Enid Blyton. O nome, só por si, já traz alegria. Traz o charme inglês dos dias de Verão aventureiros, com pausas para chás em que as crianças bebiam uma desconhecida cidra, o prazer infantil de vaguear por cottages e vilórias no encalço de vilões, traz um sem número de truques, disfarces e mundos apetecíveis, profissões exóticas e crianças heróicas.
Talvez seja injusto contar em duas penadas a vida de quem escreveu oitocentos livros. No entanto, só pela quantidade o leitor pode imaginar qual foi a grande ocupação da sua vida. Desde que publicou os seus primeiros versos para crianças numa antologia, apadrinhada por G. K. Chesterton, até à sua morte no fim dos anos sessenta, desdobrou-se em colecções e personagens, escreveu vidas de Jesus, histórias sobre circo, cenas de colégio, mundos inventados e sonhos de criança. A biografia sugere e os livros confirmam: Enid Blyton tinha uma vida pacificada, talvez um apetite nostálgico pela infância de que guardou os fascínios e os medos, e uma mente simples, maternal, pedagógica mas não a ponto de querer educar mais do que no bom-senso e capaz de se divertir com uma peripécia aventureira. Blyton esteve para ser pianista, mas o único vestígio desta profissão falhada na sua obra é uma espécie de musicalidade luminosa, simples e de harmonia fácil, que repassa os livros. Há outras profissões, no entanto, que pareceu ter exercido um fascínio duradouro sobre a mente de Enid Blyton: o circo, palco de mistérios, base para uma série inteira e profissão misteriosa dos pais de uma aluna de Santa Clara; as professoras e, acima de todas as outras, os detectives.
As grandes histórias de Enid Blyton são histórias de aventuras, ao género de Stevenson, mas também de busca. Há sempre um mistério a respeito de um sítio ou de uma pessoa, mesmo nos inocentes colégios das Quatro Torres ou de Santa Clara, mesmo na terra dos brinquedos de Noddy, que aguçam o interesse pela história. Blyton, por muito que lhe criticassem a repetição de certos truques ou as semelhanças entre os enredos, conservou um olhar infantil que dá aos livros o fascínio que eles exercem. As grandes ambições infantis: a independência, a descoberta de tesouros e o combate de vilões, o encontro de segredos, os clubes, o mundo só de divertimentos como a terra dos brinquedos, tudo isso é concretizado nas histórias de Enid Blyton e sem decepção. Quem não sonhou com colégios internos ou com clubes secretos que desvendassem mistérios e precisassem de senha para entrar? Quem não pensou, anos depois, em como eram mitificadas as suas imagens de detectives ou do circo. Blyton tem interesse porque respeita o mito. Ao contrário do que é costume, em que de uma ideia nasce um problema que tem de ser resolvido pelo enredo, nos livros de Enid Blyton à ideia segue-se o prazer. Os problemas vêm depois de já todos se terem divertido com as mascaradas de Frederico Trotteville, dos Sete já terem marcado o símbolo do clube na porta da garagem e de Os Cinco se encontrarem alegremente ao fim de um período escolar sem se verem.
Cronologicamente, a ordem não seria esta; no entanto, é possível fazer uma história do mundo de Enid Blyton a partir de algumas das suas colecções mais representativas. Blyton escreveu para várias idades, num crescendo que também reflecte as mudanças de interesses e os fascínios renovados.
Noddy
É a personagem de Blyton mais conhecida. Com tanta produção fora dos livros, ganhou uma vida independente de Blyton. No entanto são as histórias da sua criadora que o tornam uma personagem tão querida. Fora o desenho delicado, as cores vivas e a forma deliciosa como desenho e texto se vão misturando, o grande interesse do Noddy, mais do que nas histórias, está no mundo.
Não em personagens específicas, como o sábio Orelhas Grandes, ou o mais sisudo polícia; a ideia de um mundo criado a partir dos brinquedos, além de tocar no íntimo das crianças, que brincam constantemente com eles, como se tivessem de facto vida, tem um pressuposto interessante. Blyton não quer mostrar que o mundo é bom ou que devemos ser bons uns com os outros; o mundo de Noddy é mais prático e mais claro para as crianças: se queremos um mundo bom, vamos fazê-lo das coisas boas. A ideia de um quotidiano feito de brinquedos, além de tentadora, tem qualquer coisa de humilde que também é bonita: não são os brinquedos que são usados para fingir que são como nós, somos nós que entramos no mundo dos brinquedos. A medida passa a ser outra, não nós mas aquilo que usamos. A vida que os brinquedos ganham – apesar de tudo com os seus limites de brinquedo – tem esta curiosidade de manter o prazer dos objectos mas, ao mesmo tempo, mudar o foco: vamos à boleia dos brinquedos, já não o contrário.
Os Cinco e os Sete
Estes dois clubes (um formal e outro não) foram as grandes criações de Enid Blyton. Se Noddy foi uma criação independente, uma personagem que ganhou vida, os Cinco e os Sete estarão para sempre ligados a Enid Blyton. O Clube dos Sete, com o seu barracão de reuniões e a intrometida Susana a querer fazer parte, são mais detectivescos. Os Cinco, quatro crianças e o seu cão, são mais aventureiros. Apesar de Os Cinco serem para crianças um pouco mais velhas do que os sete, há nas duas séries uma forma de olhar para o mundo igualmente encantadora.
