Quando Allen Ginsberg morreu em 1997, o mundo era muito diferente daquele contra o qual tinha “uivado” décadas antes. Ainda assim, Ginsberg, um dos grandes da Beat Generation, nunca encontrou uma razão para pousar a caneta. Apesar dos graves problemas de saúde (morreu na sequência de um cancro de fígado), escreveu praticamente até ao fim. O último poema, “Things I’ll Not Do (Nostalgias)”, foi escrito a 30 de março de 1997. Ginsberg morreu a 5 de abril.
Passados 20 anos, o filho de uma inglesa e de um russo expatriado impõe-se ainda como uma das vozes mais poderosas da poesia norte-americana do século XX. O poema que o tornou conhecido, “Howl”, permanece tão polémico e duro como o foi nos anos 50. Um manifesto irado contra uma sociedade opressora e abusiva, foi através dele que muitos encontraram as palavras certas para o que lhes ia na alma. No tempo de Ginsberg, mas também depois dele.
De Paterson para São Francisco, ao som do beat
Irwin Allen Ginsberg nasceu a 3 de junho de 1926 no seio de uma família de origem judaica, em New Jersey, nos Estados Unidos da América. O interesse pela política nasceu-lhe cedo — era ainda um jovem adolescente quando começou a escrever cartas para o The New York Times sobre temas da agenda política do seu país, como a Segunda Guerra Mundial ou os direitos dos trabalhadores.
Depois de terminar o secundário, inscreveu-se na Universidade de Columbia, graças a uma bolsa atribuída pela associação Young Men’s Hebrew de Paterson, localidade onde passou a juventude. Foi aí que conheceu William Burroughs e Jack Kerouc, de quem se tornou amigo próximo e que, juntamente com ele, viriam a formar o núcleo duro da chamada Beat Generation, um grupo de escritores norte-americanos do pós-Segunda Guerra Mundial que exploraram temas como a rejeição dos valores tradicionais, a condição humana, o uso de drogas e a liberdade sexual.
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Conhecido pelas opiniões pouco convencionais e comportamento violento, os anos de Allen Ginsberg na universidade estiveram longe de serem calmos. Depois de terem sido descobertos vários objetos roubados no seu quarto em Columbia, viu-se envolvido num processo judicial que o fez passar vários meses num manicómio (para se livrar da prisão, Ginsberg alegou insanidade).
Terminada a faculdade, instalou-se em Nova Iorque, acabando por se mudar anos mais tarde, em 1954, para São Francisco, cidade onde o Beat Movement estava a ganhar força graças às atividades de poetas Kenneth Rexroth e Lawrence Ferlinghetti, co-fundador da editora e livraria City Lights. É desse período que data o seu primeiro livro de poemas que, sem esperar, o fez encher manchetes de jornais um pouco por todo o país.
“Vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela loucura”
Ginsberg ganhou a atenção do público em 1956, depois da publicação de Howl and Other Poems (na tradução portuguesa, Uivo e Outros Poemas), pela City Lights Books. Composto essencialmente por um longo poema, “Howl” (“Uivo”), o livro é um grito de raiva contra uma sociedade destrutiva e abusiva, que levou à loucura “as melhores mentes” da sua geração. Aclamado pela crítica, houve até quem chamasse a Howl um “evento revolucionário na poesia americana”. O poeta norte-americano Paul Carrol considerou-o um “marco desta geração”.
Apesar dos elogios rasgados de alguns críticos, Howl and Other Poems não escapou ao olhar atento das autoridades norte-americanas. Descrito como um livro “obsceno”, foi apreendido pelos serviços alfandegários e pela polícia de São Francisco e alvo de um longo processo por causa da sua linguagem alegadamente sexual. Lawrence Ferlinghetti chegou mesmo a ser preso.
“Eu vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela
loucura, famintas histéricas nuas,
a arrastarem‐se na aurora pelas ruas de negros em busca de uma
dose feroz,
gingões de angélicas cabeças ardendo pelo velho contacto celeste
com o dínamo estelar na maquinaria da noite,
que de miséria e andrajos e olhos cavos e alucinados se sentavam
a fumar na penumbra sobrenatural de quartos de águas frias
flutuando pelos cumes das cidades contemplando o jazz”
Foram vários os que saíram em defesa do livro — poetas laureados, críticos e professores universitários, como Kenneth Rexroth, Walter Van Tilberg Clark ou Mark Schorer. Este último, de acordo com a Poetry Foundation, defendeu em tribunal que, em Howl, “Ginsberg usa o ritmo e a dicção do discurso do dia-a-dia” e que, por isso, é normal que inclua uma linguagem mais vulgar. Os argumentos de críticos mais e menos conhecidos acabaram por convencer o juiz e Howl and Other Poems acabou por ser ilibado de todas as acusações.
A polémica acabou por ajudar a transformar “Howl” numa espécie de manifesto da Beat Generation. A verdade é que o poema de versos longos, ao jeito de Walt Whitman (poeta de que Ginsberg gostava particularmente), resume todos os ideias que escritores como Jack Kerouac e William Burroughs defendiam. Ideais que acabaram por marcar profundamente a cultura norte-americana das décadas de 1950 e 1960.
Apesar de ter sido inicialmente proibido pelas autoridades, uma vez terminado o processo, Howl and Other Poemas tornou-se rapidamente no livro de poesia mais vendido nos Estados Unidos da América. Lá diz o ditado: má publicidade é sempre publicidade.
Allen Ginsberg manteve uma publicação regular ao longo da vida. Os seus livros de poemas, sempre intimamente ligados com a situação política dos Estados Unidos da América, são um apelo à paz e uma defesa dos mais desfavorecidos. Ativista durante toda a vida, falava abertamente do uso de drogas, de homossexualidade, de liberdade.
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Budista praticante, Ginsberg vivia de forma modesta num pequeno apartamento de East Village, em Nova Iorque. Comprava roupas em segunda mão e dedicava-se com afinco ao estudo das religiões orientais. Foi nesse loft que, a 5 de abril de 1997, morreu na sequência de um cancro do fígado, provocado por uma hepatite. Antes de morrer, fez questão de ligar a todos os amigos e familiares e de escrever um último poema.
Datado de 30 de março, cerca de uma semana antes, “Things I’ll Not Do (Nostalgias)” é uma lista atabalhoada de coisas que Ginsberg nunca mais poderia fazer, como visitar a Bulgária, beber chá de menta em Marrocos ou olhar para a Esfinge enquanto o sol se punha no deserto. Os versos finais são dedicados a todos os grandes “poetas modernos” norte-americanos, como o amigo Jack Kerouac, falecido quase 30 anos antes. Quando morreu, Kerouac tinha 47 anos. Allen Ginsberg tinha 70.