O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que está a julgar a Operação Fizz emitiu um mandado de detenção para notificar o ex-vice-Presidente de Angola da acusação deduzida contra si pelo Ministério Público. Depois de duas recusas da justiça angolana em cumprir cartas rogatórias com o mesmo objetivo, a Justiça portuguesa deu o passo inevitável: deter Manuel Vicente em Portugal, entregar-lhe uma cópia da acusação, pedir-lhe que preste Termo de Identidade e Residência (mesmo que a residência seja em Angola) e libertá-lo de seguida.

É, no fundo, uma tentativa de desbloquear o impasse em que o caso está mergulhado, uma vez que as autoridades de Angola têm recusado cumprir as cartas rogatórias para notificar Manuel Vicente, invocando que ainda goza de imunidade devido ao cargo que ocupou na vice-Presidência de Angola. Sem esta notificação, o Ministério Público português não consegue constituir Manuel Vicente como arguido e notificá-lo da acusação deduzida pelos crimes de corrupção ativa, branqueamento de capitais e falsificação de documento por alegadamente ter corrompido o procurador Orlando Figueira para arquivar diversos inquéritos criminais abertos no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) contra si e outros dirigentes angolanos.

Operação Fizz. Emitido mandado de detenção para entregar acusação a Manuel Vicente em Portugal

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Contudo, um caso intrincado como este tem ainda muitas dúvidas para esclarecer. Conheça as 11 perguntas que servem como passos essenciais para perceber o que pode acontecer no processo que assumiu proporções políticas e diplomáticas que levam Angola a pôr em causa as relações com Portugal.

Este mandado serve para prender Manuel Vicente?

Não. De acordo com o despacho do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi determinada a “imediata passagem de mandados de detenção, pelo tempo estritamente necessário e somente para efeitos da notificação do arguido da acusação contra si deduzida”. Isto é, o mandado de detenção não serve para prender Manuel Vicente. Serve apenas para cumprir “a prestação de TIR” — Termo de Identidade e Residência –, e do “termo de constituição de arguido”. Essa notificação também tem como objetivo informar Manuel Vicente do “prazo que a lei lhe faculta para, querendo, requerer a abertura de instrução”.

Ao Observador, o advogado Ricardo Sá Fernandes sublinha que, nesta fase, “não está em causa a liberdade de Manuel Vicente”, sendo que o mandado de detenção serve apenas para a notificação da constituição de arguido e da acusação deduzida contra si, bem como para prestar Termo de Identidade e Residência (TIR).

O juiz Alfredo Costa, que preside ao julgamento da Operação Fizz, é claro no despacho a que o Observador teve acesso: Manuel Vicente deve ser “de imediato libertado” após serem cumpridas todas as formalidades acima mencionadas por parte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, da Polícia de Segurança Pública ou da Polícia Judiciária — os órgãos de investigação criminal encarregues de cumprir o despacho judicial.

Para que serve o Termo de Identidade e Residência? Manuel Vicente tem de ter residência em Portugal?

Não. O TIR serve apenas para fins de notificação. Ou seja, o tribunal passa a ter uma morada para onde enviar missivas sobre, por exemplo, as diligências do processo que interessam ao respetivo arguido. Na prática, é um canal de comunicação entre o tribunal e o arguido.

A morada não tem de ser em Portugal. No caso de Manuel Vicente, pode ser em Angola. “O termo de identidade e residência não pressupõe que a residência da pessoa seja em território nacional e serve para futuras notificações serem dirigidas para essa morada”, explica Ricardo Sá Fernandes ao Observador. Quer isto dizer que, se Manuel Vicente prestasse o TIR com uma morada de Luanda — capital de Angola, onde o atual deputado angolano passa a maior parte do seu tempo –, o tribunal passaria a comunicar com Vicente através de missivas que seriam enviadas para essa morada.

Tendo em conta o episódio que se verificou na semana passada com Luís Filipe Vieira — o presidente do Benfica recusou-se a assinar os documentos judiciais de constituição de arguido, de prestação de TIR e de mandados de busca, tendo o seu advogado argumentado que Vieira não era arguido –, Manuel Vicente seria automaticamente notificado? A resposta é clara: sim. Mas só após um prazo de cinco dias.

“É preciso colaboração dos correios locais para atestarem ao tribunal que depositaram a correspondência naquela morada, depois de o tribunal receber esse comprovativo é que, ao fim de cinco dias, se considera que a pessoa foi notificada”, explica ainda o advogado. Ou seja, do ponto de vista processual, cumprido este trâmite, o tribunal fica “desobrigado” de outras diligências para o notificar — é considerado notificado.

