Em dezembro de 2009, José Sócrates presidiu a uma cerimónia realizada num sábado em Évora, onde foi anunciada a adjudicação do contrato para o primeiro troço da rede de alta velocidade (TGV). O projeto para a construção do troço Poceirão/Caia da linha Lisboa/Madrid ia custar 1.400 milhões de euros e foi entregue por um Governo minoritário do PS e sob forte contestação de toda a oposição.

O contrato foi assinado apenas em maio de 2010 e após várias alterações introduzidas a pedido do consórcio privado e para ultrapassar obstáculos legais e económicos ao processo. Estas mudanças terão sido feitas, de acordo com o despacho de acusação da Operação Marquês, em violação de vários preceitos legais, e por ordem direta, em alguns casos, do então primeiro-ministro. Segundo o documento, a que o Observador teve acesso, vieram a resultar em prejuízos potenciais para o Estado, mesmo no caso de a obra não avançar, como aconteceu.

A tese do Ministério Público descreve ao pormenor a execução do “Programa de Conquista do TGV”, que terá começado a ser desenhado em 2007 entre duas empresas. O Grupo Lena e a Odebrecht/Bento Pedroso, grupo brasileiro, que viriam a fazer parte do consórcio Elos a quem foi atribuído este contrato. O plano teria como protagonistas o administrador e depois presidente do Grupo Lena, Joaquim Barroca, e outro quadro ligado ao grupo de Leiria, Carlos Santos Silva — conhecido como o amigo de José Sócrates. Estariam igualmente envolvidos José Ribeiro dos Santos, antigo administrador das empresas públicas Refer e Estradas de Portugal, e um quadro da RAVE, a empresa gestora do projeto do TGV, com acesso a informação privilegiada sobre o concurso.

O programa de conquista do TGV desenrolou-se em três eixos:

  • Concorrencial — Concertação de estratégias e preços entre construtoras concorrentes,
  • Técnico — Acesso a informação confidencial que deu vantagem competitiva ao consórcio do grupo Lena,
  • Político — Intervenção do então primeiro-ministro a favor dos interesses do grupo e dos seus parceiros.

Para o desenvolvimento deste programa, a acusação sublinha que “assumia particular relevo a proximidade existente entre o Grupo Lena e o então primeiro-ministro e arguido José Sócrates e o pacto entre ambos“. O documento a que o Observador teve acesso conclui que José Sócrates “interveio a favor dos interesses do Grupo Lena e seus parceiros de negócio no domínio de procedimentos concursais, nomeadamente no âmbito da rede de alta velocidade, através da antecipação de informação e da conformação contra a lei dos respetivos procedimentos e contratos adjudicados”.

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Operação TGV terá custado 5,8 milhões em pagamentos

Segundo a mesma fonte, o Grupo Lena e Joaquim Barroco realizaram pagamentos destinados a contas de Carlos Santos Silva — este arguido terá aberto uma conta na Suíça para o efeito — mas que que teriam como destino final, José Sócrates. Os pagamentos identificados ascenderam a 2,875 milhões de euros até 2009. A partir dessa data, as contrapartidas financeiras foram realizadas através de pagamentos ao abrigo de supostos contratos entre o grupo Lena e a XLM; Sociedade de estudos e projetos de Santos Silva.

O Ministério Público considera ainda que, para obter o favor de José Sócrates, Joaquim Barroca aceitou fazer pagamentos em benefício do ex-primeiro-ministro, via Carlos Santos Ferreira, que representaram um esforço direto de 5,8 milhões de euros para o grupo Lena. O gestor terá ainda permitido o uso das contas bancárias suas e da empresa para realizar movimentos a favor de Sócrates.

A acusação vai descrevendo contrapartidas financeiras que vão sendo alegadamente entregues por Joaquim Barroca e via Santos Silva, a José Sócrates, ao longo de todo este processo e à medida que o então primeiro-ministro vai impondo a ministros, secretários de Estado, empresas e gestores o avanço do primeiro troço do TGV, ultrapassando as objeções e obstáculos legais. Entre 2009 e 2011, esses pagamentos foram identificados em faturas emitidas pela XLM por pagamentos do grupo Lena, da ordem dos 240 a 250 mil euros por ano.

