A “geringonça” passou o teste da primeira moção de censura ao Governo socialista. Mas estas quase quatro horas de debate obrigaram à desafinação das peças que a compõem, com o PCP e o Bloco de Esquerda a tentarem sempre não apertar demasiado os parafusos da estrutura, juntando excessivamente as várias partes. Isto ao mesmo tempo que tentavam manter intocável o pilar central. Em linguagem parlamentar, era preciso chumbar a moção de censura do CDS e não deixar cair o Governo, mas sem com isso parecer que passavam um pano sobre a ação do Executivo nos últimos quatro meses — ou seja, sem com isso acabar tudo numa moção de confiança.
O debate desta terça-feira contribuiu para o manual de instruções da “geringonça”: o que fazer numa situação que já se esperava que viesse a surgir — uma moção de censura da oposição –, mas onde não há regras previamente acordadas. Afinal, nas posições conjuntas assinadas no final de 2015 não há nada definido sobre o que fazer se surgir uma censura.
Apertar os parafusos apenas na medida certa. Não demasiado, para evitar fusão de peças
Em vários momentos do debate, o PCP e Bloco de Esquerda foram sempre sublinhando que não desresponsabilizavam o Governo pela forma como geriu os últimos quatro meses e também pelo que não fez nos governos em que participou. Ainda que as maiores críticas fossem à direita (ver o segundo ponto deste manual), a esquerda não quis acabar por fazer o favor ao PSD de transformar esta moção de censura numa moção de confiança ao Governo. No último debate quinzenal, o líder parlamentar do PSD tinha feito esse desafio a Costa, e o primeiro-ministro respondeu que “moções de confiança só apresenta quem se sente inseguro quanto à confiança, o Governo não está inseguro quanto à confiança desta câmara”.
Logo no início do debate desta terça-feira, Hugo Soares voltava à carga: “Não trouxe uma moção de confiança porque sabia que PCP e BE não a aprovariam”. Costa já não respondeu, mas o PCP e o Bloco de Esquerda fizeram por ir dando prova de autonomia, evitando a tal colagem ao Governo. Como quando a líder bloquista, Catarina Martins, se demarcou “em absoluto desta moção de censura” — a que até chamou de “obscena” –, mas logo a seguir deixou a pergunta: “Como pôde o Governo estar tão impreparado este ano?”. E deixou mais dúvidas sobre a capacidade do Governo que o seu partido apoia no Parlamento: “Como podemos saber que agora vai mesmo mudar?”. À pergunta somava ainda um lamento pela proposta do BE de aumento do número de sapadores que “ficou na gaveta” com o atual governo. O deputado do BE Pedro Soares havia de dizer que a meteorologia não pode justificar tudo e que o “Estado falhou” e até revelou recear que o Governo não tenha “capacidade para enfrentar os interesses instalados” para gerir a mudança que diz ser necessária na floresta.
No PCP, António Filipe também sublinhou que “há uma grande desconfiança nas pessoas”, e que o sentimento é que não foram tomadas as medidas necessárias. E João Oliveira, mais no fim do debate, ainda havia de acrescentar mais um ponto para esta montagem: “É evidente que a opções e decisões do atual governo têm de ser questionadas e criticadas na medida em que não inverteram opções anteriores”. Mas só nesta exata medida.
Nos Verdes, Heloísa Apolónia disse que não “desresponsabiliza o Governo pelas responsabilidades” nos incêndios trágicos e ainda confrontou Costa com a nomeação de Tiago Oliveira para a unidade de missão para enfrentar os incêndios: “O país precisa de alguma credibilidade nas escolhas que se fazem. Quando nomeia uma pessoa que vem do grupo Navigator [ex-Portucel], que tem interesses concretos ligados à floresta, é legítimo que as pessoas se questionem”.
Chegado a este ponto, é natural ter visto a estrutura a abanar ligeiramente. Se conseguiu que não caísse pode passar ao ponto seguinte.
Atirar as peças que sobram do ponto anterior para o outro lado
Equilibrada a estrutura central, o que fazer às críticas que sobram aos últimos anos de inação sobre uma reforma da floresta, que agora não há bancada que não reclame que tardou? Pegar e atirar ao lado de lá da barricada, ou seja, a PSD e CDS. Aqui, a esquerda não se poupou e a frase mais clara na responsabilização total da direita foi do líder parlamentar do PCP, João Oliveira: “Aí está o resultado dramático da política de direita que abandonou as populações do interior do país, que extinguiu freguesias e desmantelou o Estado”. O deputado comunista ainda acrescentou que, com a moção de censura, o CDS quer “esconder a política de direita que está na origem dos problemas dos incêndios e passar uma esponja sobre a responsabilidade dos seus executores”.
