elza Soares sabe que largar os palcos não é a solução. Quando questionada sobre o que quer fazer até ao fim dos seus dias, não hesita — quer cantar, cantar “até ao fim”.

Do Planeta Fome até ao fim do mundo

Elza da Conceição Soares nasceu a 23 de junho no Rio de Janeiro, na favela da Moça Bonita. Filha de um operário e violinista e de uma lavadeira, mudou-se para o Bairro da Água Santa, também no Rio, quando era ainda muito pequena. Foi aí que passou os primeiros 12 anos de vida até que foi obrigada pelo pai a casar com um homem dez anos mais velho. Dele — Lourdes Antônio Soares, conhecido por Alaúrdes — teve cinco filhos, o primeiro com 13 anos.

Quando o filho recém-nascido ficou doente, Elza decidiu inscrever-se no Calouros em Desfile, o famoso programa de jovens talentos da Rádio Tupi, para poder comprar os medicamentos necessários. Não por acaso, mas porque dentro de si havia a certeza de que sabia cantar. Na estação de rádio disseram-lhe para ir “bonita”, mas como não tinha o que vestir, pediu uma blusa e uma saia emprestadas à mãe. Com pouco mais do que 35 quilos, a jovem Elza “era tão magrinha, tão magrinha!” que até fazia impressão. Como as roupas lhes ficavam largas (a mãe era um pouco mais pesada do que ela), teve de pegar nos alfinetes que usava para segurar as fraldas do filho, e prendeu o tecido folgado.

O resultado foi desastroso, e a jovem cantora foi gozada assim que entrou no “Calouros em Desfile”. O público riu-se, mas Elza soube encontrar as palavras certas para responder à humilhação. Quando Ary Barroso lhe perguntou “De que planeta você veio?”, Elza respondeu de lágrimas nos olhos “Vim do mesmo planeta que o senhor”. “E posso saber de que planeta eu sou?” “Do Planeta Fome”.

O público emudeceu. Ary Barroso, sem jeito, limitou-se a ouvir Elza a cantar o tema, “Lama”, uma música de Aylce Chaves e Paulo Marques. No final, teve a certeza: tinha nascido uma estrela.

Para nunca se esquecer daquele dia, sempre que entra em palco, Elza Soares leva consigo um alfinete igual aos que usou para prender as roupas largas da mãe. “É para não esquecer a primeira vez que levei um alfinete”, explicou durante uma conversa telefónica com o Observador a partir da sua casa no Rio de Janeiro. “Estava cheia de alfinetes nesse dia e agora levo sempre um comigo. Para não esquecer como começou. Acho que é muito importante uma pessoa não esquecer o passado, as suas origens.”

Depois daquela estreia em 1958, Elza começou a trabalhar com orquestras. Os sucessos seguiram-se uns atrás dos outros — lançou Se acaso você chegasse em 1959 e, no ano seguinte, A bossa negra. Em 1962, viajou até Santiago do Chile, onde decorreu o Campeonato do Mundo de Futebol. Nesse ano, a seleção brasileira revalidou o título de campeã. Elza Soares era a sua madrinha.

Às conquistas dos anos 60 e 70, seguiu-se a escassez de concertos dos anos 80. Os espetáculos, cada vez mais raros e cada vez mais mal pagos, levaram a artista a pensar em desistir e em trocar a música por um emprego mais estável. Viúva pela segunda vez (o segundo marido, o jogador de futebol Garricha tinha morrido de cirrose em 1983, já depois de o casal estar separado), Elza tinha então seis filhos para criar. Valeu-lhe Caetano.

Foi Caetano Veloso, amigo de longa data, que a convenceu a não desistir. “Caetano me deu a mão. Voltei”, contou a cantora ao Observador. “Quando falta trabalho, isso te deixa desanimada. Depois Caetano Veloso me disse ‘não, não, não! Vam’o embora!’.” E assim foi. Em 1984, convidou-a para cantar com ele a música “Língua” — A língua é minha pátria / E eu não tenho pátria, tenho mátria / E quero frátria / Poesia concreta, prosa caótica –, um hino à língua que fazia parte do álbum Velô. Uma experiência que Elza lembra como tendo sido “ótima, maravilhosa”.

