Antes do concerto, ao segundo dia de NOS Primavera Sound, havia já gente nervosa com o que estava por acontecer — e tinham direito à doce ansiedade. A banda surgiu vestida de igual, como acontece com as fardas de serviço. E a verdade é que estávamos todos no mesmo barco: súbditos da rainha Angel, que fez a sua aparição ao por do sol, como é suposto nos romances de bom ou triste final. Este em particular não tinha como acabar mal. Não podia.

Antes de fazer sofrer fosse quem fosse com aquele jeito de Stevie Nicks das caves mais melancólicas, Angel Olsen lança um isco dengoso. Faz-se elétrica, psicadélica, hipnótica, meio rock meio gravidade zero. Enfim, vocês sabem como é: antes da tempestade vem a loucura. Miss Olsen também o sabe e não deixa que ninguém a desvie do caminho traçado. Nem aquela malandragem em forma de vento que volta e meia nos tira o som. Isso não se faz, é como um beijo interrompido. Quem é que gosta de beijos interrompidos? Pois, ninguém.

“Estão a fazer-me corar”, diz a artista enquanto a malta se derrete. “Shut up and Kiss Me”, atira ela. Aquela que é uma das melhores canções que se ouviram desde o início do ano passado — se é que um top como este é sequer possível. Angel Olsen é uma trovadora romântica como não há outra. Porque é tão honesta como irónica, tão dramática como inatingível. Ninguém sabe bem quando o que canta é verdade ou não. Não sabemos se está segura de si, se está desfeita por dentro, mas essa dúvida é um encanto. Já o era em disco, ao vivo deixa tudo em suspenso, mesmo que esta não seja uma sala com paredes fechadas de onde nada pode fugir. Estivéssemos nessa prisão voluntária e tudo seria ainda maior. Tivesse cantado mais um ou dois temas que guardamos nos favoritos e isto era inesquecível.

Sapatos no ar e pés no chão para perceber que de alguma forma isto ainda é tudo real? Pode ser isso. É uma boa hipótese e merece o nosso respeito. (Foto: Pedro Jorge Castro)

“You could end this pain right here”, canta ela enquanto se ri, baton, risco e rímel. Meia preocupada, meia descuidada. Parece que nos diz “estou no palco para vocês mas ninguém imagina a confusão que aqui vai dentro”. Pode não ser nada disto mas ninguém canta “you’re the one I really love” com a mesma voz tremida; ninguém grita “take you away” e enche todo um parque em festa da mesma forma arrebatada; ninguém se abraça à guitarra, dançando como fazem as serpentes, atirando o mundo todo cá para fora.

“A minha guitarra ainda está afinada”. Exigência acima de tudo. “Está um dia lindo e é ótimo estar aqui.” Poucas conversas que isto é trabalho, não é altura para fazer amigos. E em concerto, Angel Olsen trabalha tudo o que está no disco, não fica à espera que as canções aconteçam, que a noite acabe e que um autocarro a leve para casa. Toca “Sister”, do gigantesco My Woman, do ano passado. É uma canção frágil, é uma história frágil, no álbum parece que vai cair aos pedaços pelos ouvidos de quem a escuta. Ao vivo, cresce e cresce e cresce, não sabe onde parar. Olsen faz isto, constrói uma muralha sonora que surpreende até os maiores fãs. Depois sair dali é uma tarefa complicada. De tal maneira que há quem tire os sapatos e os levante ao ar. Pés no chão para perceber que de alguma forma isto ainda é tudo real? Pode ser isso. É uma boa hipótese e merece o nosso respeito.

“All my life without a change”. Pensem nisto. Pensem bem nisto e agora safem-se. Alguns deixam o palco principal, têm outras agendas. A vontade é dizer “isso do jantar é importante mas alimento melhor que este, hoje, vai ser difícil”. “Afinal posso tocar mais duas?” Afinal podes tocar mais duas, Angel. Toca mais duas. Faz o que tens a fazer. Há por aqui quem não te queira ver sair. Já agora, para desfazer eventuais dúvidas: o primeiro nome dela é mesmo Angel, não é uma assinatura artística. E isso é qualquer coisa.

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