O Livro do Desassossego e os planos que Fernando Pessoa deixou para a publicação das suas obras vão ter uma edição digital que, se tudo correr bem, deverá estar disponível na íntegra nos próximos meses. As duas plataformas, ainda em fase de desenvolvimento, foram apresentadas esta sexta-feira no Congresso Internacional Fernando Pessoa pelos seus principais responsáveis, Manuel Portela e Pedro Sepúlveda, numa sessão intitulada “Pessoa e arquivo”, onde também participou a investigadora italiana Rita Catania Marrone, que falou sobre os “livros ocultos” da biblioteca pessoal do poeta.

Manuel Portela, professor na Faculdade de Letras de Universidade de Coimbra e diretor do curso de doutoramento de Estudos Avançados em Materialidades da Literatura, esperava poder apresentar o Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego esta sexta-feira já na sua fase final. Pelo menos, era essa a sua ideia quando apresentou o projeto da sua comunicação em setembro. Só que contratempos vários obrigaram-no a mudar de plano e a falar antes dos “atos de escrita” na obra de Bernardo Soares, recorrendo à plataforma digital para mostrar os diferentes manuscritos.

A ideia de criar um arquivo digital do Livro do Desassossego remonta a 2009, e é a ele que o investigador tem dedicado os últimos cinco anos da sua vida. “Quando o projeto teve início, pensei em usar o modelo da transcrição diplomática” (que inclui palavras rasuradas), explicou aos presentes. “No fundo predominava a ideia de representação e da fidelidade mimética relativamente ao texto.”

De acordo com Manuel Portela, o projeto inicial era o da criação de uma edição digital que representasse as edições do Livro de Jacinto Prado Coelho, Teresa Sobral Cunha, Richard Zenith e Jerónimo Pizarro (a mais recente), permitindo “perceber como é que os editores tinham construído estas edições” e estabelecendo um comparação entre elas e os documentos do espólio pessoano. Porém, Portela acabou por optar por uma abordagem diferente — a de transformar Pessoa num Pessoa do século XXI e o Livro do Desassossego numa “obra que é lida por computadores, por máquinas”. “É o que estamos a fazer — a codificar o texto e a torná-lo legível por um computador, o que permitirá entrar no texto de múltiplas formas”, explicou o investigador.

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Apesar de a plataforma ainda não estar online, os interessados no projeto podem inscrever-se como utilizadores no site, tendo assim acesso à versão BETA, isto é, ao protótipo em desenvolvimento.

A sessão foi moderada por Richard Zenith. Pedro Sepúlveda (à direita) falou do arquivo digital do planeamento editorial de Pessoa

Edição online do planeamento editorial irá reunir 400 documentos

A história do investigador Pedro Sepúlveda, que faz parte da comissão organizadora do congresso, não é muito diferente da de Manuel Portela: também ele achou que ia ser capaz de apresentar a versão definitiva da edição digital dos projetos e publicações de Fernando Pessoa, só que tal não aconteceu. Na comunicação “Pessoa Digital: Projetos e Publicações”, o investigador guiou os espectadores pelo site ainda em construção, mostrando algumas das suas funcionalidades.

Nascido de uma colaboração entre investigadores do projeto Estranhar Pessoa, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e o Cologne Center for e Humanities, especialista neste tipo de edições, o arquivo digital irá, numa primeira fase, apresentar as “listas editoriais de Fernando Pessoa, entre 1913 e 1935, o corpus da poesia publicada em vida, em jornais e revistas entre 1914 e 1935, de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Fernando Pessoa”, explicou Sepúlveda.

A ideia é ir “ampliando progressivamente este corpus”, mas mantendo a edição digital sempre centrada nos projetos de publicação e efetivas publicações do poeta, fazendo um contraste entre o que ficou no papel e o que consegui realizar em vida. Ao todo, o site terá cerca de 400 documentos, numa espécie de versão ampliada do livro O Planeamento Editorial de Fernando Pessoa, assinado por Sepúlveda e Jorge Uribe, com colaboração de Pablo Javier Pérez López (e publicado esta semana pela Imprensa Nacional — Casa da Moeda), que reúne 90 listas relativas apenas às obras dos heterónimos (Caeiro, Campos, Reis e Mora) e ao Livro do Desassossego.

Além de mostrar o “desenvolvimento cronológico da obra” e de fazer um “mapeamento do espólio do poeta”, o arquivo irá dar a conhecer muitos materiais que nunca foram publicados ou que apenas constavam em anexos de várias edições.Faltava um trabalho de edição abrangente destes documentos, colocando-os num só lugar“, salientou Pedro Sepúlveda.

Estes serão apresentados em diversas modalidades de transcrição: em transcrição diplomática, com riscados e palavras rasuradas, numa “primeira versão”, onde constará apenas a primeira fase de escrita do documento, sem os acrescentos, e numa “última versão”, com todos os acrescentos e variantes posteriores, mostrando as diferentes fases do processo de escrita dos textos e listas. Estas transcrições serão acompanhadas pelos respetivos documentos, digitalizados, e informações várias, como a data e local de publicação, quando for o caso.

Apesar de aparentemente desinteressantes, as listas de projetos de Pessoas mostram, não só, “os planos de estruturação de uma obra”, como também os “vários projetos editoriais no qual trabalhava, colocando-os em relação entre si”. Assim, a plataforma irá evidenciar a organização da obra, “permitindo a disposição dos diversos textos e como se relacionam entre si”.

Admitindo que ainda não há uma data de lançamento da edição digital dos planeamentos pessoanos, o investigador disse esperar que a plataforma esteja disponível nos próximos meses, idealmente antes do verão.

O IV Congresso Fernando Pessoa decorre até sábado na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A entrada é livre para estudantes e desempregados.