E pode ser considerado arguido por essa via? A constituição de arguido “normalmente” não se faz por via postal, mas sim presencial, uma vez que a constituição de arguido implica a “a entrega de uma listagem com direitos e deveres do arguido” e a “prestação do termo de identidade e residência”, que, nessa fase, a pessoa pode ou não assinar — explica Paulo Saragoça da Mata ao Observador. O advogado, contudo, admite que a situação em causa é “anómala”. Como “o Código de Processo Penal não prevê que a pessoa não se apresente”, se a notificação tiver sido feita com sucesso, então “tem-se a pessoa por notificada e fica constituída arguida”, diz.

Mas, enfatize-se, é preciso conhecer-se uma morada formal e assumida pelo próprio Manuel Vicente. Como não foi ainda prestado o TIR, o tribunal não conhece formalmente a morada.

Quanto tempo dura o mandado? Porque não tem um prazo maior?

O tempo de duração era apenas deste fim de semana. O Ministério Público, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, entregou a promoção da detenção do ex-vice-Presidente de Angola às 18h26 desta sexta-feira, dia 2 de fevereiro, tendo a mesma sido deferida pelo juiz Alfredo Costa no mesmo dia. O despacho esclarece ainda que o mandado tem validade apenas para o presente fim de semana, ou seja, expira às 23h59 deste domingo.

Porquê este fim de semana? Porque, segundo o despacho assinado pelo procurador José Góis, a decisão foi tomada depois de o MP ter “tomado conhecimento, através da PSP, da possibilidade de Manuel Domingos Vicente se deslocar a Portugal no decurso do próximo fim de semana” (3 e 4 de fevereiro). Ideia, entretanto, contrariada pelos advogados do ex-vice-Presidente angolano, que negam que Manuel Vicente se encontre em Portugal este fim de semana. O Expresso e o Diário de Notícias dão conta de que o antigo governante está em São Tomé e Príncipe com a família e regressa a Angola esta segunda-feira.

Para os advogados contactados pelo Observador, a ideia de emitir um mandado de detenção para notificação com duração de apenas um fim de semana “não faz sentido”. “Parece bizarro”, diz Ricardo Sá Fernandes ao Observador, duvidando também da informação remetida pela PSP ao Ministério Público de que Manuel Vicente estaria em Portugal estes dias. “Deve ter havido um equívoco. Ou uma pessoa com o mesmo nome ou alguma informação errada, porque o engenheiro Manuel Vicente não viria a Portugal no atual contexto”. Ao Observador, fonte da direção nacional da PSP recusou-se a comentar a origem da informação.

Para Paulo Saragoça da Mata, o que faria sentido era um mandado de detenção com uma validade mais lata, para que, quando, ou se, Manuel Vicente entrasse no país, os Serviços de Estrangeiros e Fronteiras tivessem a indicação formar para detê-lo para notificação. “O mandado devia vigorar até ser notificado”, diz. Saragoça da Mata sugere mesmo, por exemplo, uma validade de “seis meses”. “Não faz sentido vigorar só neste fim de semana, porque, se a pessoa em questão viesse a Portugal no fim de semana seguinte, o mandado já não estaria em vigor”.

O mandado desde fim de semana só se aplica a Portugal ou também lá fora?

O mandado judicial emitido este fim de semana apenas tem efeitos em Portugal. Para ter efeitos fora do território nacional, era necessário a Justiça emitir mandados de detenção internacional, enviando os mesmos para organizações internacionais como o Europol e a Interpol — que tentariam cumprir o pedido de auxílio de cooperação internacional para deter Manuel Vicente em qualquer país com quem Portugal tenha um acordo dessa natureza.

Como pode ser emitido um mandado de captura internacional?

Através de uma declaração de contumácia por parte do tribunal. Na prática, Manuel Vicente pode ser declarado contumaz pelo juiz Alfredo Costa. O que significa isto? É alguém que, aos olhos do juiz, se recusa a comparecer em tribunal.

Uma declaração de contumácia surge precisamente para tentar solucionar casos em que os tribunais não conseguem notificar os arguidos. Ora, não só o Ministério Público não conseguiu notificar Vicente do despacho de encerramento de inquérito devido à recusa da Procuradoria-Geral da República de Angola em cumprir a respetiva carta rogatória, como o próprio Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi informado da mesma recusa.

