D. Manuel Martins, o “bispo vermelho”, morreu este domingo com 90 anos, acompanhado pelos seus familiares, na cidade da Maia, segundo informa a página da diocese de Setúbal.
Foi o primeiro bispo da diocese de Setúbal que liderou entre 1975 e 1998. Ficou conhecido em todo o país pela forma como dialogava com os trabalhadores afetos à extrema-esquerda durante o período revolucionário do 25 de abril — numa altura em que a Igreja Católica apoiava no norte do país a luta contra o PCP e restantes forças revolucionárias — tendo tido uma forte ação social num distrito marcado por lutar laborais e por elevadas taxas de desemprego nos anos seguintes à Revolução.
D. Manuel Martins serviu na condição de bispo de 1975 a 1998, tendo tido nos últimos anos a condição de bispo emérito.
António Costa já lamentou a morte de D. Manuel Martins no Twitter.
A melhor homenagem à sua memória é a ação pela erradicação da pobreza.
— António Costa (@antoniocostapm) September 24, 2017
D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga, também reagiu à notícia com uma mensagem publicada na mesma rede social: “D. Manuel Martins, descanse em paz. Os pobres e os trabalhadores têm um intercessor no céu”, escreveu fazendo também alusão ao legado de despojo e solidariedade que o bispo de Setúbal deixa.
As suas homilias roçavam o discurso de intervenção e era comum falar da urgência da reforma social. “Precisamos de construir uma sociedade séria, uma sociedade solidária, uma sociedade com futuro”, disse numa das suas intervenções transmitidas agora na televisão por altura da sua morte. Numa entrevista TVI, mostrou-se ainda mais assertivo: “A igreja tem o dever de intervenção. Devemos cantar, cantar, cantar a dignidade do Homem e a Igreja tem a obrigação de ajudar as pessoas a redescobrir essa dignidade. Temos que denunciar as injustiças que forem praticadas contra essa dignidade”.
D. Manuel Martins nasceu a 20 de janeiro de 1927, em Leça do Balio, concelho de Matosinhos; foi ordenado sacerdote em 1951, após a formação nos seminários do Porto, seguindo-se a frequência do curso de Direito Canónico na Universidade Gregoriana, em Roma.
Pároco da Cedofeita, no Porto, entre 1960 e 1969, D. Manuel Martins foi nomeado vigário-geral da diocese nortenha em 1969, antes de seguir para Setúbal. Foi depois presidente da Comissão Episcopal da Ação Social e Caritativa, bem como da Comissão Episcopal das Migrações e Turismo, na Conferência Episcopal Portuguesa e ainda presidente da Secção Portuguesa da Pax Christi e da Fundação SPES.
No dia 23 de abril de 1998, o Papa João Paulo II aceitou o seu pedido de resignação ao cargo de bispo de Setúbal. O bispo emérito foi agraciado com a grã-cruz da Ordem de Cristo, durante as comemorações do 10 de junho de 2007, em Setúbal, e com o galardão dos Direitos Humanos da Assembleia da República, a 10 de dezembro de 2008, segundo se lê numa longa nota publicada pela agência Ecclesia.
Em maio de 2015, D. Manuel Martins foi condecorado com a medalha da Ordem de Timor-Leste, pelo papel que teve na restauração da independência deste país.
Em março deste ano, Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República, saudou o percurso de vida de D. Manuel Martins, bispo emérito de Setúbal.
“Nascido em Matosinhos, no norte de Portugal, D. Manuel Martins sempre manteve a fidelidade aos princípios e valores distintivos daquela região do país: o sentido de serviço aos outros, a dedicação ao trabalho e a preocupação permanente com a justiça social”, escreveu Marcelo num texto divulgado pela Presidência da República. O chefe de Estado sustentou que o antigo bispo de Setúbal coube projetar “os valores universais do humanismo cristão muito para lá dos limites da sua diocese”.
