O chumbo do decreto-lei do Governo sobre a redução da TSU para os patrões tinha tudo para ser um parafuso a menos na “geringonça”, mas há um cimento que continua a unir PS, PCP e BE: a oposição à direita. Na hora da votação, o PSD juntou-se à esquerda mais à esquerda para deixar o PS isolado, mas não se escapou a ser o alvo de todos os ataques em mais de duas horas e meia de debate, apesar de em causa estar uma medida do Governo. Houve piruetas à direita, por o PSD votar contra uma medida que já defendeu. Houve piruetas no PCP e no BE para não criticar demasiado o Governo, mas sim o PSD (que ia votar ao lado de quem o criticava). A confrontação parlamentar foi dura e evidenciou outra vez a crispação dos dois polos políticos. No final, Carlos César, líder parlamentar do PS, admitiu que o Governo vai arranjar alternativas junto dos patrões.

Os protagonistas do chumbo desta quarta-feira (PSD, BE, PCP e PEV) são os mesmos que derrubaram o último Governo minoritário socialista, mas o filme agora é outro. “Esta maioria parlamentar construiu-se para o país não estar dependente da direita, e se há conclusão a tirar hoje é que esta maioria fica mais forte porque é convocada para as suas origens”, disse o líder parlamentar do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, no encerramento do debate. Quis deixar claro que, por mais obstáculos que pudessem surgir, os “valores” que levaram os partidos da esquerda a juntar-se ao PS no início da legislatura eram inabaláveis: “Nunca faltaremos à nossa palavra”.

Do lado do PSD, os esforços concentraram-se em pôr em causa a maioria que permitiu a António Costa formar Governo mesmo depois de não ter ganho as eleições. Num discurso incisivo e carregado de perguntas retóricas, o líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, chamou o primeiro-ministro e os seus parceiros parlamentares à responsabilidade e exigiu explicações. “Pretendem tirar o tapete ao Governo? Querem dizer ao país que já não estão disponíveis para suportar as políticas do Governo? Agora o primeiro-ministro assina voluntariamente acordos que sabe que não pode cumprir? Ou foram os parceiros parlamentares que roeram a corda?”. No CDS encontrou um aliado para o argumento, com o líder parlamentar centrista, Nuno Magalhães, a constatar que de agora em diante a palavra do primeiro-ministro não tem o mesmo valor.

Mas eram dois contra os restantes e não foi o suficiente para abalar a união das esquerdas. As juras de lealdade continuaram, com o líder parlamentar do PS, Carlos César, a garantir que a “geringonça” estava coesa, já que o PS “conhece, compreende e aceita a posição, sobre este tema, dos partidos que apoiam o Governo, embora dela discorde”. E continuou a justificação: “Com o BE, PCP e PEV não há razões para equívocos”, já que “todos sabemos que partilham com o Governo o objetivo principal — que neste caso foi o aumento do Salário Mínimo Nacional”. O argumento é esse: há sempre um novo parafuso na “geringonça” a segurar aquele que saltou. O PCP também não faltou à chamada, com o líder parlamentar João Oliveira a rejeitar a ideia de “crise política”, virando a agulha para a união do PSD e CDS que, neste debate, votaram de formas diferentes, com o CDS a abster-se.

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A redução da Taxa Social Única (TSU) para as empresas em 1,25 pontos percentuais, que tinha sido negociada pelo Governo com os parceiros sociais como moeda de troca para o aumento do salário mínimo, foi esta quarta-feira levada a votos no Parlamento pela mão dos partidos da esquerda parlamentar e o resultado foi o esperado: BE, PCP e PEV votaram a favor do chumbo daquela norma e tiveram a ajuda preciosa do PSD para concretizarem a sua vontade. Pelo meio, contudo, entre um debate que foi duro no tom e onde até Pedro Passos Coelho — que não fez qualquer intervenção — se exaltou na cadeira, uniram forças para atacar a “incoerência” do PSD. Em troca, ouviram o líder parlamentar social-democrata sugerir que BE e PCP preferiam que o PSD não os apoiasse nesta matéria. “Dava-vos mais jeito que não votássemos a favor, não dava?”, disse Luís Montenegro ao deputado bloquista José Soeiro, acusando bloquistas e comunistas de ficarem “atrapalhados” com a decisão do PSD.

