Fernando Pessoa e o romance nunca foram amigos chegados. No espólio, há vários textos em que se refere pejorativamente ao género literário, chamando-lhe o “conto de fadas de quem não tem imaginação”, a “poesia da mesquinhez”. Se é verdade que Pessoa escreveu vários contos (uma boa parte policiais), também parece certo que nunca se deu ao trabalho de escrever um romance. Mas será que é mesmo assim? A resposta é simples: não.

No interior da arca (que hoje em dia é mais metafórica do que outra coisa), existem rascunhos de dois romances que ficaram por acabar e que pertencem a uma fase da juventude do poeta conotada com a famosa Empresa Íbis — Oficinas a Vapor, uma tipografia que Pessoa abriu em 1907 e fechou em 1910, e que constituiu o seu primeiro projeto empresarial. Escritos por volta de 1909, os dois textos, Marcos Alves e Reacção, reúnem uma série de questões, temáticas e perceções Fernando Pessoa viria a retomar anos mais tarde e que, por isso, não deixam de ser importantes. E foi exatamente sobre um deles, Reacção, que Ana Maria Freitas falou esta quinta-feira no Congresso Internacional Fernando Pessoa.

Inserido numa sessão intitulada “Pessoa livre”, que decorreu já durante a parte da tarde, a comunicação da investigadora do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa focou-se neste romance inacabado que tem como personagem principal um anarquista, mas onde entram também um padre conspirador e uma condessa malvada e defensora da monarquia.

A par da condessa, o padre jesuíno é uma das personagens que se coloca do lado do rei. Manipulador, procura encaminhar “a condessa para a solução que considera ideal — encontrar um homem influente que salve a monarquia”. Porém, de acordo com a investigadora, “há no padre jesuíno algo de dúplice” pois “sentimos pelo diálogo que tem um certo desprezo pela parceira de conspiração”. Uma “personagem feita em bloco, manipulável na sua pouca inteligência mas de ação”. “Pessoa não é meigo em relação a muitas das suas figuras femininas, e em relação a esta parece mesmo haver um certo asco”, explicou, referindo a título de exemplo o caso de Artur Alves dos Reis — a ele, Pessoa chamava-lhe genial; no caso dela, só falava dos diamantes que teria comprado com o dinheiro falsificado.

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Padres e condessas à parte, o que interessa mesmo é a personagem principal, Miguel, em torno do qual o texto se desenvolve. Dele e da sua “visão da anarquia”, como explicou Ana Maria Freitas. E que visão era essa? Num bloco de texto em que surge em conversa um homem chamado Sequeira, Miguel diz: “Quem tiver de vencer verá. Produzamos essa anarquia. O resto não é connosco. E aqui vem Vossa Excelência como o argumento que mais ilógico e irracional parece e o mais radical e lógico de todos… Não lhe levo nada pela explicação, Sr. Conselheiro, terminou o anarquista sorrindo. A verdade deve ser para todos”. “Isto é a anarquia explicada às criancinhas“, afirmou a investigadora da Universidade Nova depois de ler o excerto em voz alta para o público.

Num outro bloco de texto, desta vez em diálogo com o seu irmãos, Miguel, opositor da monarquia, “apresenta o regicídio como uma medida social”: “O rei é um general do exército invasor. Nosso pai era (nem sequer era) um soldado do campo invadido. Foi morto na guerra. Paciência. Na guerra há dois que a fazem”, refere o trecho, citado por Ana Maria Freitas. “A única solução natural” é ajudar “a atingir um estado de destruição que precipita a anarquia”, explicou a investigadora da Universidade Nova. “O pai de ambos fora morto no Rossio dois dias antes e o anarquista pensa em colocar uma bomba debaixo do rei.”

Apesar “da incompletude”, de acordo com Ana Maria Freitas é possível perceber que “o autor escolheu um formado de blocos de texto, sem uma sequência temporal seletiva”. Os blocos “de tipos diferentes” incluem todo o tipo de escritos — de reflexão, diálogos e até uma cena dramática, “com indicações de cena incluídas”. Uma “mistura de géneros, que não deixa de ter direito a ser chamado romance, que não volta a ser repetida” em mais nenhum lugar da obra pessoana.

O Auditório 2, onde decorre o congresso, esteve sempre cheio ao longo do dia

Havia mais de anarquista em Pessoa do que se pensa

Além da comunicação de Ana Maria Freitas, na última sessão da tarde, que fechou o primeiro dia do Congresso Internacional Fernando Pessoa, foram ainda apresentadas duas outras. Rui Sousa, doutorando da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, falou do conceito de “liberdade” e de “homem superior” em Fernando Pessoa, enquanto que o espanhol Pablo Javier Pérez López explorou uma outra faceta de Pessoa — a anarquista. Não que o poeta fosse um anarquista, no sentido literal da palavra, mas é verdade é que dedicou várias páginas ao estudo do anarquismo.

Na sua biblioteca pessoal, hoje conservada na Casa Fernando Pessoa, é ainda possível encontrar vários volumes dedicados à corrente política, como é o caso de As Doutrinas Anarquistas, livro de 1908 autografado pelo heterónimo Alexander Search, e várias listas (Pessoa gostava muito de listas) de livros que lhe interessavam e que pretendia comprar ou ler. Além disso, são muitos os papéis, dactilografados ou manuscritos, que o poeta dedicou ao estudo da anarquia. Apontamentos, reflexões ou simples diagramas, é possível encontrar um pouco de tudo no interior da “arca”.

Percorrendo vários documentos do espólio, Pérez López falou do significado de anarquia para Fernando Pessoa. Começando por falar em O Banqueiro Anarquista, obra que acredita ter recebido desde sempre “pouca atenção crítica” (por exemplo, não existe uma entrada dedicada à obra no Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo, editado em 2008 pela Caminho) e ter sido interpretada como sendo “uma grande sátira em vez de um conto para o raciocínio”, o investigador abordou a questão da posição política de Pessoa, sempre colocado “do lado direito do jogo político”, o que não é necessariamente verdade.

“Devido à sua educação inglesa, Pessoa segue o pensamento do liberalismo”, seguindo, por isso, um “liberalismo individualista de estilo inglês”. Além disso, textos, escritos em vários períodos da sua vida, Fernando Pessoa dá a entender uma simpatia e interesse por algumas facetas do anarquismo. Isto não quer dizer, claro está, que Pessoa fosse um anarquista, mas mais um “anarquista individualista”, como o descreveu o investigador.

“Há um texto inédito que resume muito bem o que ele pensava do anarquismo em termos ideológicos: ‘Nada sendo, e porque nada somos, somos tudo’. O anarquismo não entende limites”, explicou o investigador e colaborador do La sombra del ciprés, o suplemento cultural do jornal El Norte de Castilla. Isto porque, para o poeta português, o que interessava era a liberdade individual e “romper, quebrar, triturar, as pressões sociais que afogam o individualismo e a possibilidade de haver homens superiores”.

O IV Congresso Internacional Fernando Pessoa regressa esta sexta-feira à Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A entrada é grátis para estudantes e desempregados.