A mulher do fim do mundo que quer cantar até ao fim

Depois da hesitação de inícios dos anos 80, Elza Soares nunca mais pensou em desistir. Agarrou-se à música com a mesma força e certeza com que sempre lutou por algo de bom na vida difícil que parece nunca ter deixado de ter. E, com os anos, foi cimentando o lugar de topo que sempre mereceu na música brasileira. Mulher do samba — mas sempre aberta a novas sonoridades — lançou em 2002 Do Cóccix até o Pescoço, um álbum histórico (com funk, jazz e tudo o que é Brasil lá dentro) que considera ter dado volta à sua carreira. Mas seriam precisos mais 13 anos para lançar o primeiro álbum de originais.

A Mulher do Fim do Mundo, editado em 2015 no Brasil, teve lançamento mundial este ano. Diferente de tudo o que Elza Soares já cantou ou lançou (até mesmo de Do Cóccix até ao Pescoço), o álbum, que servirá de mote aos três concertos em Portugal, é o encontro de uma velha alma do samba com a nova geração de músicos paulistas do “samba sujo”, décadas mais novos do que ela. Tem rock, tem eletrónica. Tem Elza de voz rouca e língua afiada, disparando contra os preconceitos de uma sociedade que exclui aqueles que são diferentes e que deixa as mulheres apanharem dos maridos em silêncio.

Um dos temas, “Benedita”, fala sobre um travesti viciado em crack que tenta sobreviver nas ruas. “Pra Fuder” fala de sexo sem preconceitos e “Maria da Vila Matilde” de uma mulher vítima de violência doméstica que ameaça o marido — cê vai se arrepender de levantar sua mão para mim. Feminista convicta, Elza Soares garantiu ao Observador que queria “falar disso tudo”, mas sobretudo das mulheres — das mulheres vítimas de violência doméstica, de preconceito. “Devia-se falar mais sobre isto — sobre as mulheres que apanham dentro de casa — caladas — e que têm medo de denunciar. Há muitas mulheres que sofrem caladas e que não falam nada, têm medo.”

Apesar de a realidade brasileira ser a que lhe é mais próxima, Elza garante que garante A Mulher do Fim do Mundo não fala apenas do Brasil — fala do mundo. Um mundo que considera ser hoje “muito estranho”. “Falta fé, falta bastante equilíbrio. Se botar fé, se botar equilíbrio, o mundo melhora”, acredita. Porque com fé — que sempre a ajudou a “ultrapassar qualquer coisa que viesse de mau” — tudo era melhor. “O mundo era um lugar muito melhor.”

Pode parecer estranho que álbum feito à medida de Elza só tenha acontecido agora, mas a cantora tem a certeza de que tudo aconteceu na altura certa, “graças a Deus”. “Fiquei muito feliz por ter feito um álbum de inéditos depois de tanto tempo de carreira”, disse, feliz por ter caído na “simpatia de todo o mundo”. “Não sei porque é nunca tinha feito antes. Foi feito na hora certa, graças a Deus.” Porquê? “Porque tudo acontece na hora certa”, afirma, convicta de que Deus escreve certo por linhas tortas.

As músicas foram escolhidas com a mesma naturalidade. Das 50 iniciais, selecionou 12 com a ajuda de Guilherme Kastrup, produtor, na sala da sua casa do Rio de Janeiro. “Foi fácil, fomos escolhendo as músicas na minha casa, na minha sala. Foi fácil porque as músicas caíam bem no ouvido. Ele ia mostrando e eu dizia: ‘essa tá boa, essa tá boa, essa tá boa’.”

Num dos temas escolhidos para o álbum, chamado exatamente “A Mulher do Fim do Mundo”, Elza Soares pede com a mesma voz rouca que me deixem cantar, me deixem até ao fim. Quando questionada sobre isso, respondeu sem hesitar: “Deixe-me cantar, que eu quero cantar até ao fim”.