Tinha 17 anos quando estreou “Trainspotting” — uma magnífica idade para quem passara anos a fintar empregados de bilheteira para conseguir ver filmes para maiores de 16. Ainda quatro anos antes, só uns brincos de pérola e uma camisa muito composta me permitiam comprar bilhete para “Drácula de BramStoker” e não sem levantar suspeitas.

17 anos é também uma idade em que a permeabilidade à coolness da subversão e da decadência está a cem por cento. Portanto, ao contrário da experiência do Eurico de Barros, todo aquele mundo de recreação e morte — regido por circunstâncias sociopolíticas mas não necessariamente explicado por traumas, abandono ou falta de amor — era muito fascinante.

“T2 Trainspotting”: não voltem ao lugar onde foram infelizes

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Aos 17, era uma adolescente suficientemente equilibrada para não me sentir realmente tentada, mas neurótica quanto bastasse para questionar a minha perspectiva de futuro (ou a falta dela). Numa parede do quarto, tinha colado o mítico discurso inicial do protagonista Mark Renton (Ewan McGregor) e perguntava-me se não haveria mais nenhuma opção entre ter um seguro dentário e perder os dentes por causa da heroína.

Choose life. A “vida”, tal como Renton a descreve, é aquilo a que se pode chamar de “vidinha”. É “a vossa vida”, especifica no monólogo final do filme, dirigindo-se ao espectador bem instalado e provocando algum incómodo nos glúteos da consciência. Uma lição que ainda dura: sempre que se possa, é melhor escolher não escolher.

Choose a job, choose a career. [escolhe um emprego, escolhe uma carreira] São questões mais voláteis que nunca: um emprego é mais uma necessidade que uma escolha e as carreiras são postas em causa por circunstâncias de crise aliadas a vocações súbitas para se vender empadas para fora ou abrir um turismo rural. Se derem o meu nome a uma rua, não sei o que irá figurar na profissão e há oito anos que passo recibos verdes.

Choose a family. [escolhe uma família] Menos casamentos, mais divórcios, baixa natalidade — tem sido mais ou menos esta a tendência ao longo dos últimos anos. Por outro lado, se reinterpretarmos este mandamento à luz do presente, temos hoje mais modelos de família. A família enquanto símbolo inevitável de conformidade já não é o que era.

Choose a fucking big television, choose washing machines, cars, compact disc players, and electrical tin can openers. [TV, máquinas de lavar, carros, leitores de CD e abre-latas elécricos] Tiremos da equação o leitor de CDs e o abre-latas eléctrico — efectivamente obsoletos, sendo que a televisão para lá caminha –, mas o consumismo continua selvagem como dantes.

Choose good health, low cholesterol and dental insurance. [saúde, colesterol baixo e seguro dentário] Se a alternativa fosse a degradação humana, juro que pensaria duas vezes antes de fazer esta escolha nos dias que correm. Vinte anos depois, a alimentação é um sinal de status e a obsessão pela saúde, mais do que revelar conformidade, manifesta-se em superioridade moral. Os seguros dentários podem ser facilmente substituídos por uma cremalheira de implantes branquinhos — que irão durar para sempre, como as pessoas que comem chia.

Choose fixed-interest mortgage repayments. Choose a starter home. [hipoteca de juros fixos; primeira casa] Comprar casa só se for para depois arrendar a turistas; de resto aluga-se e, como está caro, partilha-se. Há comunas de trintões, para não falar de emplastros em casa dos pais. Ou então, salta-se de casa em casa a fugir das rendas: só nos últimos dez anos, mudei-me umas cinco vezes.

Choose your friends. [escolhe os amigos] Não seria tão literal em 1996 como hoje, tempo em que se escolhem efectivamente os amigos. Adicionam-se ou rejeitam-se segundo critérios muito questionáveis: bonitos? Influentes nas redes sociais? Passíveis de botar likes? Amantes de gatinhos? Vi o “Trainspotting” com duas amigas do secundário. O meu coração escolheu-as na altura e hoje tenho-as no meu Facebook.

Choose leisure wear and matching luggage. Choose a three piece suite on hire purchase in a range of fucking fabrics. [roupa desportiva, bagagem que combina, um fato de três peças] Quando era criança, achava que iria usar saia-casaco aos 21. Aos 17, tinha madeixas de cabelo às cores e buracos nas camisolas e nas calças. Ninguém me dizia o que vestir — achava eu, sujeita à ditadura do rock — mas também não havia a oferta que há hoje, nem sequer T-shirts de bandas do meu tamanho. A boa notícia é que nunca tive um emprego que me obrigasse a usar saia-casaco. De forma geral, à excepção de pessoas com certas profissões, a moda que os adultos adoptam hoje é quase sempre uma extensão relativamente mais digna do que usavam na adolescência e ninguém se ofende com isso.

Choose DIY and wondering who the fuck you are on a Sunday morning. [faz-tu-mesmo e pensa em quem és ao domingo de manhã] O Do It Yourself está na moda, há tutoriais por todo o lado — quanto a pensar em quem somos num domingo de manhã, continuaremos a fazê-lo independentemente das nossas escolhas.

Choose sitting on that couch watching mind-numbing spirit-crushing game shows, stuffing fucking junk food into your mouth. [fica no sofá, vê telelixo e come mal] Em 1996, os concursos televisivos eram retratados neste monólogo como sendo alienantes — neste século XXI, passam a parecer relativamente desafiantes quando comparados com os reality shows que entretanto nos roubaram o olhar bovino de espectador. A televisão, no entanto, deixou de ser este instrumento de alienação quando comparado com outros vícios tecnológicos. Há 20 anos, a família ainda jantava a olhar para o televisor — era um flagelo. Hoje, cada um olha para o seu próprio ecrã.

Choose rotting away at the end of it all, pishing your last in a miserable home, nothing more than an embarrassment to the selfish, fucked-up brats you have spawned to replace yourself. [apodrece e vê os putos a crescer] Nada a fazer quanto a isto. Hoje como há 20 anos.

Choose your future. Choose life. Em retrospectiva, talvez tenha sido mais a vida a escolher por nós.

Ana Markl é guionista, apresentadora no Canal Q e animadora de rádio na Antena 3