Miguel Macedo nunca falou publicamente desde que se demitiu em novembro de 2014 do cargo de ministro da Administração Interna do Governo PSD/CDS. Com a entrega da contestação à acusação do Ministério Público (MP), diligência processual obrigatória que antecede o início da fase de julgamento que se iniciará no dia 13 de fevereiro, é a primeira vez que se conhecem os principais argumentos da sua defesa.

Em termos genéricos, o Ministério Público (MP) imputa a Macedo o alegado favorecimento de uma rede que pretendia lucrar de forma ilícita com os processos dos vistos gold, realizando negócios imobiliários lucrativos com empresários estrangeiros (nomeadamente chineses) que manifestavam interesse em obter uma Autorização de Residência para Investimento (ARI) – nome técnico do visto gold. Dessa alegada rede fariam parte Jaime Gomes (gestor e amigo de Macedo), António Figueiredo (então presidente do Instituto de Registos e Notariado) e Zhu Xiaodong (empresário chinês). São também imputados outros alegados favorecimentos a uma empresa de Paulo Lalanda Castro, o ex-patrão de José Sócrates na farmacêutica Octopharma que era sócio de Jaime Gomes, e ao Grupo Bragaparques.

Na contestação entregue no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, a que o Observador teve acesso, a defesa de Miguel Macedo contesta de forma absoluta os três crimes de prevaricação e um crime de tráfico de influência que o MP imputa ao ex-ministro da Administração Interna. São testemunhas de Macedo, os ex-ministros Rui Machete, Paula Teixeira da Cruz e Aguiar Branco. E também Jaime Marta Soares (presidente da Liga dos Bombeiros e presidente da AG do Sporting), Rui Rio (ex-autarca do Porto) e Fernando Gomes (presidente da FPF).

Eis os temas da acusação e os argumentos de Miguel Macedo:

Nomeação de um Oficial de Ligação para a Imigração (OLI) para Pequim – prevaricação

A criação de um posto OLI na Embaixada de Portugal em Pequim é tido pela acusação como uma questão essencial para a viabilização de uma empresa que a rede dos vistos gold desejava abrir na China para captar investidores, sendo que o pontapé de partida para o início do processo burocrático terá sido dado por Miguel Macedo com o objetivo de beneficiar a rede dos vistos gold. Daí o crime de prevaricação que lhe é imputado.

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Castanheira Neves, advogado de Macedo, afirma que o processo burocrático da criação do OLI, ao contrário do que alega a acusação, não visava beneficiar a rede dos vistos gold, mas sim colmatar uma lacuna que tinha sido detetada, pelo menos, desde 2012. O advogado alega mesmo que os governos de José Sócrates também fizeram a mesma ponderação entre 2005 e 2011.

No consulado de Miguel Macedo, essa hipótese, alega a defesa, nasceu no contexto de uma “reorganização de todos os Oficiais de Ligação do Ministério da Administração Interna (MAI) e dos OLI’s. Por outro lado, existia uma necessidade crescente de reforçar os quadros da Embaixada em Pequim, pois a China liderava, à data de março de 2015, os pedidos de ARI’s com 81% do total. Outro argumento a favor prendia-se não só o Governo (com o apoio do Presidente da República Cavaco Silva) encarar a China como um mercado fundamental para captar investimento, como existia um movimentos contínuo e crescente de imigração chinesa para Portugal.

Este movimento contínuo, por outro lado, também já tinha levado a vários alertas dos serviços de informações sobre a necessidade de “controlar a possibilidade de elementos de ‘tríades chinesas’ estarem a viajar para Portugal a coberto do programa das ARI”. Miguel Macedo, enquanto ministro da Administração Interna, chegou a ter contactos com o embaixador da China em março de 2013 sobre esse assunto.

Castanheira Neves refuta igualmente que a nomeação definitiva de um OLI para Pequim (que chegou a ter a inspetora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Luísa Maia Gonçalves, como pré-nomeada) não tenha sido concretizada devido a uma fuga de informação para a revista Sábado sobre a existência da investigação criminal. De acordo com a defesa de Miguel Macedo, que apresenta um conjunto de documentação oficial nesse sentido, foram as restrições financeiras do MAI que impediram a concretização de tal nomeação.

Os vistos da Intelligent Life Solutions (ILS) para viagens de doentes da Líbia para Portugal – prevaricação

A ILS é uma empresa de Paulo Lalanda Castro, igualmente referenciada na Operação Marquês onde o gestor farmacêutico é arguido, que ganhou um contrato com o Estado Líbio para assegurar o tratamento de doentes de guerra líbios em hospitais portugueses. Nesse sentido, a ILS contratou a JAG – Consultoria e Gestão, sociedade de Jaime Gomes, por cerca de 961 mil euros brutos — dos quais só terá recebido cerca de 101 mil euros entre novembro de 2013 e maio de 2014 — para assegurar toda a logística da vinda dos doentes.