“Geringonça” afinada na pirueta, à Biles, do PSD

Apesar de votarem de maneiras diferentes, os partidos que apoiam o Governo fizeram uma espécie de pacto de não-agressão. PCP e Bloco de Esquerda questionaram o ministro aqui e ali sobre precariedade e criticaram o apoio aos patrões, mas num tom calmo. Como se estivessem de acordo em discordar. O partidos que apoiam o Governo concertaram-se no ataque ao PSD e àquilo que chamaram de “pirueta”. A credibilidade política de Pedro Passos Coelho foi comparada à ginasta olímpica norte-americana Simone Biles num tweet do porta-voz do PS, João Galamba. Houve jargão ginástico para todos os gostos: da “pirueta” à “cambalhota”, passando pelo “mortal encarpado à retaguarda.”

Logo na abertura do debate, o bloquista José Soeiro quis atingir os sociais democratas, defendendo que “para o PSD, aliás como para as confederações patronais, 557 euros por mês é um exagero.” E questionou: “Quando o PSD defende essa posição, fala em nome de quem? Quantos de nós que aqui no sentamos se imaginam a viver com 557 euros mensais?” O acordo de esquerda, garante o bloquista, “será desenvolvido com a lealdade, o empenho e a frontalidade de sempre.” Nesse aspeto, acrescentou Soeiro, não há “nenhuma surpresa, nenhuma mudança, nenhuma novidade a esse respeito. A única novidade foi mesmo a pirueta do PSD.”

O ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social pegou na deixa, dizendo que “há já quem tenha identificado as piruetas políticas, como um murro na mesa do marasmo da oposição”, mas na verdade “esse murro na mesa, é um ataque à concertação e a penalização de dezenas de milhares de empresas e de instituições.” O ministro terminou, aliás, a sua intervenção a dizer: “Este não é um murro na mesa, mas será, decerto um colossal tiro no pé.” Foi aplaudido de pé por toda a bancada socialista.

O PCP também reservou a parte mais crítica da intervenção para atacar o PSD. João Oliveira, líder parlamentar, disse que “à falta do diabo, que nunca mais chega, o PSD decidiu vestir-lhe a pele, e votar ao lado do PCP contra a descida da TSU”. Esta atitude, afirmou o deputado, diz muito “sobre a incoerência do PSD, mas não incomoda o PCP.” Para João Oliveira, este “vira-casaca do PSD” tinha por objetivo “atacar o aumento do salário mínimo.” O PCP diz que o PSD confiou sempre que os comunistas votassem ao lado do PS a descida da TSU, mas isso não acontece porque o PCP “não faz como o PSD e não prescinde da sua coerência”.

O PS, através de Carlos César, não desarmou no ataque aos sociais-democratas. César afirmou que a partir de hoje “não pensem os portugueses que o PSD votará porque concorda ou discorda de uma determinada medida, ou porque pensa ou sempre pensou de uma determinada medida, ou porque pensa ou sempre pensou de uma determinada maneira”, já que indiciou que “votará da forma que puder prejudicar o Governo, e mais não fará nem pensará noutra coisa”. O líder parlamentar do PS brincou mesmo com a situação, dizendo que “por este andar, chegará certamente o dia em que o PSD, tomado por essa monomania obssessiva, acabará por votar a favor da saída da NATO, da saída do Euro, e por aí fora, só para prejudicar o Governo do PS e da esquerda.”

Na última intervenção, o líder parlamentar do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares não resistiu a mais um ataque aos sociais-democratas: “Cambalhota por cambalhota sempre é melhor dar uma cambalhota pela defesa dos trabalhadores do que quando diziam que não aumentavam impostos e faziam o maior aumento de imposto da história”.

A esquerda tem vários arrufos, mas mostrou mais uma vez (como tinha feito no Programa de Estabilidade e nos dois Orçamentos do Estado), que está disposta a divergir várias vezes, mas não em provocar a queda do Governo e uma eventual governação de direita, como aconteceu no tempo de Sócrates com o PEC IV.