Após a separação de processos ocorrida, e após esta tentativa frustrada do mandado de detenção em vigor este fim de semana, impõe-se precisamente a declaração de contumácia — o que implica automaticamente um mandado de detenção internacional, como o Observador já tinha noticiado em junho de 2017.

7 perguntas sobre o processo de Manuel Vicente

“Se não se consegue notificar uma pessoa, há uma declaração de contumácia da pessoa ausente. E isso faz com que sejam emitidos mandados de detenção válidos para qualquer autoridade, em qualquer país — desde que tenha com Portugal convenções para esse efeito”, explica ao Observador o advogado Paulo Saragoça da Mata, acrescentando que Angola, assim como todos os países da CPLP e da UE, é um desses países.

O mesmo explica Ricardo Sá Fernandes: “A partir do momento em que há separação de processos, as autoridades tentam notificar a pessoa. Depois, emitem editais dando um prazo para a pessoa se apresentar. E se depois disso não tiver havido notificação, então há declaração de contumácia, e isso já implica uma mandado de detenção internacional”.

Para Paulo Saragoça da Mata, a emissão dos referidos editais “já deve ter sido feita, antes da separação dos processos”, pelo que o normal era passar-se já para a declaração de contumaz. “Não se praticam atos no processo que sejam inúteis, por isso suponho que o procedimento dos editais já deve ter sido feito”, defende.

Certo é que, se o tribunal não é capaz de notificar Manuel Vicente, depois de ser declarado contumaz o ex-vice de Angola é mesmo obrigado a “apresentar-se a juízo”, segundo explica Ricardo Sá Fernandes. Aí, cabe depois ao juiz decidir se o detém ou não.

O ex-n.º 2 de Angola pode ser detido e extraditado para Portugal com um mandado de captura internacional?

Se tal mandado de detenção internacional fosse emitido, o objetivo deveria ser o mesmo do mandado emitido para este fim-de-semana: notificar Manuel Vicente da acusação, constitui-lo como arguido e aplicar-lhe o termo de identidade e residência para futuras notificações. É muito pouco provável que, nesse contexto, Portugal desejasse a extradição de Manuel Vicente. Tal só faria sentido se a Justiça quisesse, com o mandado emitido na sexta-feira, a prisão preventiva de Vicente — o que não é o caso.

Quais as razões que levam o Tribunal e o MP a não querer a prisão preventiva de Manuel Vicente?

A prisão preventiva de um arguido justifica-se, geralmente, em fase de inquérito para proteger a investigação e a obtenção de prova. De acordo com a lei portuguesa, o arguido pode ser preso preventivamente se existir o perigo de destruição de prova ou de perturbação de inquérito (combinando depoimentos com testemunhas ou com outros arguidos, por exemplo), perigo de continuidade da actividade criminosa ou perigo de fuga.

No caso concreto de Manuel Vicente, os primeiros requisitos só se justificariam se ainda não tivesse sido deduzida acusação e se o Ministério Público (MP) continuasse a tentar reunir provas contra o ex-presidente da Sonangol — o que não é o caso. A prova já foi consolidada e o MP já deduziu acusação contra Vicente.

O perigo de fuga poderia eventualmente justificar-se se Manuel Vicente tivesse sido constituído arguido e tivesse recusado, por exemplo, comparecer a uma diligência judicial — o que também não é o caso. Do ponto de vista formal, é a Procuradoria-Geral de Angola que recusa notificar Vicente invocando argumentos de soberania do Estado angolano. Não é Vicente que está a esconder-se da Justiça portuguesa — inclusivamente porque até tem advogado constituído nos autos da Operação Fizz. Chama-se Rui Patrício, é um dos mais famosos penalistas portugueses e já disse, por diversas vezes, que o seu cliente está disponível para colaborar com a Justiça portuguesa. Desde que sejam reconhecidos os seus direitos à amnistia de Angola e à imunidade a que diz ter direito enquanto vice-Presidente de Angola.

Se o mandado de detenção for cumprido, Manuel Vicente fica obrigado a não sair do país?

Não. O mandado de detenção é apenas para notificar o ex-vice-Presidente de Angola, sendo igualmente claro que Manuel Vicente deve ser “de imediato libertado” após serem cumpridas todas as formalidades das notificações ordenadas.

O que acontece se o MP conseguir notificar Manuel Vicente? Tem de comparecer em tribunal?

O Ministério Público é claro nos objetivos deste mandado: “Determinar a emissão de mandados para que o mesmo seja notificado do teor da acusação e preste TIR”, advertindo-o, nomeadamente, da possibilidade de abertura de instrução, a fim de que os autos possam prosseguir os demais termos.

