Não foi uma audição de mais de quatro horas, como a de Paulo Núncio, mas quase. Fernando Rocha Andrade, atual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, esteve três horas no Parlamento a prestar esclarecimentos sobre o “apagão fiscal” que permitiu transferências na ordem dos 10 mil milhões de euros para paraísos fiscais sem tratamento por parte do fisco. O governante confirmou a existência de uma falha informática na origem de todo o problema e deu mais alguns detalhes sobre o caso. Ficou, no entanto, por responder questão à essencial: como é que esta falha informática aconteceu? Ninguém sabe.
O que Rocha Andrade clarificou…
Como é que as falhas na fiscalização dos offshore foram descobertas. Fernando Rocha Andrade começou por explicar, pausadamente, como se desenrolou o processo até Governo e Autoridade Tributária (AT) terem chegado à conclusão que existia uma enorme e injustificada discrepância entre os dados de transferências para paraísos fiscais relativos a 2015 e os dados relativos 2014 — descoberta que desencadeou todo o caso.
Como os elementos relativos ao ano de 2015 registavam um aumento considerável dos valores transferidos para paraísos fiscais, o gabinete de Rocha Andrade decidiu pedir esclarecimentos ao Fisco. Confrontada com este pedido de esclarecimento, a Autoridade Tributária (AT) investigou e percebeu que as falhas detetadas resultavam de “problemas na transmissão de informação do Portal das Finanças para o sistema central“, explicou Rocha Andrade. Para chegar a essa conclusão, a AT foi verificar os dados de 2014, correndo um novo sistema informático, diferente do anterior e recentemente implementado pelo Fisco. Não só encontrou falhas nesse ano, como em 2013, 2012 e 2011.
Na prática, houve mais de 14 mil transferências individuais, comunicadas em 20 declarações de bancos, que não foram transmitidas para o sistema central, com um valor na ordem dos 10 mil milhões de euros. “Os dados relativos a estas transferências não estiveram disponíveis para controlo. Todas as transferências que eram conhecidas puderam ser objeto de inspeção, as que ficaram ocultas não foram objeto de qualquer tratamento inspetivo”, explicou o secretário de Estado.
Estes são os factos revelados pelo Governo, que não respondem, no entanto, a uma pergunta fundamental: como é que esta falha informática aconteceu? O próprio secretário de Estado assumiu não ter resposta para a questão. Novas informações só serão conhecidas depois da auditoria da Inspeção-Geral de Finanças, que deve estar concluída ainda durante o mês do março, como revelou Rocha Andrade.
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… e o que ainda falta explicar
Falta perceber porque é o sistema informático falhou: foi falha mecânica ou humana? Um bug informático ou um ato deliberado? No Parlamento, Rocha Andrade pareceu mais tentado a responder com a primeira hipótese, evitando atribuir responsabilidades diretas ao anterior Governo — isto, apesar da insistência dos partidos mais à esquerda.
Não tenho nenhum facto que indicie [a existência de qualquer indicação política ou técnica para ocultação de dados]. Tanto quanto sei e me reporta, nem sequer os ficheiros foram adulterados. A falha está entre os ficheiros e a sua passagem para o sistema central. Não tenho indicação de que tenha havido indicação política ou técnica que possa ter levado a este resultado”, sublinhou Rocha Andrade.
Que transferências foram estas, quem as realizou e que entidades bancárias estiveram envolvidas? O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais evitou comprometer-se com uma resposta, argumentando que poderia estar a violar o sigilo bancário. Rocha Andrade revelou, inclusive, que antes da audição decidiu pedir conselhos ao Banco de Portugal e foi aconselhado a evitar a divulgação de informação que permita identificar as entidades bancárias que comunicaram as declarações. Na dúvida, o membro do Governo preferiu não dar informações.
Ainda assim, Rocha Andrade levantou ligeiramente o véu — adensando, paradoxalmente, todas as dúvidas em torno deste “apagão fiscal”. Disse o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais:
Existe alguma concentração quanto a países de destino em alguns anos. Em 2014, 97,7% das operações relativas ao Panamá estão nas [transferências] ocultas. Quase tudo quando foi para o Panamá está no oculto. Coisa semelhante aconteceu com as Antilhas Holandeses nos anos de 2012 e 2013″.
Que transferências foram estas para um destino que esteve diretamente envolvido na recente investigação dos Papéis do Panamá? Quem as fez? Que entidades bancárias estiveram envolvidas? São perguntas que, muito provavelmente, vão ficar sem resposta.
Este “apagão fiscal” resultou ou não em perda de receita fiscal para o país? Na audição da manhã, o antigo secretário de Estado Paulo Núncio lembrou, mais uma vez, que a AT “tem, desde 2012, a possibilidade de liquidar todos os impostos devidos nestas situações no prazo alargado de 12 anos (antes era de quatro anos)” e, “nestes termos, quaisquer impostos que sejam devidos nestas situações poderão ser cobrados pela AT até 2024, evitando-se assim o risco de perda da receita do Estado”.
Mas pode não ser bem assim. Primeiro, explicou Rocha Andrade, os dados relativos às transferências para paraísos fiscais “não são apenas usados para controlar o imposto [eventualmente] devido nessas operações, mas para perceber mais detalhes sobre a atividade daquele contribuinte, seja ele pessoa singular, seja coletiva”. Depois, pode colocar-se outro cenário: “As pessoas coletivas extinguem-se ou mudam-se”.
Em suma, Rocha Andrade não pode garantir que não há impostos perdidos, porque a questão é mais complexa. Se o direito a reclamar impostos em falta desde 2012 não caducou, não se pode concluir que não houve outras fugas a impostos que tenham entretanto caducado. Isto porque os dados das transferências também são usados para detetar se há impostos em falta noutras áreas.
O direito à liquidação [dos impostos] não caducou, mas daí não posso extrair a conclusão de que a falta de controlo inspetivo atempado não levou à perda de receita”, assumiu o responsável.
A lei, aprovada pelo anterior Governo, exige uma ligação direta entre a evasão fiscal e o movimento para paraísos fiscais para se aplicar o prazo de prescrição mais largo de 12 anos. Falhado o escrutínio do fisco em devido tempo, será, porventura, mais difícil conduzir qualquer investigação. E Rocha Andrade não tem dúvidas. Quanto mais tarde é realizado o controlo, mais difícil é fundamentar a existência de evasão fiscal e exigir o pagamento do imposto devido.