Um membro do júri do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) é acusado pela produtora Rosa Filmes de “falta de idoneidade” e de proferir “expressões de natureza homofóbica e pouco dignificantes do cinema português”.
A Lei do Cinema estabelece que os membros dos júris do ICA “estão obrigados a atuar com imparcialidade, isenção, neutralidade e de acordo com a ética e boa conduta profissional”. A Rosa Filmes entende que o passado do jurado permite duvidar que ele cumpra aquelas obrigações. Já o ICA argumenta que não há elementos para “razoavelmente suspeitar da isenção ou retidão da conduta” do jurado, por isso rejeitou diversas queixas apresentadas pela Rosa Filmes nos últimos três meses.
Em cartas enviadas ao ICA, a Rosa Filmes afirma que Jorge de Sá Gouveia, professor de argumento na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa entre 2004 e 2014, “humilhava os alunos em aula” e “fazia sistematicamente observações de intolerância e rebaixamento”. Três ex-alunos, que preferem manter o anonimato, disseram esta semana ao Observador terem ouvido Sá Gouveia proferir comentários depreciativos constantes dirigidos a alguns realizadores portugueses. Sobre a obra de João Pedro Rodrigues, confirmaram os alunos, Sá Gouveia afirmou na sala de aula: “Filmes de paneleiros, para paneleiros, financiados por paneleiros.”
Sá Gouveia nega tudo. “É absolutamente falso que tenha tido qualquer atitude homofóbica, racista ou xenófoba em toda a minha vida”, afirmou ao Observador. “Só alguém muito mal intencionado e que nunca tenha falado comigo é que pode afirmar que sou homofóbico”, sustenta.
Concurso de meio milhão de euros
Em concreto, as reclamações da Rosa Filmes dizem respeito ao Concurso de Apoio à Escrita e ao Desenvolvimento de Obras Cinematográficas – um dos muitos concursos anuais de financiamento promovidos pelo ICA. Em 2017, os jurados deste concurso foram Jorge de Sá Gouveia, Francisco Frazão e José Júdice. A presidente do júri foi uma representante do ICA, Alda Barroso, sem direito a voto.
Aqueles jurados admitiram a concurso 134 projetos, propostos por 35 produtoras de cinema. Foram responsáveis pela atribuição de 500 mil euros do erário público. O concurso decorreu entre maio e junho e os resultados finais vão ser divulgados publicamente dentro de dias, segundo o ICA, tendo os vencedores recebido já as notificações. A Rosa Filmes viu seis projetos admitidos a concurso num total de 140 mil euros, mas não ganhou qualquer subsídio e só reclamou de Sá Gouveia duas semanas antes de saírem os resultados provisórios do concurso.
A 2 de outubro, o ICA recebeu uma primeira reclamação da Rosa Filmes, produtora dirigida pelo realizador Joaquim Sapinho, que é também professor na Escola Superior de Teatro e Cinema. A missiva dirigia-se a Alda Barroso e punha em causa a “isenção e a imparcialidade” de Sá Gouveia como membro do júri, apresentando o facto de o contrato deste com a Escola de Teatro e Cinema não ter sido renovado em 2014, por decisão do conselho científico da instituição (cinco votos favoráveis, três contra e dois em branco).
Na ata que regista a decisão, os membros do conselho científico criticaram o “comportamento ético” de Sá Gouveia “face a outros docentes e à escola” e deram nota do “difícil relacionamento com outros docentes”.
As relações com os alunos também eram complicadas. Um dos alunos que falou com o Observador garante que, numa ocasião, Sá Gouveia gritou nos corredores da escola: “Não preciso desta escola de putas e paneleiros para nada”. O ambiente nas aulas deste professor era “tenso” e os alunos recebiam “ameaças gratuitas” de que seriam “chumbados” ou “agredidos fisicamente”. “Vou-te aos cornos” seria uma expressão comum proferida por Sá Gouveia, garantem os antigos estudantes, dois da mesma turma de 2013/2014 e um terceiro que terminou a licenciatura há mais de uma década. “Não eram aulas, eram insultos e provocações durante duas horas”, classifica um deles.
Como Joaquim Sapinho, da Rosa Filmes, foi um dos professores que votaram pela não renovação do contrato de Sá Gouveia com a escola, a produtora entende que este não pode avaliar os seus projetos, além de que um dos projetos a concurso consistia numa história sobre homossexuais.
Ao Observador, o jurado declara que as queixas da Rosa Filmes constituem “uma forma de pressão sobre o ICA e sobre os jurados” e que “as decisões do júri foram expressas em acordo com outros dois jurados igualmente isentos, capazes e de enorme valor intelectual”.
Alda Barroso respondeu à Rosa Filmes a 4 de outubro, recusando o incidente de suspeição. O pedido estava mal fundamentado e deveria ter sido apresentado antes de saírem os resultados, alegou a presidente do júri. Ouvido o jurado em questão, Alda Barroso concluiu que não dispunha de elementos para “razoavelmente suspeitar da isenção ou retidão da conduta” de Sá Gouveia.