A obsessão da alta velocidade

A acusação que o Observador consultou diz que o primeiro-ministro chamou a então secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino, e Carlos Fernandes, gestor com o dossiê do TGV, para lhes comunicar em março de 2009 a intenção de antecipar o lançamento do concurso, em relação ao calendário previsto. O Ministério Público alega que isso permitiria ao consórcio do Grupo Lena obter uma vantagem face aos concorrentes, porque já tinha mais informação.

A antecipação acabou por não se concretizar, porque os gestores da RAVE, Carlos Fernandes e Luís Pardal, insistiram que a avaliação de impacto ambiental não estaria concluída a tempo. O concurso foi lançado em julho de 2008 e foi apanhado pela crise financeira que se intensificou com a queda do Lehman Brothers, em setembro desse ano. Tal como outras obras públicas — em especial as famosas autoestradas — o concurso da alta velocidade prosseguiu.

Sócrates nunca deixou cair o TGV enquanto foi primeiro-ministro

O aeroporto e o TVG foram tema central na campanha eleitoral de 2009, onde o lema do investimento público e da criação de emprego, defendido pelo então líder socialista, acabou por vencer nas urnas o discurso pré-austeridade da ex-líder do PSD, Manuela Ferreira Leite.

O mês em que foi assinado o primeiro contrato do TGV — maio de 2010 — ficou marcado pelo colapso da dívida pública grega, que iniciou a crise do euro. Meses depois, começaram a cair as grandes obras, PEC (Programa de Estabilidade) a PEC. Primeiro, foi o novo aeroporto, depois a concessão da autoestradas do Centro (a única que não tinha sido adjudicada), e por fim, já em 2011, a terceira travessia do Tejo que iria fechar a ligação da linha de TGV de Madrid a Lisboa.

Mesmo parando a 40 quilómetros de Lisboa, e no lado errado do Tejo, a execução do troço Caia/Poceirão continuou até mesmo ao final do segundo Governo de José Sócrates. Foi a última grande obra a cair e já com Passos Coelho na liderança do Governo e a troika em Portugal e com o golpe de misericórdia dado pela recusa de visto do Tribunal de Contas.

A história contada na acusação descreve o que se passou nos bastidores do concurso, por trás dos discursos políticos e dos muitos estudos apresentados. E como o ex-primeiro-ministro terá usado e abusado da sua autoridade para desbloquear os vários entraves.

“José Sócrates determinou na sua esfera de competências a definição das regras e condições, à revelia das regras legais dos concursos, em prol dos interesses do Grupo Lena e em detrimento do interesse público. Invocando a importância estratégica e económica do projeto, o ex-primeiro ministro terá justificado perante os indivíduos por si instrumentalizados — ministros, secretários de Estado e gestores públicos — a adoção de procedimentos ilegais.”

De consórcio forte a imbatível

O Grupo Lena conseguiu uma participação relevante num dos consórcios mais fortes ao projeto do TGV, liderado pela Brisa e pela Soares da Costa e com a participação da própria Caixa Geral de Depósitos. E, segundo a tese da acusação, o plano montado para conquistar o TGV envolveu várias iniciativas e manobras por parte de responsáveis da construtora que asseguraram que o Elos teria uma proposta imbatível no concurso do TGV.

O Ministério Público diz que Carlos Santos Silva e Joaquim Barroca convidaram José Ribeiro dos Santos, um antigo administrador e quadro de empresas públicas como a Refer e a Estradas de Portugal, a integrar o grupo, o que foi concretizado através de uma sociedade criada como um centro de custos dentro do Grupo Lena — a Lena Managements e Investments, mais tarde designada XMI. Esta sociedade terá sido usada para camuflar pagamentos vários em troca de informação, através de contratos fictícios de prestação de serviços.

Terá sido na sequência desta contratação que foi abordado Luís Silva Marques, diretor de planeamento da RAVE, que tinha trabalhado com Ribeiro dos Santos mais do que uma vez, tendo chegado a ser sócios. O cargo de Silva Marques na empresa gestora do TGV dá-lhe acesso não só a informação confidencial, mas coloca-o em posição de influenciar a avaliação das propostas dos concorrentes junto do júri independente nomeado para decidir o concurso.