O MP imputa um crime de prevaricação a Miguel Macedo por alegadamente ter instrumentalizado os seus poderes hierárquicos sobre Manuel Palos, diretor nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), para conceder um tratamento de favor à ILS no que respeita à emissão de vistos de estada temporária em Portugal em 2013 e 2014 para tais doentes.

A defesa de Miguel Macedo confirma que o ex-ministro solicitou a Manuel Palos que recebesse Jaime Gomes para “elucidá-lo sobre todos os procedimentos e regras a cumprir durante a estada dos doentes líbios que viriam para Portugal receber tratamento médico ao abrigo de um contrato celebrado com o Estado líbio”. Mas nega que o ministro tenha alguma vez solicitado algum tratamento de favor, até porque não mais voltou a falar do assunto com o diretor do SEF.

Castanheira Neves diz mesmo na sua contestação que não foi a primeira vez que Miguel Macedo procedeu dessa forma. Aquando da iniciativa do então Presidente da República Jorge Sampaio, de promover a vinda de um grupo de estudantes sírios para Portugal, Macedo fez o mesmo tipo de solicitação a Manuel Palos.

De acordo com a contestação de Macedo, o então ministro da Administração Interna estava preocupado com o que estava a acontecer com um segundo contrato estabelecido por uma empresa portuguesa com a Líbia para tratamento dos seus doentes de guerra. No caso da AMI — Hospital Privado de Guimarães, os doentes líbios que já tinham entrado em Portugal já tinham criado desacatos ao assistirem a um jogo de futebol, o que motivou, inclusive, a intervenção da PSP. Macedo queria evitar que surgissem novos problemas de segurança.

A defesa cita inclusive uma escuta telefónica de uma conversa entre Miguel Macedo e António Marques, presidente da Associação Industrial do Minho, onde o então ministro da Administração Interna mostra preocupação com a situação dos doentes líbios a cargo do Hospital Privado de Guimarães e diz que o SEF ajudou o hospital na emissão dos vistos para que o contrato fosse garantido — informação relevante para a defesa contrariar a ideia do MP de que Macedo favoreceu a ILS, prejudicando a AMI — Hospital Privado de Guimarães.

A guerra civil na Líbia alastrou à capital Tripoli e Portugal viu-se obrigado a encerrar a sua embaixada no verão de 2014. O MP diz que Macedo terá falado com Rui Machete, ministro dos Negócios Estrangeiros, de forma a que os pacientes da ILS tivesse um tratamento excecional por parte dos serviços consulares da embaixada portuguesa na Tunísia — país para onde foram transferidos os funcionários da embaixada na Líbia.

A defesa de Macedo recusa a ideia de pedido de tratamento de favor e contextualiza o contacto de Miguel Macedo, a pedido de Jaime Gomes, como um simples pedido de informação sobre se o Ministério dos Negócios Estrangeiros iria passar a emitir os vistos pela Embaixada da Tunísia — informação essa que foi confirmada por Rui Machete devido a pedidos de diversas empresas portuguesas, como a ILS. “Esta informação não representava – nem era mesmo – qualquer informação privilegiada, de favor, mas antes uma informação objetiva e de carácter não reservado”, lê-se na contestação apresentada por Miguel Macedo.

O IVA da empresa de Lalanda Castro – tráfico de influências

A ILS teve um problema fiscal com o contrato que estabeleceu com a Líbia: não cobrou IVA nas faturas de mais de 2,9 milhões de euros que emitiu, por entender que estava isento. A Autoridade Tributária (AT) não concordou e ordenou o pagamento de 677 mil euros do IVA relativos ao ano fiscal de 2013.

Paulo Lalanda Castro pediu ajuda a Jaime Gomes para resolver o problema que, por seu lado, solicitou ajuda a Miguel Macedo. O então ministro da Administração Interna falou com Paulo Núncio, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, para que recebesse Paulo Lalanda Castro e ouvisse os seus argumentos. O MP diz que Macedo terá tido conhecimento e aderido ao acordo entre Lalanda e Gomes para obter uma decisão favorável da Autoridade Tributária e acusou-o de um crime de tráfico de influências.

