Não foi um debate de concórdia, mas o tom desceu uns bons decibéis em relação ao que acontecia quando a anterior liderança do PSD estava entregue a Passos Coelho, que hoje se despediu do Parlamento. O primeiro-ministro respondeu ao PCP, depois ao PSD, depois ao PS e ao Bloco e, já tinham passado 1 hora e 40 minutos de debate, quando surgiu o primeiro confronto digno desse nome: em resposta ao CDS. O foco de tensão concentrou-se no extremo direito do hemiciclo (é ali que se sentam os democratas-cristãos).

Desde que é primeiro-ministro, as contendas parlamentares mais quentes de António Costa têm sido com PSD (e por vezes também, cumulativamente, com o CDS). Mas no debate quinzenal desta quarta-feira — o primeiro do PSD de Rui Rio — o alvo da picardia foi exclusivamente o CDS. No debate PSD/Governo houve sobretudo descrispação, muita cortesia e até um cumprimento especial no fim, com António Costa a atravessar o hemiciclo para ir apertar a mão e trocar duas palavras com Fernando Negrão. A seguir correu para a esquerda: para trocar umas palavras e sorrisos com os parceiros parlamentares.

Costa para esquerda. “O que combinámos não é precário, é sólido”

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A despedida do passado

Cortesia aos quilos, mas com conta peso e medida. Saudou-se quem sai, cumprimentou-se quem entra e até o partido que faz anos a 28 de janeiro. Em doses repetidas, já que no último quinzenal, mesmo sem Passos Coelho presente, Costa já tinha feito as despedidas e também do líder parlamentar do PSD Hugo Soares. E com mais ou menos diplomacia (Costa não resistiu a uma bicada a Hugo Soares).

Comecemos por quem sai: era o último dia de Pedro Passos Coelho como deputado e só na esquerda (à esquerda do PS) esse dado deste debate quinzenal foi ignorado. Ferro Rodrigues sublinhou “a forma correta e convicta” como Passos “defendeu os seus pontos de vista”, Costa elogiou-lhe “a forma como exerceu as suas funções, de acordo com a sua leitura do que é o interesse nacional” e Carlos César falou do “empenhamento cívico” do ex-primeiro-ministro. No PSD, Negrão disse a Passos que “a história saberá fazer-lhe justiça” e, no CDS, Cristas também não esqueceu a referência. Depois de o presidente da Assembleia da República intervir, a direita levantou-se num aplauso a Passos, acompanhada por alguns deputados do PS, ainda que permanecessem sentados. Já o líder parlamentar Hugo Soares que, com as voltas da mudança interna, também abandonou o cargo, só foi lembrado por Costa. Com uma ponta de acidez: “Foi um gosto tê-lo como interlocutor ao longo destas poucas semanas que convivemos em funções”.

Quem entra de fresco e quem faz anos: só António Costa o saudou e com uma tirada política envolvida (que veremos mais adiante). Sublinhou que este é, na verdade, um reencontro, ao lembrar que já que se cruzaram na Câmara de Lisboa (Negrão como vereador da oposição, depois de um mau resultado eleitoral frente a Costa. A outra saudação do primeiro-ministro foi para a esquerda, para o Bloco que completou esta quarta-feira 19 anos.

O futuro e a “retoma da normalidade”

O líder parlamentar socialista registou a mudança de liderança do PSD como “saudável” (embora veja nela uma mudança de políticas), mas António Costa, na bancada do Governo foi bem mais longe sobre as mudanças sociais-democratas. Fernando Negrão posicionou o partido: “Esta bancada é uma bancada da oposição, e irá exercer essa oposição de forma responsável e construtiva”. E António Costa leu assim: “Saúdo a forma como vê estes debates, não como um duelo quinzenal, mas com sentido de diálogo entre dois órgãos de soberania”. E disse mais, fazendo a separação de águas face ao passado recente: “É com gosto que vejo estes debates retomarem a normalidade, que certamente inspirou quem pensou na sua existência quinzenal” — já agora, foi António José Seguro, na reforma do Parlamento de 2007. Reforma essa que Costa chegou a classificar de “estúpida” e a dizer que era nefasta em termos de crispação: “Ou o primeiro-ministro mata o interpelante líder da oposição, ou o interpelante líder da oposição – ou algum dos outros líderes – mata o primeiro-ministro”. Bom, esta quarta-feira, nem uma coisa, nem outra.