De acordo com a acusação consultada pelo Observador, o pacto entre Luís Silva Marques e Ribeiro dos Santos traduz-se no pagamento de cinco mil euros mensais, ao abrigo de “um manto formal” de um contrato de consultoria entre a XMI e uma sociedade onde Silva Marques era acionista. Estes pagamentos terão durado entre julho de 2008 e outubro de 2009, a data em que a Elos assegurou o primeiro lugar no relatório do concurso para construir o troço Poceirão/Caia.

Da nota medíocre à adjudicação

O primeiro lugar no concurso para a atribuição do TGV estava, contudo, ainda longe de concretizar a contrapartida que teria sido acordada com o Grupo Lena e seus parceiros. Durante a longa fase de negociação que se seguiu, o consórcio procurou introduzir várias alterações às condições que não só punham em causa as regras do concurso, como representavam riscos ou custos adicionais para o Estado.

Estas alterações foram em parte justificadas pelo impacto dramático que a crise teve nas condições de financiamento internacionais, mas os membros do consórcio queriam também assegurar que não se repetia o caso das concessões rodoviárias que, depois de adjudicadas, foram chumbadas pelo Tribunal de Contas, obrigando a uma negociação demorada e de alto risco para os privados.

A introdução de uma cláusula de indemnização de custos e perdas em caso de recusa de visto pelo Tribunal de Contas, e com um alcance muito maior que o previsto na lei da contratação pública, é um dos pontos que mais atenção recebe na acusação do Ministério Público. Enquanto a lei permite apenas o pagamento em correspondência direta de prestações específicas, esta disposição atribuía ao Estado, em exclusivo, a responsabilidade do dano contratual negativo decorrente da recusa do tribunal. O Estado teria de assumir todos os custos já suportados pela concessionária.

Esta e outras alterações propostas na fase de negociação da proposta final levaram o júri, em relatório preliminar, a propor a exclusão de todas as propostas por representarem um risco acrescido para o Estado e serem mais desfavoráveis face às ofertas iniciais, o que ia contra as regras do concurso. A nota dada era medíocre e não podia legitimar uma adjudicação. Quando esta informação chegou a José Sócrates, em cima das eleições legislativas de 2009, o então primeiro-ministro volta a invocar a “necessidade imperiosa de concretizar o projeto do TGV” e a aproveitar os fundos comunitários, e dá o sinal de que o relatório final deveria ser feito de forma a acomodar uma decisão de adjudicação.

O concorrente aceitou recuar em algumas propostas, de forma a eliminar os pontos que suscitaram maiores críticas do júri, mas confiando que alguns destes recuos seriam compensados no contrato final. Depois de pareceres jurídicos pedidos pelo próprio primeiro-ministro, a RAVE aceita que é admissível avançar com a adjudicação, deixando em aberto a possibilidade de introduzir ajustamentos ao contrato. Assim que é feito o anúncio da adjudicação, em dezembro de 2009, o consórcio dá início à execução material do contrato que só foi assinado cinco meses depois.

Para a acusação, esta adjudicação representa um ato ilegal “praticado por indicação do arguido (José Sócrates).”

O jurado que tentou avisar contra cláusula ilegal

Para além de despachos com ajustamentos, uma das principais peças deste complexo puzzle são as bases da concessão aprovadas apenas em maio de 2010, num Conselho de Ministros presidido por Sócrates e sem a intervenção dos gabinetes dos ministros da tutela. É no quadro legal que sustenta o contrato que é introduzida a já famosa cláusula de indemnização em caso de chumbo no Tribunal de Contas. A lei diz que, em caso de recusa de visto, o contrato é declarado nulo, bem como todos os seus efeitos.

Em violação de várias normas, acusa o MP, “o Estado assumirá à cabeça o pagamento de todos os custos incorridos pelo parceiro no contrato, no caso de recusa de visto, seja quais forem os fundamentos da recusa, não excluindo designadamente atos ilegais do respetivo decisor”.

Guillherme d'Oliveira Martins era presidente do Tribunal de Contas quanto o TGV foi chumbado

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Já com os trabalhos no terreno, o primeiro-ministro será um dos mais preocupados com as muitas dúvidas do Tribunal de Contas sobre o contrato. Sócrates, escreve a acusação, chega a encontrar-se com o presidente Guilherme d’Oliveira Martins e com o secretário-geral, José Tavares. Mas, perante os sinais crescentes de chumbo, dá ordem à Refer para retirar o pedido de visto no final de 2010. É um recuo tático, que será seguido pela alteração do procedimento do concurso e a reabertura do processo de negociação, ao qual serão apresentadas novas propostas finais que possam, pelo menos formalmente, ultrapassar as objeções dos juízes.

