O ex-diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) admitiu em tribunal que, durante o tempo que esteve à frente da instituição, recebeu “solicitações das mais variadas pessoas” para fazer o acompanhamento de processos concretos para a atribuição de vistos de residência. Manuel Jarmela Palos está a ser julgado por dois crimes de corrupção passiva para ato ilícito e um crime de prevaricação pela sua intervenção na atribuição dos chamados vistos gold, num processo em que são também julgados, entre 21 arguidos, o ex-ministro da Administração Interna (MAI) Miguel Macedo e a ex-secretária-geral do MAI Maria António Anes.

Jarmela Palos estava a ser interrogado sobre um dos 33 processos que levaram suspeitas ao Ministério Público, quando o seu advogado pediu para ouvir a gravação de uma chamada entre António Figueiredo, ex-presidente do Instituto de Registos e Notariado, e o ex-diretor do SEF.

Em traços gerais, o caso era o seguinte: Miao-Miao, uma empresária chinesa que estava em Portugal com visto temporário, precisava de obter um título permanente antes de viajar para a China. O então presidente do Instituto dos Registos e Notariado (IRN) liga para o então diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para saber em que ponto se encontrava o processo. “Não acha estranho o presidente do IRN ligar ao diretor do SEF” para saber o andamento de casos concretos, perguntou o juiz-presidente, Francisco Henriques. “Na altura, eu não sabia se o processo tinha alguma coisa a ver com ele”, responde Jarmela Palos. “Enquanto diretor nacional do SEF, recebi das mais variadas pessoas solicitações deste género”, acrescentou Palos logo de seguida. Em alguns casos, esses pedidos chegavam-lhe até de “particulares”, mas em nenhuma das situações o dirigente do SEF encontrou estranheza nessa recorrência.

Antes, o ex-diretor do SEF já tinha garantido que não recebia processos incompletos, que não interveio junto dos serviços para acelerar este ou aquele caso e que não privilegiou qualquer cidadão chinês na atribuição dos chamados vistos de residência para investimento (vulgo, vistos gold). Jarmela Palos também disse em tribunal que não seguia casos concretos na atribuição de vistos de permanência permanente. “A partir do momento em que transmitia [as informações aos serviços], desligava-me das situações, nem tinha capacidade para fazer o acompanhamento das mesmas”, disse o ex-diretor do SEF.

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Também garantiu que conhecera António Figueiredo no âmbito institucional, quando um era responsável do SEF e outro responsável do IRN. No entanto, na escuta que a defesa pediu para ser ouvida em tribunal, os dois dirigentes tratam-se com familiaridade (o tratamento por “tu” percorre toda a chamada).

Ex-diretor do SEF fez as contas

No depoimento inicial (Jarmela Palos foi o primeiro a prestar declarações em tribunal, naquela que foi a primeira sessão do processo dos Vistos Gold), o ex-diretor do SEF apontou falhas à investigação – “parece que houve aqui, não digo leviandade, mas falta de conhecimento para que se tirasse esta conclusões” – e acusou o Ministério Público de seguir uma “lógica cega” e “sem sentido” de acusação num processo que o juiz de instrução Carlos Alexandre definiu numa palavra: “lamaçal”, tal seria o grau de corrupção envolvendo responsáveis políticos e altos funcionários do Estado português.

Mas Jarmela fez as contas. Aquelas que, diz, a investigação não tratou de fazer. Nomeadamente, no que toca a uma das principais “suspeitas” de que é alvo: acelerar os processos de determinados cidadãos chineses para aceder a pedidos do presidente do Instituto de Registos e do Notariado, António Figueiredo.

O Ministério Público acusa o ex-diretor do SEF de encurtar prazos de 33 processos, mas Jarmela Palos garante que pegou numa “amostra” dos processos de atribuição de visto entregues das delegações do SEF de Lisboa e de Albufeira (as mais concorridas para atribuição de vistos gold) e concluiu que, nesses casos considerados suspeitos pelo MP, as atribuições de visto “demoraram substancialmente mais tempo que a generalidade dos processos” que passaram pelo organismo durante o tempo em que esteve à frente do SEF.

Jarmela Palos diz que nunca recebeu “pinguinha”

Quanto aos pormenores da acusação pela qual responde, Jarmela Palos garante que era habitual chegarem ao SEF diferentes pedidos de autorização de residência com a mesma morada (a morada era do advogado, as pessoas não viviam em Portugal) e que os serviços nem se dedicavam a verificar a validade das moradas. E também era uma “prática habitual” receber SMS e números de telefone de requerentes de visto de residência – tratava-se de uma “proatividade das embaixadas” numa fase embrionária deste tipo de processos.

Outra suspeita: as duas garrafas que o empresário chinês Zhu Xhiadong terá deixado nas instalações do SEF com um destinatário claro: diretor nacional, Manuel Jarmela Palos. “Custa-me [aceitar a ideia de] uma vida de trabalho, trocá-la por duas garrafas”, desabafou, já numa fase avançada do depoimento (que durou quase três horas), o antigo responsável máximo do SEF. “Da parte do senhor Zhu, eu nunca recebi nada nem tive a perceção de que o senhor Zhu entregasse no SEF duas garrafas que me eram dirigidas”, garantiu Palos ao coletivo de juízes. Lembranças, só se recorda de ouvir falar na “pinguinha” que o ex-presidente do IRN lhe queria fazer chegar, na véspera de Natal. “Eu encarava o doutor António Figueiredo como o presidente do IRN encarava [as garrafas]: como um presente institucional”, sublinhou.

O julgamento dos Vistos Gold continua esta terça-feira, com a segunda fase da audição de Jarmela Palos. Além dos processos de Atribuição de Residência para Investimento (ARI, os tais vistos gold), o ex-diretor do SEF deverá ainda partilhar a sua versão sobre a sua intervenção na criação de um posto para um oficial de ligação com Portugal na China e na vinda de cidadãos líbios para Portugal, para receberem tratamento médico – processos que o MP alega estarem envoltos em contornos ilegais.