Por muito simples que sejam os encontros dos vilões – homens antipáticos geram desconfiança, confirmada depois pela tentativa de um crime de qualquer espécie – por muito que os dramas de criança tenham a sua parte (quem nunca teve um amigo com uma irmã chata que queria sempre intrometer-se nas brincadeiras, enquanto as desdenhava?), o mundo dos Cinco e dos Sete é já um mundo de adultos. Ou melhor, é o mundo dos adultos visto por crianças. A crença na importância e um certo mistério nas actividades dos crescidos, um gosto pela imitação dos heróis e a ideia de que, por todo o lado se pode encontrar um mistério fascinante. Já não é, como no Noddy, um mundo das crianças; é, porém, um mundo em que as crianças é que estão atentas ao mistério e vivem numa espécie de subterrâneo do quotidiano em que acontecem coisas fantásticas debaixo dos olhos de todos.
Os Colégios
Quando as gémeas entram em Santa Clara, entram a contra-gosto. Diana, porém, entra nas Quatro Torres com grandes expectativas. Umas decididas a serem mal-comportadas, outra, pelo contrário, a querer polir a honra da sua personalidade. Os perfis trocam-se rapidamente; Diana cai nas boas graças de Alice, uma doidivanas, as gémeas vão aprendendo a gostar do colégio, de lacrosse, das professoras (com a louca mam’selle à cabeça) e das suas colegas.
Blyton trouxe à imaginação das crianças uma imagem dos colégios internos que nem as saudosas memórias de Kipling em Stalkey & Co. conseguiram. A profusão de partidas, a camaradagem, as intrigas, o empenho nos desportos e nas pantomimas trouxeram uma imagem curiosa destes colégios ingleses. Se nos sete e nos cinco já havia uma espécie de lição das crianças, que descobrem mistérios, aos adultos que não os vêem, em Santa Clara e nas Quatro Torres a ideia é a de um mundo dominado pelas crianças e jovens. Quando a ordem funciona, até a anarquia é autorizada. Que nos colégios se ande em constantes farras inocentes, se tema os mais velhos e se congeminem planos para os fintar, que se faça gato sapato das professoras e, mesmo assim, o mundo nunca nos pareça fora de ordem é um caso curioso. Enid Blyton não tinha a mínima veleidade progressista para fazer das histórias de colégios histórias de subversão; estas histórias são, aliás, histórias de ordem, de um mundo com pouca presença adulta, em que a pouca que existe é suficiente para manter a carruagem nos eixos, mas sem ver o que vai lá dentro.
Mistério
Frederico Trotteville é provavelmente a criança mais complexa que Enid Blyton bosquejou. É mimado, é convencido, quer atenção, mas é também muito mais inteligente do que os amigos, tem um manancial de recursos que nenhum outro tem e é de uma generosidade sem par. Os defeitos e as qualidades misturam-se constantemente, com a generosidade a servir para conquistar os amigos e a empáfia a lutar com um verdadeiro carinho por todos. As histórias de Frederico (ou Gordo) e do seu grupo já são histórias de mistério, mais do que de aventura.
Sempre perseguidos por um polícia (O Arreda) sisudo a quem pregam partidas inocentes, as crianças divertem-se com os disfarces de Frederico, com os seus dotes de ventríloquo e com os mistérios que surgem à volta deles. Este é já um mundo mais perigoso, em que às crianças não basta encontrar mistérios – é preciso resolvê-los. É frequente o vilão desconhecido ou escondido, que tem de ser encontrado pelo grupo, e muitas vezes capturado à custa dos truques do Gordo. O Gordo não teve o êxito dos Cinco e dos Sete; no entanto, são suas as histórias mais desenvolvidas de Enid Blyton e aquelas em que aparecem verdadeiros truques detectivescos (da tinta invisível ao sair de um quarto trancado) que o leitor pode experimentar em casa.
O Segredo
Em Portugal, a colecção dos segredos – a primeira colecção de Enid Blyton com verdadeiro êxito – foi publicada como Colecção Mistério. A capa dura e o desenho evitavam a confusão com a colecção anterior. No entanto, o nome original é mais adequado, porque, do ponto de vista infantil, estes livros tratam mais de proteger um segredo do que de encontrá-lo. A Ilha Secreta, verdadeiro torrão para o imaginário infantil, trata de um grupinho de crianças que encontra por acaso uma ilha deserta e ficam – para alívio das suas cabeças chagadas por uns tios que substituem os pais pretensamente mortos – a viver nela.
Toda a ideia de independência, a construção da casa, o arranjar alimentos, fazem da estadia na ilha uma verdadeira aventura de refundação de uma sociedade. Os miúdos estão a começar um mundo, a aproveitar o que a Natureza lhes dá e a viver do selvagem; o mais importante, porém, é a difícil preservação do segredo, já que são procurados por toda a parte. A ideia de fazer parte de um segredo, a ideia de posse de um território, a ideia de independência, tudo isto faz da série uma das mais apetitosas colecções de Enid Blyton. Não tem artistas de circo, grandes vilões, ou partidas loucas. Tem apenas tempo e um pedaço de terra. E isso, como Enid Blyton bem mostrou, basta para entreter uma criança.
Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.