Depois de Elza Soares, este último dia de NOS Primavera Sound já estava ganho. Aquela banda, aquele samba que é muito mais que isso, aquela imponência no palco e as palavras que a rainha do fim do mundo cantou:

“Eu quero é cantar, me deixem cantar”. Elza no palco, maior que todos, a pedir vénias e agradecer aplausos. A fazer juras de amor a todos os que estão à frente dela.

“Vamos fazer uma festa bonita”. Vamos que isto está cheio, a colina está recheada, há gente de todos ritmos, há cerveja e gin tónico nos copos, há miúdos e graúdos sem juízo. Festa, festa é isto, é deixar o mundo parar por uma hora e pouco. É isso que vai acontecer, não é?

“Almas perdidas navegam o rio”. Este samba é rock, este samba é valsa. Este carnaval nem sempre dá baile mas dá sempre para levar a vida para a rua. Culpa de Elza, agarrada como poucos ao que cada dia lhe dá. Se insistirmos em sair deste concerto sem nenhuma lição aprendida é porque algo se passa de errado. E não é com a artista, isso é que não.

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“O mundo vai terminar num poço cheio de merda”. Esse Brasil que aqui se canta tem dúvidas, esse Brasil é sempre maravilhoso mas não sabe para onde vai. Elza Soares faz a sua pequena grande maravilha particular para cantar tudo isso. Faz uma boa confusão sonora que permite um pezinho de tudo. Mesmo no fundo desse poço, o povo dança, o mundo baila.

“A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Arranha esse verso, Elza, arranha-o bem, que o racismo morde, o racismo mata. Mãos na terra, um lamento que vai pelo ar. Rimas de revolta: “O cabelo esticado é o nosso país”. É um canto à decadência. Abram os olhos, Dona Soares está aqui para nos abrir os olhos e nem tem que se levantar do seu trono.

“O que me fez morrer vai me fazer voltar”. Ela sabe para onde tudo isto caminha. Por isso se entrega a um festival onde ainda não é noite, onde o espaço aberto deixa fugir alguma da poeira que se levanta. Ela não quer saber. Pode ser a última vez. Não é dramático, é o que é. E Elza sabe mais que nós todos juntos.

“Beleza mano, fica com Deus”. Elza confia tudo no baterista, chefe da banda, ele controla, ele toca e canta mas cada olhar que lança é uma ordem, é uma nota, é o tempo certo que todos têm de seguir. Haverá alguém que entende melhor o que Elza quer, quem Elza é? Transforma tudo isso em arranjos certos. Guilherme Kastrup, um carioca no meio de paulistanos, uma banda feita só de bons moleques.

“Cadê meu celular, vou ligar para o 80”. Não levantem a mão para cima dela. Elza manda nas palavras, consegue cantar o que nunca pensámos que cabia em versos destes. Nada nunca vai ficar preso na ideia desta rainha. Nada nunca vai ser segredo. “Denunciem. Por favor. Nada de sofrer calada, chega mulheres, têm que gritar. Gemer só de prazer.”

“Roupas jogadas no chão”. Que calor, senhora. Que calor. Essa ginga começa no violão mas tem batida digital. Essa bateria parece que vem do sambódromo mas ao mesmo tempo não leva nenhuma bandeira nos ombros. Como é que se faz da tradição uma coisa tão sem dono?

“Ela leva o cartucho na teta”. Generosa rainha Elza, que convida Rubi para brilhar, para ser Benedita. Convida esse Rubi para seguir a história desta canção e lembrar Gisberta, a homofobia, o preconceito. E isso não é gratuito, nada disto acontece só porque sim. Não é para ganhar público coisa nenhuma. Já estávamos todos aos pés de Elza, faltava ganhar o quê?

“Um bocadinho mais”. Quem é que não quer mais? Quem é que não quer sempre mais? Não é pecado. “Chorei, não procurei, escondi”. Dar a volta por cima é sambar na cara dos inimigos. Fazer isso em ambiente de festival é sacudir a sujeira. Dança-se em grupo, canta-se em coro, chora-se entre abraços. E não é tudo melhor assim?

“Arde no peito”. Não há muito dizer. Quem tem peito que nunca ardeu precisa queimar para viver. Se é preciso vir a sábia Elza para nos abrir os olhos, então o melhor é aproveitar. Até porque esse samba-canção é bom de mais.

“Malandro, eu ando querendo falar com você”. Esse cavaquinho, esse choro, esse porta estandarte e a história da favela; essa canção de embalar sobre a desgraça dos outros que é a nossa desgraça. “Você tá sabendo que o Zeca morreu?” Todos nós temos esse Zzeca que partiu, em algum lado todos temos um. Há alguém que fugiu, alguém escapou, alguém que deixámos escapar. Dançar deve ser o melhor remédio. Dancemos então. Valeu Elza.