Nestes ajustamentos, a famosa cláusula de indemnização manteve-se, isto apesar de novos avisos. A acusação conta que um dos elementos do júri, Ernesto Ribeiro, tentou avisar o gabinete do secretário de Estado das Finanças (então Carlos Costa Pina) para o risco. Mas sem consequências práticas. Foi conduzido ao gabinete do secretário de Estado dos Transportes (Carlos Fonseca Ferreira) onde o informaram que o tema não era preocupante, porque tudo estaria já tratado com o Tribunal de Contas.

Segundo a acusação, a proposta reformulada que acabou por ser adjudicada “traduziu-se num agravamento dos custos globais estimado em 84 milhões de euros, em resultado, sobretudo, de pagamentos de desempenho a realizar pelo Estado à concessionária”. Apesar disso, a nota do concorrente foi melhorada face à proposta final.

Esta reforma do procedimento, considera o Ministério Público, foi “um expediente prático para alterar o contrato sem reequacionar” o projeto à luz do interesse público, ao contrário do que sucedeu com o concurso para o troço Poceirão/Lisboa, que incluía a terceira travessia do Tejo, e que foi anulado. Aliás, sublinha a acusação, nem o impacto dessa decisão, que na prática fazia com a que a linha de Madrid parasse no Poceirão e não em Lisboa, foi avaliado ao nível da sustentabilidade económica e da procura do troço que estava em marcha. A CP ainda avisou que os custos de exploração da linha iriam subir 10 a 12 milhões de euros por ano.

A troika chegou, o TGV não parou e a conta aumentou

O contrato volta ao Tribunal de Contas, quando as sombras do resgate financeiro já são visíveis, em fevereiro de 2011. E viria ser chumbado em março de 2012, com base em diversas ilegalidades. Mas antes de o Tribunal de Contas por um ponto final ao TGV, e apesar de o Governo do PSD/CDS já ter abandonado o projeto, a execução do contrato não parou. E essa é uma das razões pela qual a indemnização exigida pelos privados foi tão elevada: 169 milhões de euros. Também neste desenvolvimento, o despacho de acusação consultado pelo Observador aponta responsabilidades ao ex-primeiro-ministro.

Não só, o “arguido José Sócrates determinou a condição do procedimento concursal da concessão Poceirão/Caia em moldes orientados à satisfação dos interesses privados da Lena e respetivos parceiros comerciais, no âmbito do consórcio Elos”, como “também em sede de execução material do contrato foram praticados atos objetivamente favoráveis aos interesses privados da Elos, onde se integravam sociedades do grupo Lena, em detrimento do primado da prossecução do interesse público”.

O Estado tinha negociado com o consórcio que os trabalhos de execução seriam suspensos se, ao fim de seis meses, não fosse dado o visto prévio do Tribunal, o que reduziria as compensações a pagar em caso de chumbo. Em novembro de 2010, o então presidente da RAVE, Carlos Fernandes, comunica a suspensão prazos do contrato ao Elos, o que deveria materializar-se na paragem dos trabalhos. Mas o consórcio pede mais esclarecimentos. Estes demoram mais de três meses a chegar e com uma formulação que permite ao consórcio invocar boa fé na decisão de prosseguir com os trabalhos. O contrato manteve-se, assim, na prática, e ao contrário do contratualmente estipulado, em execução por parte da ELOS, gerando despesa pública.

A carta foi enviada quatro dias depois do anúncio do PEC IV, programa rejeitado pelo Parlamento e que levou à demissão do primeiro-ministro e ao pedido de ajuda internacional.

A acusação conclui que durante todo o hiato temporal que decorreu entre a verificação do termo inicial do prazo de suspensão dos prazos contratuais e a notificação da recusa de visto, e, bem assim, após esta, foi gerada despesa pública, conforme decorre dos custos reclamados em sede de processo arbitral. A Elos pediu ao Estado 169 milhões de euros e o tribunal arbitral concluiu que teria direito a uma compensação de 149 milhões de euros. Esta decisão, já tomada com o anterior Governo em funções, está a ser contestada pelo Estado em tribunal administrativo.