Caso o Ministério Público consiga notificar Manuel Vicente, o antigo governante pode decidir se quer contestar ou não a acusação de que é alvo. Se quiser fazê-lo — é facultativo –, abre-se a fase de instrução criminal do processo. Caso o arguido não queira contestar a acusação do Ministério Público, passa diretamente para a fase de julgamento.

A presença em tribunal de Manuel Vicente é obrigatória apenas quando o seu processo chegar à fase de julgamento — e provavelmente apenas na primeira sessão. Caso decida contestar a acusação na fase de instrução, poderá fazê-lo através de um advogado, pelo que não tem de estar presencialmente no tribunal.

Recorde-se que, logo na primeira sessão do processo da Operação Fizz, o coletivo de juízes decidiu separar os processos de Manuel Vicente e dos restantes arguidos, uma vez que as autoridades angolanas se recusaram a notificar o antigo governante, alegando que o ex-presidente da Sonangol tem amnistia e imunidade que o protegem dos crimes de que está acusado.

Aliás, no Tribunal da Relação de Lisboa está pendente um recurso de de Manuel Vicente sobre a matéria da imunidade. O antigo governante alega que, uma vez que tem imunidade em Angola, não pode ser julgado em Portugal e a defesa quer que os autos relativos ao ex-vice-Presidente sejam enviados para Angola. Aliás, este domingo Luís Marques Mendes afirmou na SIC que Manuel Vicente escreveu, no passado dia 19 de janeiro, uma carta à Procuradoria-Geral de Angola a pedir formalmente às autoridades angolanas que peçam a Portugal a transferência do processo judicial para aquele país. Segundo Marques Mendes, esse pedido formal feito à PGR é indicativo de que Manuel Vicente “está disponível para ser julgado” em Angola.

A Justiça portuguesa (Ministério Público e dois tribunais) entendem que Vicente não tem direito a essa imunidade porque os factos alegadamente ilícitos que estão em causa ocorreram quando Vicente era presidente da Sonangol — antes, portanto, de ascender a vice-Presidente de Angola.

O que levou à acusação de corrupção contra Manuel Vicente?

O mandado de detenção vai piorar as relações entre Portugal e Angola?

As relações entre os dois países já estavam tensas, pelo que é fácil interpretar este passo da Justiça portuguesa como um pequeno tremor diplomático. Questionado pelo Observador sobre as implicações da emissão do mandado de detenção na relação diplomática entre os dois países, fonte do gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros, recusou-se a comentar: “Não temos nenhum comentário a fazer, trata-se de um assunto do foro judicial”.

Quem reagiu foi o ex-embaixador Francisco Seixas da Costa, que disse no Twitter tratar-se de “falta de sentido de Estado”. “Não se conhecendo os fundamentos, é difícil discutir a razoabilidade da emissão do mandado de detenção sobre Manuel Vicente. Mas é indiscutível que é uma falta de sentido de Estado estar a divulgar a existência do mandado”, escreveu. Ao jornal Público, acrescentou ainda tratar-se de um “agravamento” das relações entre os dois países. Para o diplomata, a divulgação da existência de um mandado de detenção para notificar o ex-governante de Angola “será considerado mais um agravo por parte das autoridades angolanas”.

Seixas da Costa. “É falta de sentido de Estado divulgar mandado”

Quem mais está a ser julgado?

Atualmente decorrem dois processos. Um que envolve exclusivamente Manuel Vicente e que ainda está em fase de inquérito com acusação deduzida, e outro processo que já está a ser julgado. Neste último, os arguidos são Orlando Figueira, o procurador de 57 anos que terá sido corrompido por Manuel Vicente; Paulo Amaral Blanco, advogado de 55 anos e também terá corrompido Orlando Figueira; e Armindo Pires, amigo e procurador de Manuel Vicente, representando-o a nível fiscal, financeiro e empresarial em Portugal.

Os processos têm em comum a mesma acusação da Operação Fizz, mas foram separados na primeira sessão do julgamento por Manuel Vicente ainda não ter sido constituído arguido nem notificado da acusação.

Contudo, na eventualidade do processo de Manuel Vicente passar à fase de julgamento, os dois casos poderão ser novamente unificados num só processo. Isto se o Tribunal da Relação de Lisboa mantiver o entendimento até agora unânime da Justiça portuguesa: Vicente tem ser julgado em Portugal.

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