Parcimónia nos ataques

Quem o viu com Hugo Soares e Luís Montenegro, os anterior líderes parlamentares do PSD, não o reconheceria ontem. Estava engripado (e na terça-feira à tarde até teve de cancelar agenda), mas Costa também marcou aqui um tom diferente face à bancada do PSD. O novo líder parlamentar do PSD escolheu a entrada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no Montepio como central (e único) da sua intervenção — não se chegou opção ou por falta de tempo, já que a dada altura Negrão olhou para o relógio e notou que apesar de o presidente não o ter mandado calar, tinha esgotado o seu tempo, parando por aí — e disse que era uma “operação de grande risco”. “É tirar aos pobres para pôr nos bancos: espanta-me o silêncio da esquerda”, argumentou. Mas de Costa não tinha mais do que tem dito nos últimos tempo: há um relatório pedido pelo antigo provedor, Pedro Santana Lopes, e antes disso nada diz sobre o assunto. Exceto que “em tese é uma boa ideia” a entrada no capital.

Nem mesmo a ameaça de Negrão sobre uma comissão de inquérito — “se houver o mínimo sinal de que esta operação não acautela os interesses financeiros da Santa Casa, o PSD usará todos os meios à sua disposição”, para investigar o caso –, suscitou em Costa uma reação mais acintosa. Só mais adiante, já numa resposta ao Bloco de Esquerda, não resistiu dizer que estava “perplexo” por Fernando Negrão se referir aos negócios que envolvem a banca como potencialmente nocivos: “Fico perplexo que dois anos depois [ do Governo resolver problemas da banca] tenha vindo falar do investimento no setor bancário como tóxico por natureza. Espero que tenha sido um deslize de estreia, ao ver o sistema financeiro como um novo tóxico”.

Afetos para tranquilizar a esquerda

Tem sido clara a preocupação do Governo nos últimos dias, em vincar diferenças entre a relação que mantém há dois anos com a esquerda e a que tem há duas semanas com o novo PSD. Neste debate quinzenal, perante a cortesia com o PSD, Costa fez questão de aproveitar para explicar qual é o seu ponto. E começou logo na primeira resposta ao PCP. Perante as insistências para mudanças nas leis laborais e a insatisfação de Jerónimo de Sousa que vê Costa a “meio caminho”, Costa registou que “estão no bom caminho” e que há razões “para continuar” o caminho que têm feito juntos. E depois, com Catarina Martins, aproveitou as reivindicações sobre a integração dos precários na Administração Pública para dizer ao Bloco que o que combinaram nas posições conjuntas “não é precário, é sólido. Temos cumprido e seguramente vamos continuar a cumprir”.

Foi na resposta à sua bancada parlamentar que aproveitou para um posicionamento político: “Não mudou a liderança do Governo nem a sua orientação. Mudou tão só a liderança do maior partido da oposição”. Isto depois de um rasgado elogio à “solução política” atual, “graças à qual o país teve “melhores resultados na economia, empresas e contas públicas”. A propósito, acenou com os números do crescimento divulgados esta quarta-feira pelo INE (tem havido sempre dados novos nos dias dos últimos debates quinzenais) para sublinhar que nada disto “é obra do acaso mas da mudança política”. Também voltou a usar a formulação “Quando uma solução funciona, não se muda”.