Criticar a apresentação da moção também foi a peça que o Bloco mais atirou para fragilizar o lado de lá, com Jorge Costa a dizer que o que o CDS tenta “é uma manobra perigosa, uma instrumentalização das vítimas e uma desumanização do adversário”, ao fazer um texto centrado nas vítimas e nos danos dos incêndios e fazer parecer que, “quem recusar o texto, estará a dizer que a morte de 100 pessoas não é grave, e será um mentecapto”. Pedro Soares também já tinha dito que “esta é a moção de censura que gostaria que na floresta ficasse tudo na mesma, com cortes nos sapadores, com o eucalipto para a celulose”. Mais: “Temos plena consciência de que, se a floresta se mantiver desordenada, não há proteção civil capaz de resistir”.
E, na sua vez, Heloísa Apolónia, dos Verdes, também deu o seu contributo para esta fase da construção, quando disse que o CDS “está a tentar responsabilizar o Governo procurando absolver tudo o que está para trás e os governos que estão para trás, sejam do PS, do PSD ou do CDS. Essa absolvição não podemos fazer”, atirou.
Atacado que está o outro lado, agora olha para a sua estrutura e ainda não está satisfeito com o resultado? Tem dúvidas sobre se a deixou suficientemente maleável? Siga para o ponto seguinte.
A estrutura parece demasiado segura. O que fazer?
Já ao cair do pano, mesmo na intervenção final do debate (em que o líder Jerónimo de Sousa não interveio), o comunista João Oliveira quis deixar nas atas do plenário o que já tinha dito nos corredores parlamentares, na última semana, depois de conhecer o texto da moção de censura do CDS. E lá deixou, límpido e cristalino, que a rejeição” da moção de censura “não pode ser considerada como motivo de confiança nas opções e decisões tomadas quanto à prevenção e combate aos fogos florestais”. Não fosse o parafuso ter ficado demasiado apertado, os comunistas trataram de lhe dar uma folga sem cerimónias e, com isso, tentar aliviar também a carga de apoio à “gerigonça” que recai sobre os seus ombros.
Precauções adicionais
Convém não esquecer que a estrutura assenta em quatro pernas e duas delas (PCP/Verdes e BE) são a garantia de estabilidade, isto é, que a maioria parlamentar é mesmo absoluta. O chefe do Executivo que beneficia deste apoio não se esquece disso, ainda assim deixou escapar uma frase que quase soou a lamento. Em resposta a Pedro Soares, do Bloco de Esquerda, António Costa falou do pacote legislativo para a reforma florestal que em julho esteve em debate e votação no Parlamento. Nessa altura, teve o Bloco do seu lado, mas o PCP acabou por falhar à última hora e num ponto-chave: o banco de terras onde iriam ficar as terras sem dono identificado, fruto do novo cadastro. A reforma fechou manca e Costa ainda o lamenta. No debate descaiu-se: “Mas os votos do PS e do BE ainda não formam uma maioria absoluta”.
Contudo, noutros pontos, acabou por aplacar receios comunistas, como o que foi referido por António Filipe. “Há para aí vozes a dizerem que, se houver folga orçamental, esta tem de ser canalizada para os incêndios, penalizando” a política de devolução de rendimentos, afirmou o comunista. “Isto não pode ser a nova troika”, disse ainda, pedindo ao primeiro-ministro uma garantia: “Esse não pode ser o pretexto para que as justas expectativas dos portugueses não sejam correspondidas”. E o primeiro-ministro deu resposta à dúvida, garantindo que o Orçamento “vai responder às necessidades”. Parte das medidas já estavam previstas na proposta inicial, como o aumento do reforço de verba em 10 milhões de euros para os sapadores florestais, ou 28 milhões para infra-estruturas necessárias à construção de faixas de proteção ao longo das vias. O resto, disse, o PS e o Governo vão acolher na discussão do Orçamento na especialidade: “Há outras medidas que não constavam do OE mas, como disse aqui na semana passada, temos a flexibilidade necessária para na especialidade introduzirmos as medidas que quereremos fazer”. Ainda acrescentou que nem todas essas medidas terão impacto no défice: ora por terem natureza excecional, ora porque são operações de engenharia financeira à luz das regras da Comissão Europeia.
Os parceiros do Governo acabaram por estar ao lado do PS no momento da rejeição da moção de censura, como se pretendia, ainda que sem aplausos (sequer sentados nos seus lugares). Voltando ao manual, o objetivo era que a estrutura chegasse ao fim inteira, não tinha de estar intacta.