Centrão no “circo”: discutiu como nunca, irritou-se como sempre

Estão cada vez mais difíceis as relações entre PS e PSD e isso ficou claro. O ministro Vieira da Silva olhou para o contador de tempo e apontou baterias ao líder social-democrata: “Pelo menos o maior partido da oposição, nos 20 minutos que já usou, devia dizer aquilo que o seu líder pensa: que são contra o aumento do salário mínimo. Respondam se são ou não contra”.

A declaração deixou Pedro Passos Coelho muito zangado, levando-o a dirigir vários apartes na direção do ministro, visivelmente irritado. “Aumentem 20%”, gritou, como que aludindo à irresponsabilidade do Governo. Mais tarde também diria um outro aparte para dizer que considerava “excessivo” o aumento do salário mínimo para 557 euros.

A relação entre o “centrão” está longe dos melhores dias. Quando Carlos César discursava, perante os apartes que vinham da bancada do PSD, o líder parlamentar do PS chegou a voltar-se para a bancada laranja nestes termos: “Senhor deputado Luís Montenegro, a Assembleia não é um circo, respeite quem está a intervir”.

Depois disso, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, ainda incendiou mais o debate, acusando o PSD de ser um partido charneira entre PS, BE e PCP e de “votar contra si próprio”. “O PSD engana-se não vai votar contra o Governo nem a maioria, vai votar contra a concertação social”, destacou o governante. Nesse preciso momento, numa alusão às declarações da semana passada de Pedro Nuno Santos, vários deputados do PSD, como Luís Campos Ferreira, ergueram cartazes com frases ditas pelos socialistas: “O PS nunca mais vai precisar da direita para governar” ou “Eu também não pedi a mão ao PSD”.

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O CDS, que esta quarta-feira esteve próximo do PSD (e vice-versa), também não esqueceu as declarações do homem que faz a ponte entre Governo e o Parlamento. A deputada do CDS Cecília Meireles dirigiu-se a Pedro Nuno Santos, para lhe perguntar que, já que não precisa da direita para Governar, “o que estão os deputados aqui hoje a fazer? É uma encenação?”. A centrista avisou o ministro que “se não precisam de nós, sentem-se com aqueles partidos [de esquerda] e governem. Se assim é: menos teatro e mais governação.”

Rei morto, rei posto. Arranca plano B

O debate foi longo e duro mas nem por isso serviu para o Governo levantar qualquer ponta do véu sobre o que vai acontecer a seguir. Mas abriu-se uma janela, com o PS a admitir pela primeira vez que uma vez chumbada esta norma há alternativas que têm de ser encontradas para salvar o acordo de concertação social, ou desenhar um novo.

Não vigorando esta medida da TSU, outras certamente vigorarão, no contexto do mesmo ou de um novo acordo, apoiando as empresas e as instituições de solidariedade social”, disse o líder parlamentar socialista na intervenção de encerramento do debate.

Mas, ao Observador, recusou-se a detalhar que alternativas são essas. Certo é que o objetivo é salvar o acordo já existente, como fez questão de sublinhar o ministro Vieira da Silva já fora do hemiciclo, limitando-se a dizer que apenas caiu uma das matérias incluídas no acordo amplo de concertação social e que agora o Executivo iria reunir com os parceiros sociais para “analisar” a situação, estudar soluções e “no momento certo, dar a conhecer as alternativas”.

António Costa, que não esteve no debate parlamentar, não perdeu tempo e convocou logo para as 18h30 — cerca de meia hora depois de o debate terminar — uma reunião informal “de trabalho” com os parceiros sociais. Resta saber o que vai resultar da reunião e se as alternativas ao chumbo da TSU são acordadas a tempo do Conselho de Ministros desta quinta-feira que, em teoria, pode já aprovar um novo decreto-lei. A verdade é que a partir do dia 31 de janeiro o desconto de 0,75 pontos percentuais de que os patrões gozam na TSU desde 2014 vai perder o prazo de validade e, se nada for feito até lá, no dia 1 de fevereiro a taxa volta ao valor inicial de 23,75%.

PCP e BE já têm vindo a público dizer que concordam com várias medidas de estímulo às pequenas e médias empresas, como sendo a redução do Pagamento Especial por Conta (PEC), a redução dos juros no acesso a financiamento, ou a redução dos custos de contexto (como os custos com a energia).