A Rosa Filmes não se conformou com a resposta. A 17 de novembro apresentou um recurso hierárquico dirigido ao presidente do ICA, Luís Chaby Vaz. Todos estes documentos foram consultados pelo Observador nos últimos dias.
O ICA retorquiu: não pode haver recurso hierárquico porque a presidente do júri, Alda Barroso, representa o ICA no concurso, mas “não se encontra sujeita a ordens ou diretrizes do presidente” da instituição.
Mensagens escatológicas
Entretanto, começou a circular no Facebook uma “captura de ecrã” com mensagens privadas trocadas naquela rede social entre Sá Gouveia e um ex-aluno, nas quais o antigo professor utilizava linguagem escatológica e antigay. O teor das mensagens originou no Facebook críticas por parte dos realizadores João Rui Guerra da Mata, Carlos Conceição, Cláudia Varejão e João Salaviza, e de atrizes como Carla Bolito e São José Lapa.
Também no Facebook – já não em mensagens privadas, mas em comentários públicos, consultados pelo Observador – Sá Gouveia tem utilizado calão para se dirigir a vários realizadores, um dos quais Carlos Conceição, a quem acusou de plágio em 2010.
Informado pela Rosa Filmes, o ICA respondeu que o perfil de Sá Gouveia no Facebook “é privado” e está “acessível apenas a um núcleo restrito de pessoas”.
O jurado confirma que é o autor das mensagens escatológicas e antigay, e diz que as escreveu em resposta a um alegado insulto sobre a sua aparência física. “Foi uma triste troca de insultos focada em estados clínicos de parte a parte”, diz ao Observador.
Quanto aos restantes comentários públicos no Facebook, sustenta: “São privados e dirigidos ao meu círculo de amigos. Os méritos que levaram à minha nomeação nada têm a ver com a frivolidade das redes sociais.”
A última reclamação da Rosa Filmes data de 7 de dezembro e dirige-se ao presidente do ICA: novo pedido de afastamento de Sá Gouveia e de repetição do concurso. Luís Chaby Vaz respondeu que a não renovação do contrato de Sá Gouveia com a Escola de Cinema não é relevante, porque não foi votada por unanimidade pelo conselho científico.
“O perfil enquanto professor não é determinante para aferir da sua competência profissional enquanto jurado”, escreveu o responsável pelo ICA. Em sede de concurso, “nunca o jurado teceu qualquer tipo de consideração de carácter discriminatório ou especificamente homofóbico”. Logo, “a bem do interesse público, estando salvaguardada a regularidade” do concurso, Luís Chaby Vaz rejeitou a pretensão da Rosa Filmes.
Um ex-aluno de Sá Gouveia na ESTC garante ao Observador que o docente manifestava com frequência “um discurso de ódio contra homossexuais, contra colegas e contra realizadores” e disso foi dado conhecimento ao diretor do departamento de cinema da escola, José Bogalheiro, atual vice-presidente da escola. Mas não houve consequências. Relata ainda que há três anos, frente a vários professores, incluindo Sá Gouveia, alunos de uma turma leram um manifesto contra a conduta deste e de outros docentes, mas sem referências a nomes.
O presidente da ESTC, João Maria Mendes, recusou responder a um conjunto de perguntas enviadas esta semana pelo Observador. Comentou que “a presidência não valoriza o teor de conversas de corredor, nem pauta a sua ação e decisões por rumores ou relatos difíceis de comprovar.” O que sugere nunca ter havido investigação às queixas dos alunos. O mesmo responsável confirmou que o afastamento de Sá Gouveia da ESTC se deveu a uma avaliação negativa feita pelos pares quanto às “competências pedagógicas e científicas” e à “ética e deontologia” do docente.
SIC e TVI escolheram Sá Gouveia
A Lei do Cinema (decreto-lei 124/2013, de 30 de Agosto) diz que os nomes dos jurados do ICA são indicados por um órgão consultivo do Ministério da Cultura, a Secção Especializada para o Cinema e Audiovisual, SECA (método que tem motivado críticas de um largo conjunto de profissionais da sétima arte congregados na Plataforma das Estruturas de Cinema). O ICA tem a competência de “declarar o impedimento ou conhecer os pedidos de escusa ou suspeição relativos ao júri”, refere a lei. O mesmo diploma estabelece que cabe ao governo aprovar a lista de jurados, função atualmente desempenhada pelo secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado.
De acordo com informação prestado pelo ICA ao Observador, o nome de Jorge de Sá Gouveia foi aprovado a 7 de abril deste ano em reunião da SECA e os proponentes deste jurado foram a SIC e a TVI, duas das entidades do setor audiovisual com assento na SECA. Tratou-se da primeira participação de Sá Gouveia em júris do ICA. Além da queixa da Rosa Filmes, a Associação Portuguesa de Realizadores pediu esclarecimentos, por escrito, sobre este assunto e recebeu do ICA uma resposta verbal, de teor idêntico às respostas dadas à Rosa Filmes.
O Observador enviou no dia 18 um conjunto de perguntas ao secretário de Estado da Cultura, mas não obteve resposta até ao momento.