A sala encheu-se por completo quando Judith Butler veio a Lisboa pela primeira vez, para dar uma conferência no Teatro Maria Matos. Os organizadores fizeram, até, uma transmissão direta em vídeo, na internet e num ecrã da cafetaria do teatro, para que mais pessoas pudessem ver a convidada. Foi em junho de 2015. Judith Butler leu um texto sobre a austeridade financeira à luz das teorias queer e deixou muita gente a perguntar-se como conseguia uma académica tamanho magnetismo.
Parte da resposta estava na obra que a tinha trazido a Lisboa, Gender Trouble, de 1990, um dos livros “mais importantes da teoria feminista, dos estudos de género e da teoria queer”.
A classificação é do investigador português João Manuel de Oliveira, autor da introdução e revisor científico da versão portuguesa do livro, agora publicada pela editora Orfeu Negro. É a primeira vez nos 27 anos de existência de Gender Trouble que a respetiva tradução se faz em Portugal (no Brasil existe desde 2003).
Problemas de Género, assim intitulado, ganha foros de acontecimento. A apresentação pública está marcada para sábado, às 16h00, no Cinema São Jorge, com a presença de João Manuel de Oliveira; Pablo Pérez Navarro, especialista em Judith Butler; e a coreógrafa portuguesa Vera Mantero. Uma iniciativa incluída na programação do festival de cinema Queer Lisboa 2017, que decorre por estes dias.
É uma das obras mais conhecidas do pensamento pós-estruturalista e mantém-se como referência, tanto mais atual quanto bem vivos estão os debates sobre feminismos e sexualidades.
Em conversa com o Observador, João Manuel de Oliveira, doutorado em Psicologia Social e investigador no Centro de Investigação e Intervenção Social do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), sublinha que o livro foi “completamente inovador e rasgou muitas fronteiras”, ao apresentar uma visão nova sobre feminismo, sexo e género. Parece ter aberto caminho a algumas das atuais políticas de “igualdade de género”, mas também ajudou a criar o que muitos contestam como sendo a “ideologia do género” – expressão adotada por setores da igreja católica e utilizada no ano passado pelo papa Francisco na exortação apostólica “Alegria do Amor” (“Amoris Laetitia”).
Na passagem por Lisboa, em 2015, Judith Butler recordou a época em que escreveu o livro. Vivia em Washington D.C., era professora assistente de filosofia, na Universidade George Washington, e militava em grupos ativistas de minorias sexuais. A epidemia da sida estava no auge, com cerca de 90 mil mortes contabilizadas nos EUA, e os anos de conservadorismo do presidente Reagan aproximavam-se do fim.
“Andava muito zangada porque o feminismo continuava a apresentar a ideia romântica de uma diferença sexual entre homens e mulheres, assumindo que todas as mulheres seriam heterossexuais e que a maternidade era a identidade primária das mulheres”, disse Judith Butler em Lisboa. “Sentia que a minha existência, e a de muitas pessoas que conhecia, era apagada por estas ideias. Ao mesmo tempo, frequentava grandes manifestações pelo combate à sida, com muitos ativistas que acrescentavam uma dimensão teatral e performativa à resistência. Eu estava lá apenas a registar e a observar. Lembro-me de ter ido de férias para uma praia do Atlântico [Rehoboth Beach] onde encontrei homens gay lindíssimos. Impressionava-me muito eles serem capazes de viver certos aspetos da feminilidade muito melhor do que eu. E pensei: ‘Ainda vou escrever sobre isto’.”
Nascida há 61 anos no Ohio, EUA, Judith Butler é professora de Literatura Comparada e Teoria Crítica na Universidade da Califórnia em Berkley. Judia, lésbica, mãe de um rapaz de 22 anos, fez doutoramento em filosofia na Universidade de Yale em 1984 e é hoje vista como a guru das teorias queer. Bodies That Matter, de 1993, e Undoing Gender, de 2004, são exemplos do muito que tem vindo a escrever.
Até agora, em Portugal, apenas uma das suas obras tinha tido tradução: “Quem Canta o Estado-Nação?” (2012), em coautoria com Gayatri Spivak, especialista em estudos pós-coloniais. Mas nenhum destes livros foi tão relevante quanto Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, de seu título completo.
