Como a rosa inventada por Angelus Silesius, poeta místico do século XVII, também Ferreira Gullar era um poeta “sem porquê”. Uma vida imersa numa obra onde não se pode procurar uma origem, um segredo, uma explicação racional, tão ao gosto do nosso tempo. Talvez porque, como a vida, no seu loop incessante, a poesia de Gullar, que morreu este domingo aos 86 anos, “floresce porque floresce” num qualquer impossível a que ele genialmente chamou Em Alguma Parte Alguma (título do seu último livro de poesia de 2010). Dizia que só “o espanto” o movia porque “o mundo não está explicado e, por isso, a cada momento, nos põe diante de seu invencível mistério”.
Ferreira Gullar escrevia desde os anos 50, poeta consagrado no Brasil desde os anos 70, Prémio Camões em 2010, cantado por vozes como a de Adriana Calcanhoto, autor até de roteiros para telenovelas. A verdade é que o primeiro livro de Gullar só aparece em Portugal em 2003, pela mão das edições Quasi, de Jorge Reis Sá e Valter Hugo Mãe. Ou seja, cerca de 50 anos depois de ter iniciado a sua obra. A este livro, a obra completa do poeta, seguiram-se mais quatro que saíram na Babel, em 2010/11, também pela mão de Reis-Sá.
Neste Leito de Ausência
Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.
O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.
Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho — o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.
Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.
Começou na poesia Concretista onde a sua obra não se manifestava apenas pela palavra mas também pelas artes plásticas. Tem poemas-escultura, poemas gráficos, colagens das quais se afastou em 1957 por considerar que o grupo estava a tomar uma linha demasiado racionalista. E assina o manifesto NeoConcreto ainda com a mesma ambição de renovar a linguagem através do experimentalismo.
https://www.youtube.com/watch?v=4P9yWrIGWfg
Nos anos 60 abandona a poesia concreta e torna-se um poeta socialmente engajado, assumiu-se desde logo contra a Ditadura Militar embora nunca a sua poesia se tivesse tornado panfletária ou Neorealista. Pelo contrário, os poemas desses anos estão de tal forma imersos no que é intemporal na condição humana que permanecem atuais, e podem ser lidos em qualquer tempo e em qualquer contexto. O corolário desta poesia crítica é o famoso “Poema Sujo”, de 75, que o consagra no Brasil quando ainda estava exilado na Argentina.
Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade
sob as sombras da guerra:
a gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg
catalinas torpedeamentos a quinta-coluna os fascistas os nazistas os
comunistas o repórter Esso a discussão na quitanda a querosene o
sabão de andiroba o mercado negro o racionamento o blackout as
montanhas de metais velhos o italiano assassinado na Praça João
Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães troando nas noites de
tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado resiste.
Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que passava
rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada de Ferro, por seu Neco
que fazia charutos ordinários, pelo sargento Gonzaga que tomava
tiquira com mel de abelha e trepava com a janela aberta,
pelo meu carneiro manso
por minha cidade azul
pelo Brasil salve salve,
Stalingrado resiste.
A cada nova manhã
nas janelas nas esquinas nas manchetes dos jornais(…) [excerto de “Poema Sujo”]
Dialogou sempre com Manuel Bandeira, Drummond de Andrade , Murilo Mendes, Rilke e Breton, e a sua poesia sempre foi viva e metamórfica como a dos ses mestres. Ferreira Gullar nunca se imitou a si mesmo, a prisão, o exílio, a entrada no Partido Comunista Brasileiro nunca o fizeram vestir a persona do típico poeta contestatário. A sua obra estende-se ao ensaio, ao teatro, aos argumentos para televisão, aos livros infantis, à crónica, à biografia, à tradução e renova-se incessantemente.
A partir dos anos 80 surge uma poesia solar, fulgurante, onde prossegue o seu trabalho para renovar o mundo pela força das palavras, retirando-as das velhas posições, obrigando-a a falar o que parecia impossível ser dito. Em cada poema, Gullar parece conseguir inventar uma linguagem nova, impulsionada pela tradição da poesia brasileira e pelas suas experiências concretas (pessoais e políticas) e pela busca de algo absolutamente singular. Como poucos, soube dizer o seu tempo falando sempre sem materialidade, sem cronologia.
Jorge Reis-Sá, que o publicou e que o conheceu pessoalmente, disse ao Observador que Gullar “era um artista totalmente imerso na torrente do mundo, que conseguia unir o familiar e o estranho e ser compreendido pelas pessoas comuns”. De resto, o poeta foi cantado por Marisa Monte, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Chico Buarque ou Adriana Calcanhoto.
Uma das últimas entrevistas que Gullar deu a uma publicação portuguesa foi em 2014, quando a revista UP, da TAP, promoveu um encontro entre o poeta brasileiro e o poeta português Helder Macedo, que contou ao Observador:
“O último dos grandes escritores brasileiros que teriam merecido o Nobel, de par com Carlos Drummond de Andrade ou Guimarães Rosa. Teve o Prémio Camões, mas poucos em Portugal tinham lido o seu “Poema Sujo”, e aprendido com ele que poesia é, como Camões ensinou, o conhecimento do desconhecido donde não há possível regresso. Foi o homem do contra-discurso. Num painel de escritores que coordenei no Rio de Janeiro em 2000 — e em que também participaram José Saramago, João Ubaldo Ribeiro e Pepetela — desmontou a previsível conversa literária tornando-a numa salutar subversão de todos os discursos institucionais.
Reencontrei-o há poucos anos (antes do Prémio Camões) quando fui ao Rio de Janeiro, a convite da TAP, para uma conversa com ele para a revista UP, mediada pelo João Paulo Cotrim. Acabámos na praia, a dizer mal dos nossos respetivos governos. O eterno subversivo, o seu mais feroz descontentamento era contra quem se contentasse. Teria querido saber o que ele pensou da atual vergonha brasileira. Uma conversa interrompida, portanto. Como as melhores conversas.”
Apesar de ser um poeta consagrado, proposto para o Nobel e membro da Academia Brasileira das Letras Ferreira, Gullar nunca se tornou uma figura institucional, a aproveitar o seu estatuto confortável para evitar chatices. Era frequente ouvi-lo tomar posições antagónicas face ao que era consensual. Foi, por exemplo muito crítico dos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, ao ponto de ser acusado de se ter tornado de direita. Estava-se “nas tintas” para estatutos, usava vernáculo sem pudor e dizia, por exemplo, que a melhor coisa que tinha acontecido ao Brasil era a colonização portuguesa, sem a qual o país não seria nada. Esta posição é reiterada, precisamente, na já citada entrevista dada a à revista UP.
Aos 81 anos, de depois de mais de uma década sem escrever poesia, e quando a ciência declara o humano em decadência, eis que Ferreira Gullar atinge mais um pico da sua poesia com o livro Em Alguma Parte Alguma (Babel, 2011). Aqui a poesia do artista adensa a sua dimensão filosófica funde-se com a memória e a auto-biografia, mistura calão e linguagem erudita, reimagina Drummond e João Cabral de Melo Neto. Como sempre em busca da desordem, escreve: “e que eu possa/ cada mais desaprender/ de pensar o pensado/ e assim poder/ reinventar o certo pelo errado”.
Jorge Reis-Sá compara Gullar a Herberto Helder, “no sentido em que são poetas sem antes nem depois, são simultaneamente constelações e astros, cuja poesia se abre sempre para novas possibilidades”.