A seguir a esta jura de lealdade à esquerda, explicou que o diálogo com o PSD será para “matérias que transcendem a legislatura”: “Procuremos um acordo político o mais alargado possível desde a bancada do CDS à do Bloco de Esquerda. O que esta legislatura tem demonstrado é que a democracia não se enriquece com a exclusão, mas só com a integração”. E exemplificou com a descentralização, a programação do próximo quadro comunitário ou a definição do plano de investimentos prioritários do país como aquele em que deseja que o diálogo com o PSD seja “frutuoso”.

No fim do debate, Costa integrou todos (exceto Cristas, mas já lá vamos). Fez questão de ir cumprimentar Fernando Negrão à bancada do PSD, e logo a seguir foi até à esquerda, para trocar também cumprimentos com Catarina Martins e o líder parlamentar comunista João Oliveira. Estiveram uns minutos à conversa, os suficientes para a fotografia deste debate não se cingir à que encabeça este texto. Houve mais duas, algo raras:

MÁRIO CRUZ/LUSA

MÁRIO CRUZ/LUSA

E no fim, o minuto 100 do debate

Passavam então 1h40 minutos do debate quando António Costa respondeu à líder do CDS que tinha acabado de intervir no debate quinzenal, pela primeira vez nesta tarde, para pedir explicações sobre o estado do atraso nos pagamentos aos fornecedores da área da saúde. “Dívidas significam falta de qualidade dos serviços de saúde”, disse a líder do CDS. Costa respondeu que na primeira semana de março haverá pagamentos e criticou logo Cristas por “fazer as mesmas perguntas de 15 em 15 dias”. Na réplica seguinte já subia o tom como nunca até ali no debate. “Não me pergunta nada sobre os concursos para médicos especialistas, como perguntava há semanas, e sabe porquê? Porque está resolvido: abriu hoje um concurso para os médicos especialistas”.

O confronto maior e mais relevante com o CDS foi em matéria de incêndios. O curioso é que o tema já tinha sido levantado pelo PCP, logo no início do debate, quando Jerónimo de Sousa acusou o Governo de ter “criado um pânico injustificado” com o aviso do fisco sobre a limpeza de matas e também preocupado com a defesa dos pequenos proprietários contra os “interesses dos agiotas”. Costa só respondeu muito mais tarde, para dizer aos comunistas que “há um grande trabalho de fundo a fazer na floresta para que seja possível a sua manutenção, por isso foram criadas as entidades de gestão florestal, que permitiram o arrendamento de pequenas propriedades”, disse, rematando: “É absolutamente essencial compreender que se deixarmos a floresta entregue à mini e micro propriedade a floresta continuará desordenada”.

Então e com o CDS? Foi o ressuscitar de todas as responsabilidades de Assunção Cristas no Governo PSD/CDS e até de um deputado do CDS, João Almeida, que nesse Executivo foi secretário de Estado da Protecção Civil. E isto logo à primeira, depois de Cristas ter tocado no assunto, questionando o Governo sobre “o que está a ser feito para o problema de limpeza dos matos à volta das casas e aldeias, quando particulares e autarcas se queixam da inexequibilidade da operações, por não existir maquinaria para cumprir a lei”. Costa respondeu que a lei é de 2006 e que Cristas foi ministra da Agricultura com responsabilidades nesta matéria. “Não vou perguntar o que, em quatro anos como ministra, fez para cumprir essa lei. Mas há uma coisa que digo, faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para que ele seja cumprida”.

“Toda a gente foi lavando as mãos no cumprimento da lei sobre a limpeza”, disse Costa atirando depois para o deputado João Almeida, que na fila atrás de Crista ia fazendo apartes à sua intervenção. “A obrigação de limpeza é dos proprietários. Foi secretário de Estado da Protecção Civil, tem obrigação de saber isso”, disse Costa muito irritado. Se no final do debate cumprimentou PSD (por ter um novo líder parlamentar) e PCP e Bloco (por terem um novo PSD mais dialogante a ameaçar a “geringonça”), com Assunção Crista não houve matéria para cortesia de qualquer espécie.