Claramente à esquerda, o pensamento de Butler, levou-a nos últimos anos a apoiar e analisar o problema político da Palestina, a criticar as políticas de austeridade ou a teorizar sobre o movimento de protesto Occupy Wall Street (formado a seguir à crise financeira e económica de 2008). O estudioso implicado nos temas que analisa deixou de constituir um problema, sob o ponto de vista científico, explica João Manuel de Oliveira.
“Essa implicação só é problemática perante as ideias tradicionais sobre o que é a ciência. Nas ciências sociais e humanidades lidamos com processos que são sempre políticos, necessariamente. Há uma tradição iniciada pelo próprio marxismo, e influenciada pela teoria crítica das ciências sociais, segundo a qual os estudiosos não devem fingir que não estão envolvidos nos temas.”
A autora escreveu na primeira edição, em 1990, que a obra resulta de bolsas de estudo que lhe foram atribuídas entre 1987 e 1988. Na reedição de 1999 acrescentou como fonte de inspiração o convívio de 14 anos com pessoas homossexuais na Costa Leste dos EUA.
“Ela não é a filósofa habitual, a figura que pensa o mundo retirada do mundo”, analisa João Manuel de Oliveira. “A Butler é do mundo e está metida no mundo. Não pensou apenas a partir da academia, mas também dos movimentos sociais com que se envolveu na década de 80. Isso marcou muito a minha geração. Nós já não concebemos a academia como uma esfera fora da sociedade, mas, sim, completamente envolvida com o mundo.”
“Problemas de Género” é, antes do mais, um ensaio académico e não parece ter sido escrito a pensar no grande público. Por um lado, Judith Butler reconheceu no prefácio de 1999 que reviu algumas posições assumidas e se escrevesse hoje daria atenção à realidade das pessoas transgénero e intersexuais (hermafroditas, por exemplo).
Por outro, explicou que não é gratuita a linguagem hermética pela qual muitas vezes a criticam. A autora não quis conformar-se às regras da “linguagem normalizada” por entender que “nem a gramática nem o estilo são politicamente neutros”, logo, “o preço de não nos conformarmos é a perda da própria inteligibilidade”.
A versão agora disponível faz parte de uma nova série da Orfeu Negro dedicada ao estudos de género e iniciada no ano passado com a tradução de Teoria King Kong, de Virginie Despentes. A edição não segue o acordo ortográfico de 1990. Foi traduzida por Nuno Quintas, especialista em edição de texto e em língua e literatura portuguesa e inglesa.
Familiarizado com o livro, que leu há cerca de 12 anos, demorou seis meses a fazer a tradução, entre janeiro e junho deste ano. “Fiz, deliberadamente, duas interrupções neste período, para poder burilar o texto com maior distanciamento. Além disso, houve também um período posterior à entrega da tradução, de debate ativo e fixação de termos, que durou cerca de dois meses”, diz ao Observador, em contacto por correio eletrónico. Com ele trabalharam responsáveis da editora, além de João Manuel de Oliveira e João Berhan, este último como revisor linguístico.
Questionado sobre as principais dificuldades que encontrou no processo, Nuno Quintas fala da “fluidez semântica de alguma terminologia em inglês e uma fluidez terminológica ainda maior em português”. Aponta também o “estilo da autora”.
“Foi um combate permanente: é tão fácil ser-se prolixo [palavroso] em português, e o meu estilo é o oposto. Poderia ter simplificado o texto, mas seria trai-lo”, explica o tradutor. “Escolhi o equilíbrio difícil entre a prolixidade e a legibilidade”, tendo adaptado passagens em que a tradução “resultaria confusa, atabalhoada ou simplesmente incompreensível”.
Uma das passagens célebres de “Problemas de Género”
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“E, já agora, o que é o ‘sexo’? É natural, anatómico, cromossómico ou hormonal, e como pode uma crítica feminista avaliar os discursos científicos que pretendem estabelecer-nos esses ‘factos’? O sexo terá uma história? Terá cada sexo uma só história, ou várias histórias distintas? Haverá uma história de como se determinou a dualidade do sexo, uma genealogia que exponha as opções binárias como uma construção variável?
