Delphine (Emmanuelle Seigner) e Elle (Eva Green), as heroínas de “A Partir de uma História Verdadeira”, de Roman Polanski, são ambas escritoras, mas há um mundo de diferença entre elas. Delphine faz “best-seller” atrás de “best-seller” e o seu mais recente livro, muito autobiográfico, é um sucesso colossal. Passa horas a dar autógrafos a leitores que fazem filas intermináveis e lhe dizem o quanto os livros dela lhes são importantes, os críticos e os media andam com ela nas palminhas, é apaparicada pela sua agente, adulada pelos seus editores e carregada de compromissos sociais pela sua assistente. Elle, pelo contrário, é uma escritora invisível, uma “ghostwriter” que põe o computador ao serviço de vedetas do desporto semi-analfabetas, políticos vaidosos e celebridades fúteis e nunca vê o nome nas capas dos livros que escreve pelos outros. E é grande admiradora de Delphine.
[Veja o”trailer” de “A Partir de uma História Verdadeira”:]
Apesar de todo o seu sucesso junto da crítica e do público, Delphine não é feliz. Está cansada de andar numa roda viva, sente-se deprimida, desleixa a aparência. Dá-se bem com o ex-marido (Vincent Perez) , que apresenta um programa de livros na televisão mas passa muito tempo no estrangeiro a entrevistar escritores, a filha e filho estudam fora de Paris, e se tem amigos, não os frequenta com assiduidade. Delphine conhece Elle numa festa de promoção do novo livro, e fica logo impressionada com a sua fã. Elle é bonita, elegante, assertiva, conhece a sua obra de fio a pavio e não tem papas na língua. Delphine diz-lhe estar em ressaca de inspiração, Elle responde-lhe que está enganada e que Delphine tem um livro muito importante para escrever. Precisa é de quem puxe por ela.
[Veja a entrevista com Roman Polanski:]
Daqui até Elle se introduzir na intimidade solitária de Delphine, é um fósforo. Muda-se para casa dela e começa, gradualmente, a controlar as suas rotinas, a afastá-la das poucas pessoas que com quem contacta, a repetir-lhe que tem que deitar cá para fora o livro que está a germinar dentro dela. Elle é emocionalmente instável, ocasionalmente agressiva e assusta Delphine. Mas Delphine não consegue contrariá-la e quando uma manhã cai na escada do prédio, de regresso das compras, e parte uma perna, fica totalmente dependente da amiga. Esta pega nela e leva-a para a casa de campo do marido ausente nos EUA, para que tenha o sossego necessário para se meter ao trabalho. E escrever o livro que Elle quer, não o que Delphine tinha vagamente esboçado.
[Veja a entrevista com as duas actrizes:]
Adaptado por Polanski e por Olivier Assayas do livro homónimo de Delphine De Vigan, “A Partir de uma História Verdadeira” remete, numa versão mais atenuada, para filmes do realizador como “What?”, “Repulsa”, “A Semente do Diabo” ou “O Inquilino”, cujas histórias estão pesadas de ameaças gradualmente mais densas, têm personagens assombradas por perigos que podem ser reais ou imaginados por elas, e contemplam ambientes de tensão e medo que remetem ou para circunstâncias sobrenaturais, ou para estados de desequilíbrio mental. Por isso, temos que estar sempre de pé atrás com “A Partir de uma História Verdadeira”, tanto mais que o realizador e o seu parceiro de argumento pontuaram o filme com pistas que podem lá estar ou para reforçar o que estamos a ver, ou para sugerir que não podemos confiar no que estamos a ver.
[Veja a entrevista com a escritora Delphine de Vigan:]
Não contente com isso, Roman Polanski passa o tempo a frustrar as expectativas dos espectadores, a parecer que nos está a levar para caminhos que afinal não existem, a simular que tanto estamos no terreno do “thriller” erótico de pendor lésbico, como numa versão francófona de “Misery”, num policial de terror psicológico ou ainda numa “ghost story” passada em cenários quotidianos. Ou será que “A Partir de uma História Verdadeira” não é senão uma variação elaborada e vertiginosa, perversa e brincalhona, sobre as convulsões da criação literária, a angústia da página de Word em branco no ecrã do computador e os fantasmas e as frustrações dos escritores em “panne” de assunto?
[Veja o “photocall” do filme no Festival de Cannes:]
Dizer mais sobre o filme, será dizer demais. Resta sublinhar que Emmanuelle Seigner e Eva Green são ambas magníficas como irmãs-adversárias, aquela desmazelada e em contratipo da imagem sensual que lhe conhecemos, esta vampírica e a forçar deliberadamente a sua imagem de beldade magnetizadora; que Polanski realiza com uma discrição elegante, fluente e prática e um controlo absoluto da gradação da atmosfera de sufoco paranóico; e que, “last but not least”, há que ter atenção ao plano final de uma bem arranjada e sorridente Delphine a dar autógrafos no seu novo livro, no qual, se dúvidas ainda houvesse, fica tudo definitivamente explicado. Roman Polanski sabe-a toda. E sabe sobretudo que a ficção é muito mais inquietante e interessante do que a realidade.