As cerimónias fúnebres do prelado celebram-se na próxima terça-feira, dia 29 de setembro, às 15h, no Mosteiro de Leça do Balio, em Matosinhos. O corpo está em câmara ardente naquele mosteiro entre as 9h e a meia-noite de segunda-feira, e entre as 9h e as 12h. D. Manuel da Silva Martins será sepultado no cemitério junto ao Mosteiro, junto aos seus pais.
Um dos maiores símbolos de despojamento da sociedade portuguesa
António Sousa Duarte, único biógrafo do bispo, considera que D. Manuel Martins ficará para sempre na História como “um símbolo de despojamento e solidariedade”. Tão alto como D. Manuel Martins o escritor coloca apenas Salgueiro Maia, que, na sua opinião, também foi um homem simples, comprometido com um ideal comum e não egoísta. “Ficarão ambos como grandes referências, faróis, luzes intensas na sociedade portuguesa, e também ambos foram amesquinhados e marginalizados”, diz Sousa Duarte em declarações ao Observador. Para o biógrafo “a sombra funda do desaparecimento de D. Manuel Martins não será maior do que a luz gerada pelo seu carisma, solidariedade, disponibilidade, discrição e modéstia”.
Durante os vários anos em que se encontrou com ele para poder traçar a sua biografia, António Sousa Duarte foi conhecendo um homem “que lutava contra todos os interesses instituídos que prejudicassem os mais fracos”, que se importava primeiro com os outros “sem nunca ter necessidade de jornalistas atrás de si ou de qualquer mediatismo”.
Relembrando que D. Manuel Martins se insurgiu contra políticos de todos os quadrantes, António Sousa Duarte relembra a união do bispo emérito a António Ferreira Gomes, também ele bispo e, ao mesmo tempo, uma figura ferozmente oposta ao Estado Novo. Uma raridade dentro da Igreja, um dos poucos que tornaram a sua oposição a Salazar clara — e sofreram disso as consequências. Mas já em democracia as histórias continuaram. Foi contra as maiorias absolutas de Cavaco por serem absolutas e um dia contradisse Mário Soares: “Talvez não haja fome em Nafarros, mas há fome em Portugal”, disse o bispo numa referência à terra onde Soares residia, em Sintra.
A sua fama de “bispo vermelho” nunca a negou e chegou a dizer numa entrevista à TSF que a “Igreja de Jesus Cristo devia ser de esquerda e não de direita”. Porém, em Setúbal, quando foi indicado, todos esperavam um perigoso conservador nortenho. Viria a revelar-se o contrário e o seu trabalho junto das classes trabalhadoras viria a ser enaltecido da esquerda à direita. Mas o vermelho era símbolo para mais alguma coisa: “Ele dizia-me: ‘se é verdade que eu sou o bispo vermelho é porque tenho as mãos manchadas de sangue dos que sofrem, daqueles que eu tento ajudar'”, conta António Sousa Duarte.
O seu compromisso com a liberdade, diz o seu biógrafo, tornou as relações do bispo com a restante hierarquia eclesiástica “tensas e difíceis” porque “a Igreja é uma instituição conservadora e por vezes até reacionária” mas se tivesse exercido nos tempos do Papa Francisco, talvez a projeção do seu trabalho tivesse saltado fronteiras. “Se ele estivesse estado no ativo com o Papa Francisco, talvez a Igreja portuguesa tivesse ganho mais força, teria de certo existido uma proximidade operativa com o Papa Francisco e acredito que ambos poderiam falar dos seus objetivos comuns”, diz António Sousa Duarte que partilhou ainda um episódio pessoal passado com D. Manuel Martins.
“Um dia, passeávamos em Matosinhos e vimos uma senhora com muitas crianças, talvez seis filhos. Pediu-nos uma esmola e eu dei-lhe 20 euros. Mais tarde, depois de almoçarmos, voltámos a passar por ela e ela estava, com os seus filhos, dentro de uma loja de doces, a comprar-lhes bolos e gomas. Eu comentei que ela podia ter utilizado o dinheiro para coisas mais úteis. E ele respondeu: ‘Até tu és um ditador. Deste o dinheiro e agora queres decidir o que se deve fazer com ele'”, conta António Sousa Duarte.