Se não houvesse Marcelo Bielsas, o futebol não teria tanta piada. Podem chamar-lhe El Loco, paranoico, lunático, mas a verdade é que o desporto, tal como o cinema, precisa destas personagens fora da caixa que não nascem para serem blockbusters mas que ganham esse estatuto com a narrativa que têm para contar. No caso do argentino com olhar alucinado tipo Jack Nicholson, de quem tão depressa se pode esperar o gesto mais atencioso do mundo como uma sinfonia de berros por algo insignificante (os exemplos não são aleatórios, já aconteceram mesmo), é uma história que vale a pena contar. Ou melhor, vale a pena enumerar.

Já se sabia que o treinador tinha pedido ao Lille, a nova aventura em França depois da passagem pelo Marselha, para arranjar maneira de ficar a viver no centro de treinos do clube. Vai daí, perante a incapacidade logística de alterar muita coisa, Bielsa – que aos 62 anos até parece ter uma conta bancária avantajada – está a viver num compartimento de 30 metros quadrados, onde estão também quadros com campos de futebol e as estacas utilizadas nos treinos. Podia estar num hotel de cinco estrelas ou numa casa com dimensões para dar e vender (os responsáveis franceses estavam dispostos a isso), mas é ali que quer estar. Ponto.

E para compor a coisa espalhou 200 frases pelo centro de estágio, para explicar a todos os que trabalham com ele como resumir as ideias apenas a um linha para mais fácil compreensão. Mas a maior loucura de todas na ex-equipa de Éder (um dos onze jogadores dispensados este ano) entrou no top das principais “maravilhas” de um currículo que conta com passagens por Newell’s, Atlas, América, Velez Sarsfield, Espanyol, seleções da Argentina e do Chile, Athl. Bilbao, Marselha, Lazio (onde esteve apenas dois dias) e Lille.

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Um questionário de 200 perguntas para os jogadores

É a notícia do momento em França e já um pouco por todo o mundo. Marcelo Bielsa deu a todos os jogadores do Lille um questionário para responderem. Até aqui, ok, tudo certo. Marcelo Bielsa deu a todos os jogadores do Lille um questionário de 200 perguntas para responderem. Bem, pode ser uma questão de preciosismo, para conhecer ao detalhe aos jogadores mas com escolha múltipla ou algo do género. Marcelo Bielsa deu a todos os jogadores do Lille um questionário de 200 perguntas para responderem como por exemplo “O que acha da pobreza no mundo?”. Pardon? Parece brincadeira mas é mesmo verdade: o argentino inspirou-se num livro que leu sobre um sacerdote chinês e quer saber, além da pergunta já referida, quais são os cinco livros e filmes preferidos e o que gostam os seus atletas de fazer extra futebol. Objetivo: saber que tipo de pessoas comanda para, no seguimento disso, adotar os melhor métodos para retirar o máximo de cada um em termos desportivos.

A granada na mão que lhe valeu a alcunha de El Loco

Bielsa teve uma carreira como central com passagens por Newell’s, Instituto ou Argentino, mas foi a passagem pelo primeiro que mais marcou o argentino, adepto do conjunto de Rosario, onde nasceu. Entre 1990 e 1992, orientou o seu clube do coração e teve uma das piores derrotas de sempre frente ao rival San Lorenzo. Já se sabe como são os hinchas e, no rescaldo de uma goleada de 6-0 para a Taça dos Libertadores, foram para a porta de casa do treinador protestar. Bielsa não esteve com meias medidas: saiu cá para fora com uma granada na mão. E fugiu tudo a correr como se não houvesse amanhã. Foi a partir daí que recebeu a alcunha de El Loco. Quem diria?

Já viu mais de 50 mil vídeos. Até no carro, a caminho de casa

São números que impressionam: em três décadas de carreira como treinador, Bielsa já viu 50 mil vídeos de futebol. O treinador argentino, mais do que workaholic, é viciado em vídeos e quando comandou a Argentina no Campeonato do Mundo de 2002, levou sete mil vídeos de jogos e esquemas táticos para estudar. Quando chegou ao Lille, essa prática foi também utilizada e esteve a analisar 250 vídeos do conjunto francês até que, ao 170.º, já conseguia adivinhar as substituições – e sentiu que já tinha percebido toda a dinâmica da equipa. Mas chegou a um limite, ainda como selecionador da Argentina: pediu um pequeno ecrã no carro e um motorista para poder ir a ver futebol quando saía ou regressava a casa.