Serão os factos aparentemente naturais do sexo produzidos discursivamente mediante variados discursos científicos ao serviço de outros interesses políticos e sociais? Se se contestar o carácter imutável do sexo, talvez esta construção chamada ‘sexo’ seja tão culturalmente construída quanto o género; talvez sempre fosse o próprio género, com a consequência de que a distinção entre sexo e género afinal não existe.
Nesse caso, não faria sentido definir género como a interpretação cultural do sexo, se o próprio sexo é uma categoria com género. O género não deveria ser concebido meramente como a inscrição cultural de significado num sexo pré-determinado (uma conceção jurídica); o género tem também de designar o próprio aparato de produção graças ao qual se estabelecem os próprios sexos.
Logo, o género não está para a cultura como o sexo está para a natureza; o género é também o meio discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ se produzem e estabelecem como ‘prédiscursivos’, anteriores à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual atua a cultura.” (pág. 63)
A obra está dividida em três partes. A primeira é sobre a linguagem e a desconstrução dos conceitos sexo e género. A segunda parte defende que a “heterossexualidade obrigatória” foi reforçada por discursos científicos do século XX. A terceira parte é a mais extensa. Regressa à distinção entre sexo e género, considerando-os performativos, e evoca como exemplo o travestismo (palavra que na versão portuguesa aparece como “drag”, igual ao original, o que o tradutor justifica com o entendimento de que o termo “drag” tem “ressonâncias culturais distintas” das palavras “travesti” e “travestismo”).
O texto “inscreve-se numa tradição de pensamento e reflexão feminista”, acrescenta o investigador português. Desde a década de 70 que algumas das ideias de Judith Butler eram discutidas, mas a filósofa revisitou-as e aprofundou-as num só volume, no que terá sido pioneira.
“Ela leva o feminismo muito a sério”, afirma João Manuel de Oliveira, para quem Problemas de Género” é a continuação, noutro contexto, de “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir, obra de referência do feminismo, publicada em França em 1949. Não por acaso, o livro de Butler cita e analisa uma célebre frase de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, a qual estaria já a apontar a tese de que sexo e género são construções.
“Definir identidades tem um problema: as identidades são pequenas demais para nos descreverem e ao descreverem-nos estão a produzir o sujeito que querem descrever”, entende João Manuel de Oliveira. “Descrever é já produzir um determinado sujeito. Quando se diz a uma menina que ela é muito feminina, está-se a construir, e a constranger, o que a menina vai ser. Não é apenas este discurso que contribui para isso, há outras estruturas sociais que o fazem. A ideia de ‘gay’, para a maioria das pessoas, incluindo muitos homossexuais, aponta para uma certa pertença a uma classe social, uma certa inserção racial, um certo capital económico. Mas há muitos gays que não são isso e, eventualmente, a palavra não esgota a possibilidade de serem outras coisas ao mesmo tempo. A Butler demonstra isso a partir da categoria ‘mulher’. Ele desconstrói a ideia de mulher, vem dizer que se trata de uma construção do discurso. Discurso não são apenas as palavras, são as instituições, desde logo o Estado, que geram representações.”
Por vezes mais citado que lido, dentro e fora da academia, o livro esteve quase três décadas sem ser vertida para o português europeu porque, escreve João Manuel de Oliveira na introdução, houve uma “enorme resistência das ciências sociais portuguesas” em integrar o pensamento pós-estruturalista – que, em resumo, entende a realidade como uma construção operada pelos sistemas social, cultural e político.
João Manuel de Oliveira considera pouco relevante falar em atraso. Defende que as ideias de Butler já tinham sido introduzidas em Portugal na tese de doutoramento da investigadora Conceição Nogueira, apresentada em 1997 na Universidade do Minho, e acrescenta que foi na dança contemporânea – com os coreógrafos Vera Mantero, Francisco Camacho, Carlota Lagido, Miguel Pereira e João Fiadeiro – que se “notaram os primeiros efeitos” de “Problemas de Género” em Portugal, logo a partir de 1991.
Para Nuno Quintas, a tradução “surge no momento certo, quando os leitores, no nosso país, estão mais abertos para refletir” sobre estas temáticas. Dá como exemplo a recente polémica sobre livros infantis da Porto Editora, com exercícios diferentes para rapazes e raparigas, a qual teve grande repercussão no espaço público.