A defesa nega que Miguel Macedo tenha aderido a tal acordo e que tenha exercido a sua influência de ministro da Administração Interna sobre o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Macedo, argumenta Castanheira Neves, foi abordado pelo seu amigo Jaime Gomes para saber “se tinha forma de ter uma audiência com o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de forma a expor uma situação de IVA”. Gomes ter-lhe-á dito que pretendia abordar uma situação relacionada com a aplicação das regras comunitárias de incidência de IVA. Só depois de Miguel Macedo ter transmitido a Gomes o dia e a hora da reunião com Núncio é que foi informado que a reunião seria para Lalanda Castro e para a sua empresa ILS.

Mais uma vez, Miguel Macedo refuta a ideia de que solicitou qualquer tratamento de favor para as empresas de Jaime Gomes ou de Paulo Lalanda Castro. “Limitou-se a pedir o agendamento de uma reunião, não podendo isto mesmo ser confundido com quaisquer diligências para que determinada questão seja decidida ilicitamente. Aliás, refira-se que estas situações – de agendamento de reuniões para audição de particulares ou empresas – acontecem amiúde nos gabinetes ministeriais”, lê-se na contestação.

De acordo com o MP, depois da reunião entre Paulo Núncio e Paulo Lalanda Castro, a AT analisou o assunto, emitiu diversos pareceres e a ILS levou a sua avante. Segundo a acusação, a ILS poupou igualmente mais 1,1 milhões de euros de IVA para o ano fiscal de 2014. Total do imposto que a AT entendeu que não era devido pela ILS: cerca de 1,8 milhões de euros.

A defesa de Macedo diz que o ex-ministro da Administração Interna nada tem a ver com essas conclusões.

Os helicópteros e a Bragaparques – Prevaricação

A acusação de um terceiro crime de prevaricação contra Miguel Macedo está relacionada com o Grupo Bragaparques — e, mais uma vez, com o seu amigo Jaime Gomes. Em causa o concurso público internacional da gestão e manutenção dos meios aéreos de combate aos fogos florestais — assegurados pelos helicópteros Khamov.

A base da acusação é simples: o então ministro da Administração Interna terá enviado do seu endereço eletrónico oficial uma cópia do caderno de encargos para o seu amigo Jaime Gomes — alegadamente antes de tais documentos estarem disponíveis para os restantes concorrentes. Os documentos acabaram nas mãos da Everjets, adquirida pouco antes pelo grupo Bragaparques, que viria a ganhar o concurso, não tendo sequer levantado o caderno de encargos quando manifestou a sua intenção de participar na competição pela gestão dos meios aéreos do Estado.

Na sua contestação, a defesa de Miguel Macedo começa por dizer que a temática dos fogos florestais, nomeadamente o dispositivo de meios aéreos, sempre foi uma prioridade para o então ministro da Administração Interna. Tanto assim é, que após a realização de diversos estudos, concluiu-se que “o Estado português pagava mais de 35% do custo de mercado” ao contratar meios aéreos para combater os fogos.

Acresce que o país se encontrava numa situação de emergência financeira, o que levou o primeiro-ministro Passos Coelho a ordenar a todos os Ministérios uma profunda revisão dos custos nos respetivos orçamentos. Por isso mesmo, Macedo decidiu alterar de forma profunda o modelo de contratação dos meios aéreos de combate aos incêndios florestais.

Contudo, o concurso para a operação e manutenção dos Khamov, essenciais para combate aos fogos e emergência médica, ficou deserto por diversas vezes. Daí a necessidade de se proceder a diligências para encontrar concorrentes interessados em participar nesse concurso.

É nesse contexto, segundo a defesa, que se insere o email enviado por Miguel Macedo para Jaime Gomes. “O arguido não enviou o e-mail com a intenção de beneficiar o co-arguido Jaime Gomes ou qualquer empresa, mas apenas para que este, que se tinha disponibilizado a seu pedido para poder expor o assunto a um operador de aeronaves Kamov (como há poucos no mercado), ficasse com ideia do que se tratava no concurso”, lê-se na contestação.

Tal deveu-se ao “facto de o arguido Jaime Gomes conhecer o responsável da empresa em causa, a Faasa, mas se fosse outra qualquer empresa que aquele conhecesse, faria o mesmo. Ou se fosse outra pessoa, para além do arguido Jaime Gomes, a mostrar-se receptivo a esta abordagem, também o faria”. Miguel Macedo, diz a sua defesa, pretendia “divulgar o concurso e sensibilizar potenciais concorrentes – quaisquer concorrentes –, enfatizando que o novo concurso estava mais atractivo, embora mantendo a matriz do primeiro”.

Há um ponto essencial na defesa de Macedo: o email enviado pelo então ministro tinha “como destinatário último o arguido Jaime Gomes” e não qualquer concorrente.