A pergunta que deixou Jorge Valdano perplexo

Marcelo Bielsa vem de uma família juristas, legisladores e juízes, mas preferiu fazer as suas próprias leis no futebol. Por exemplo, chegou a ensaiar oito maneiras de cruzar, 17 formas de defender, 11 modos de definir e 36 tipos de relação com a bola mediante o passe. É um teórico pensador que encontra as formas mais originais de aplicar tudo o que estuda na prática. Um pouco como Jorge Valdano, outra das figuras do futebol mundial que dá mais prazer ler e perceber. Mas até ele chegou a ficar perplexo com uma pergunta do atual técnico do Lille durante uma longa conversa que tiveram numa viagem de avião, quando foram a Inglaterra observar o Campeonato da Europa de 1996: “Depois de perderes um jogo, nunca pensaste em matar-te?”.

Os 13 passos, um sorriso e a confirmação. Mas o 12.º mais curto

O Athl. Bilbao tinha terminado um jogo frente ao Villarreal, Marcelo Bielsa estava na conferência de imprensa. Camisola de fato de treino dos bascos, óculos na cara, corrente dos mesmos bem à vista. A certa altura, um jornalista perguntou se era apenas uma coincidência ou apenas casualidade dar 13 passos na sua área técnica quando havia um lance de perigo do adversário. “Casualidade é alguém, com um jogo tão agradável para ver, dedicar o seu tempo a contar a quantidade de passos”, atirou com um sorriso. “Normalmente, o 12.º passo é mais curto e o 13.º é maior”, ainda gozou. “Vou e venho, mas a quantidade de passos que dou não tem a ver com situações a favor ou contra a minha equipa. Não conto os passos, mas talvez seja a área da zona técnica”, completou.

Do treino militar ao retiro de três meses num convento

O argentino tem o hábito de sentir o pulso ao grupo de trabalho e a partir daí tomar decisões que podem ser radicais até alcançar o pretendido. E é assim desde o Newell’s: um dia percebeu que a equipa não estava suficientemente focada e colocou o plantel numa base militar a pernoitar, sem possibilidade de ninguém mexer em telefones (só havia um no espaço) a não ser num caso de extrema urgência. Mas esse fascínio pela parte militar não se ficou por aí e ainda agora, no Marselha, sujeitou os jogadores a um treino com muitas semelhanças aos que se faziam na tal base. No entanto, Bielsa também gosta do seu descanso e, depois de sair da seleção da Argentina, em 2004, esteve três meses recolhido num convento sem TV nem telefone. “Só tinha livros, mais nada. A certa altura comecei a falar sozinho. Pensei que tinha ficado mesmo louco”, diria mais tarde.

https://www.youtube.com/watch?v=Pp7aOSd2MOA

Uma viagem pela Argentina e uma “visita” a Roma

O treinador argentino dedica o tempo que for preciso ao que considera merecer a pena e não perde um segundo quando está numa situação que não lhe agrada. Dois exemplos para mostrar essas ideias: em 2016, assinou pela Lazio, começou a ver demasiadas coisas que não estava a gostar e rescindiu contrato dois dias depois (falou-se na possibilidade de voltar ao comando da Argentina, mas é verdade é que só mais tarde voltou a treinar, no Lille); muito antes, percorreu a Argentina de alto a baixo num Fiat 147, depois de dividir o país em 70 partes por ele pensadas, em busca de novos talentos que pudessem andar perdidos.

Haveria muito mais para contar. Os contratos que costumam ter sempre uma cláusula que lhe permite sair ao final de um ano, aquela vez em que deu instruções ao seu próprio guarda-redes para bater todos os pontapés de baliza para fora porque contra aquele adversário era mais fácil recuperar a bola após um lançamento lateral, os métodos motivacionais únicos, a mania de assistir a jogos sentado numa geleira enquanto bebe um café, as aulas de ioga à seleção do Chile antes do Mundial de 2010, as barreiras que criava para não haver empresários perto dos locais de treino. Mesmo muito mais.

Mas tudo o que El Loco faz é por convicção, por achar que é o certo. Bielsa é um pensador do futebol, uma figura que lê mais para ensinar melhor, um treinador de topo sem um currículo correspondente (uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 2004, um Torneio Apertura e dois Torneios Clausura). E até a reação que teve perante Ranieri na primeira jornada da Ligue 1, quando o Lille ganhou por 3-0 ao Nantes, provou que nunca deixa de perder a humildade perante os melhores. “És um exemplo para todos nós”, disse ao ex-campeão inglês pelo Leicester. Será que também conseguirá ser exemplo ganhando o Campeonato com um outsider?