O líder timorense Xanana Gusmão teceu, esta quinta-feira, duras críticas ao sistema judicial do país, numa carta aberta a uma ex-ministra condenada em Díli, em que defende a sua inocência e acusa alguns agentes judiciais de corrupção. “Não aceito, do fundo da minha alma pecadora, que hoje sejas incriminada de algo que não faz sentido, com relação à tua pessoa, com relação às tuas atividades, com relação à tua participação para a melhoria da vida das pessoas, para além do horizonte físico do nosso país”, escreve o ex-primeiro ministro na carta endereçada à ex-titular das Finanças, Emília Pires, condenada a sete anos de prisão por participação económica em negócio.

“E, contigo, o meu pensamento vai também abraçar a outra vítima da injustiça da Justiça do nosso País, a Madalena Hanjam”, escreve, numa referência à ex-vice-ministra da Saúde condenada no mesmo processo a quatro anos de prisão.

Na carta aberta de nove páginas, entregue pelo próprio à Lusa, Xanana Gusmão deixa críticas ao sistema judicial timorense, e faz acusações sobre vários alegados casos de abuso de fundos públicos, sem apresentar informação concreta que os comprove. Em particular, acusa de irregularidades financeiras quer o Presidente do Tribunal de Recurso, – num projeto do tribunal – quer o Procurador-Geral da República, por causa de faturas de uma viagem em representação do Estado ao Brasil.

“Eu sei que estás a passar os momentos mais difíceis da tua vida! Sabes bem que eu não percebo nada de leis, porque enquanto estava nas montanhas não me foi permitido, como aconteceu a outros respeitados timorenses, tirar cursos de direito no estrangeiro e, sobretudo, na Indonésia”, escreve numa carta marcada pela ironia e sarcasmo, acrescentando que “estes últimos são os que hoje preenchem a maioria do poderoso sistema judiciário”.

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“Sabes, Emília, eu admiro esta gente! Não percebem o português e julgam sob as leis escritas em português e assinam acórdãos que eles próprios não entendem”, escreve. Xanana Gusmão assina a carta e acrescenta o epíteto “O Soeharto de Timor”, numa referência ao ex-ditador indonésio com quem foi comparado pelo atual chefe de Estado, Taur Matan Ruak, num polémico discurso que este proferiu no Parlamento Nacional timorense.

“Uma das tuas acusadoras parece que foi designada para reunir dados sobre mim. E essa enjeitada até se vangloria do seu papel de feiticeira da justiça. Hoje em dia, todos eles se sentem assim: poderosos, exemplarmente sóbrios e retos, numa perceção fantasmagórica de que têm o Estado nos seus punhos! E nem se apercebem de que não percebem o que é um Estado”, afirma.

Considerando que Emília Pires teve um “papel primordial no processo de construção do Estado”, Xanana Gusmão diz que entre as pessoas que agora a acusaram no tribunal estavam “algumas que não defendiam a independência do país”. Na carta, Xanana Gusmão recorda alguns dos momentos da relação profissional entre ambos que começa em 1999 quando o líder timorense ainda estava detido na casa-prisão de Salemba em Jacarta e convidou Emília Pires para começar a preparar o futuro do país.

Recorda as “lastimáveis condições em que o Ministério do Plano e das Finanças se encontrava” quando Emília Pires assumiu a responsabilidade de o liderar, das dificuldades que enfrentou e dos “obstáculos encontrados por afiliações partidárias que, ao tempo, dominavam a administração pública”.

Saúda-a por ter introduzido “um sistema financeiro moderno” e ter transformado “uma instituição, fraca e desorganizada na altura” numa estrutura “de uma produtividade inegável, (…) eficiência comprovada dos seus agentes” e que merece confiança da comunidade internacional.

Relembra “peripécias” de governação, dentro e fora de Timor-Leste e congratula-a pela diversificação do investimento do Fundo Petrolífero que deu ao país “um lucro de mais de dois mil milhões de dólares” e pela criação do Portal da Transparência, entre outras. “Revelaste, ao longo do tempo em que serviste o nosso Estado, como ministra, uma vontade inexcedível de melhoria constante”, escreve.

“O Estado da República Democrática de Timor-Leste (RDTL) deve muito a ti, mulher fisicamente fraca mas com uma honestidade fora de vulgar. Presto-te esta homenagem, com humildade e admiração. Foste excessivamente escrupulosa, em muitas matérias que diziam respeito a possíveis atos que lesassem o Estado. Foste também marcantemente preocupada com a falta de medidas de correção, junto de instituições que careciam ou revelavam falta de vontade de adotar as normas estabelecidas de gestão financeira dos dinheiros públicos”, considera.

No caso concreto pelo qual foi condenada, Xanana Gusmão rejeita que Emília Pires tenha sacado benefício económico do negócio da compra de camas hospitalares, afirmando que não houve qualquer comissão e que o negócio com a empresa do marido da ex-ministra foi de compra e venda, sem intermediários como é “costume” em Timor-Leste.

“É por isso que eu não consigo aceitar que tenhas cometido um crime de participação económica em negócios que tivessem lesado o Estado. As camas estão a ser utilizadas e o próprio Presidente do Tribunal do Recurso foi beneficiado no uso desse tipo de camas ortopédicas, quando apanhou o ‘stroke’ (enfarte) e foi internado”, escreve Xanana Gusmão.