Se no romance queirosiano a casa tem uma aura trágica que presencia dois horrores familiares, no imaginário contemporâneo a grande tragédia é mesmo a confusão. Eça não dá ao palácio um número preciso, um 202 nos Campos Elísios que identifique a fachada de uma casa; não topografa com precisão de geógrafo uma paisagem, de tal maneira que se reconheça Tormes mesmo quando o nome é outro; não, o Ramalhete é na Rua São Francisco de Paula, pelas Janelas Verdes, sem número (mesmo que, à época, não existisse também 202 nos Campos Elísios), o que permite à imaginação perder-se em exegéticas conspirativas.

O mote para a confusão, porém, está lançado muito antes. Cândido de Figueiredo, no princípio do século, aproveita o nome do famoso Palácio dos Maias para um esclarecimento de português: o nome Ramalhete, já de si, é confuso. Afinal, a raiz da palavra está em Ramalho, a que se acrescenta o sufixo – ete. Ramalho, porém, é apenas um aumentativo de ramo, enquanto “ete” é tradicionalmente um sufixo diminutivo. O nome seria, assim, já indicativo da confusão: significaria um ramo grande pequeno, pelo que, a bem da clareza, a casa deveria chamar-se Ramilhete (com dois diminutivos) ou, purgada dos volteios onomásticos, simplesmente Ramo.

Se o problema fosse apenas este, o malfadado palácio poderia descansar em paz. A confusão topónima porém, verteu para a geografia. A ideia de identificar o palácio, além de divertida, permite algum aproveitamento turístico. Aos pares românticos a quem não arrepiar a partilha do leito com os amores proibidos de Carlos e Maria Eduarda, a ideia de pernoitar na musa de Eça de Queirós pode ser atraente.

A busca começou, então. O caso mais famoso é o que agora albergará Madonna. Na Rua das Janelas Verdes, um Hotel decidiu crismar-se com o nome de Palácio Ramalhete. A segurança é tal que, na descrição que aparece no site, o Hotel usa as palavras de Eça, não como um simples verbete, não como uma possível inspiração, mas introduzidas por “Eça de Queirós descreveu o palácio da seguinte forma:”. O ónus da prova é magnificamente invertido, já não se trata do palácio poder corresponder à descrição, mas de um problema de estilo queirosiano: Eça quis descrever o Ramalhete, aquele é o Ramalhete, se a descrição não corresponde é porque Eça descreveu mal, permitiu a si próprio umas veleidades imaginativas, que podemos tolerar, mas que não põem em causa que este seja o Ramalhete.

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É também dito que o palácio pertence à Família Taborda, que tem os títulos de Conde da Póvoa e Duque de Palmela, para acrescentar uma pátina ainda mais elegante à casa. Acontece, porém, que a pesquisa genealógica está ao nível da literária. Os Condes da Póvoa e Duques de Palmela mantêm, desde o famoso D. Pedro, o apelido Sousa e Holstein. Mesmo com quebras de varonia, uma pesquisa rápida não encontra Tabordas entre os costados mais próximos dos Condes da Póvoa e Duques de Palmela.

É dito, também, que Eça seria amigo próximo destes Tabordas (o que justificaria o conhecimento do palácio); e se, de facto, na ascendência dos Palmelas há grandes amigos de Eça – mas Arnosos, não Palmelas – em matéria de amizade há outro candidato a Ramalhete com uma posição muito mais forte.

As Janelas Verdes, mais do que uma verdadeira localização de um palácio, representam, da forma em que Eça é mestre, um tipo social. Entre os vários lugares típicos de palácios, não são nem a Junqueira, já muito afastada e em que alguns dos novos-ricos edificavam os seus palácios, nem a parte antiga da cidade, incómoda e mais degradada. As Janelas Verdes são um lugar de famílias antigas mas com viço e preponderância social. Interessa, portanto, para a inserção social dos Maias, a situação exterior na rua das Janelas Verdes.

A descrição do Palácio, porém, parece estar mais baseada, com as largas liberdades permitidas pela imaginação, no Palácio Sabugosa, em Alcântara (em frente à sede da Carris). Afiança-o Campos Matos no seu Roteiro da Lisboa Queirosiana, e a amizade de Eça com o Conde de Sabugosa torna-o plausível. O palácio, construído ainda no século XVI como uma quinta, tinha sido remodelado ainda no século XVII pelo primeiro conde de Sabugosa e é, ainda hoje, a casa da família que o construiu.

Ora, o 9º Conde de Sabugosa, António Maria de nome próprio (coisa que de pouco adianta, dado que é um dos nomes tradicionais da família), além de partilhar o ofício com Eça – escritor de alguns romances curiosos, como Neves de Antanho, de biografias e de uma monografia sobre Sintra – era também ele um distinto comensal do grupo dos vencidos da vida. Eça foi editor dele na Revista de Portugal e ele próprio foi, também, um editor distinto. Na sua preciosa biblioteca (que ainda hoje é famosíssima), encontrou livros perdidos de Gil Vicente e de António Ribeiro Chiado que trouxe novamente a público.

O Conde de Sabugosa, ao que parece, era conhecido, entre outras coisas, pela sua surdez. Ao que parece, devia ser conhecido também pela falta de visão. Tivesse escrito, não sobre o Paço de Sintra, mas sobre o do Ramalhete e, quem sabe, teria hoje a Madonna à perna.