“O que é o sexo? As pessoas acham que sabem o que é o sexo, mas não sabem. Sexo é uma definição política.” Foi desta forma, algo provocatória, que Pedro de Freitas deu início à sessão de Sexologia Clínica na 9ª Conferência iMed, esta sexta-feira. Para reforçar o argumento, o presidente da Academia Portuguesa de Sexologia perguntou o que era a virgindade, pondo em questão todo o conceito de ter sexo. A mulher só perde a virgindade quando rompe o hímen ou também quando pratica sexo oral e anal, perguntou Pedro de Freitas à audiência.

Sexo – o que se têm e o que faz -, género e identidade de género. Como é que estes conceitos se interligam e ao mesmo tempo se distinguem entre si, o que pode revelar o cérebro de uma pessoa cujo sexo e género não são concordantes e que tipo de intervenções podem fazer as pessoas para que se sintam melhor, foram alguns dos temas abordados nesta sessão.

Pedro de Freitas fez uma introdução à sessão Sexologia Clínica – Vera Novais/Observador

Sexo, pelo menos o sexo biológico, é o que nos torna fêmeas ou machos (tirando os casos em que estão presentes órgãos sexuais masculinos e femininos em simultâneo). Mas género é outra coisa: podemos identificar-nos como mulheres ou como homens (identidade de género) e podemos ter comportamentos femininos ou masculinos (expressão de género). Mas de facto, esta definição de mulher e homem, feminino e masculino, varia para cada cultura, varia até na opinião de cada pessoa.

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E o que acontece quando o sexo biológico não é concordante com o género?

Fala-se de uma não-conformidade de género quando o sexo biológico, definido pelos órgãos sexuais, os cromossomas sexuais ou as hormonas, não é consistente com o género da pessoa, que se define pela autoperceção, pelo comportamento ou pela aparência. Tal como o género, a não-conformidade de género é uma questão sociológica, relacionada com as expetativas sociais para o comportamento e aparência de um determinado género. Daí que, em algumas culturas, se chame “maria-rapaz” às meninas que preferem subir às árvores ou jogar à bola, em vez de brincarem com bonecas.

Na disforia de género uma pessoa:

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  • sente que existe uma grande diferença entre o género que assume e as características sexuais secundárias;
  • tem um forte desejo de se livrar das características sexuais secundárias ou de prevenir que estas se desenvolvam;
  • deseja que as características sexuais do sexo oposto se desenvolvam;
  • quer ser tratada pelo género com que se identifica;
  • tens sentimentos e reações que associa ao género com que se identifica.

Atkinson & Russell (2015) Australian Family Physician

A não-conformidade de género não implica necessariamente desconforto com o corpo, nem leva obrigatoriamente uma pessoa a desejar mudar de sexo. Mas quando isto acontece, quando o desconforto e angústia é tão grande, fala-se em disforia de género. A disforia de género não é considerada uma doença mental, mas a falta de tratamento pode levar ao suicídio, alertou Ivanka Savic-Berglund, professora de Neurologia no Instituto Karolinska, em Estocolmo (Suécia).

O tratamento – que deve ser individualizado, lembrou Pedro de Freitas – passa por psicoterapia, tratamento hormonal e cirurgia (para quem desejar realizá-la). João Décio Ferreira, especialista em cirurgia plástica e reconstrutiva, falou da sua experiência na modificação dos órgãos sexuais e na importância que tem para as pessoas poderem ter uma vida sexual satisfatória com o mínimo de cicatrizes possível.

João Décio Ferreira disse que investigou as melhores técnicas usadas a nível internacional para fazer as suas cirurgias – Vera Novais/Observador

“É comum os jovens sentirem ambiguidade em relação à identidade de género, mas nem todos são disfóricos”, disse Ivanka Savic-Berglund. “A terapia hormonal também tem efeitos secundários, por isso é necessário ter a certeza que estamos perante casos de disforia de género.” Apesar da chamada de atenção e da cautela demonstrada, a investigadora também defendeu que as crianças que mostrem disforia de género devem começar o tratamento hormonal assim que possível.

“Existem clínicas, nomeadamente na Holanda, que têm feito um trabalho muito bom: interrompem a puberdade durante dois anos, para ver se as crianças continuam a sentir desconforto ou não. Isto resulta melhor do que atrasar o tratamento hormonal”, respondeu a neurologista a uma pergunta da audiência.

Ivanka Savic-Berglund referiu que a prevalência de disforia de género (a proporção de casos existentes na população) não é maior do que 0,5%, logo é uma condição rara. Ainda assim, é um tema que lhe tem despertado a atenção – e dos órgãos comunicação social também, como referiu – e tem feito investigação científica nesta área.

É o cérebro que define o género?

O Projeto do Cérebro Humano – Human Brain Project -, que pretende construir uma base de desenvolvimento das neurociências, medicina e computação, já permitiu, entre outras coisas, perceber que o cérebro do homem e da mulher têm diferenças, como lembrou a investigadora. Daí que uma das perguntas que se tenha colocado a questão se o cérebro dos transexuais era diferente ou não.

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Transsexual é aquele cuja identidade de género não é congruente com o sexo biológico e que portanto decide mudar o corpo, quer com tratamento hormonal, quer com terapia, para que haja concordância entre sexo e género.

Numa primeira fase, Ivanka Savic-Berglund comparou o cérebro de transexuais, neste caso homens que mudaram de sexo para serem mulheres, o cérebro de homens e de mulheres heterossexuais.

Antes deste trabalho, as hipóteses mais comuns assumiam uma diferenciação atípica do cérebro durante a gravidez devida à influência genética ou às hormonas da mãe, logo que o cérebro dos transexuais (homens que queriam ser mulheres) tinha características do cérebro da mulher.

Mas o que a investigadora descobriu é que o cérebro destes transexuais é mais semelhantes ao dos homens heterossexuais do estudo do que ao das mulheres heterossexuais. As diferenças encontradas nos cérebros transexuais, são diferenças em relação aos outros dois grupos e não uma semelhança com o cérebro das mulheres.

Ivanka Savic-Berglund lembrou que o cérebro é plástico e dinâmico – Vera Novais/Observador

Se a estrutura do cérebro destes transexuais é equivalente à dos homens heterossexuais então a diferença pode estar noutro sítio. Visto que a disforia de género é caracterizada pelo desconforto com as características sexuais secundárias então a diferença poderia estar na perceção do eu e do próprio corpo. E foi este o caminho que a investigadora seguiu.

A perceção que uma pessoa tem do próprio corpo – como o reconhecimento da cara e do corpo – e a perceção do eu, em termos psicológicos, são resultado de diferentes redes neuronais, mas, regra geral, há uma interação entre estes dois centros de perceção. É assim para homens e mulheres heterossexuais, mas não parece ser o caso para transexuais.

A equipa de Ivanka Savic-Berglund comparou transexuais (mulheres cujo género é masculino) com homens e mulheres heterossexuais e verificou que os transexuais têm menos conexões entre a perceção do corpo e a autoperceção. Ao verem imagens do seu próprio corpo com o sexo com que nasceram e manipuladas com o sexo que desejavam ter, identificavam-se com mais com as imagens manipuladas do que com as reais.

Estudar se este padrão acontece noutros grupos com disforia sexual, perceber se são características inatas ou adquiridas e analisar se os tratamentos hormonais e cirúrgicos podem alterar esta conectividade são algumas das áreas que podem vir a ser estudadas no futuro.