O que é preciso para que um álbum faça parte das listas de “discos mais aguardados do ano”? Duas coisas. Primeiro, é preciso internet, que ajuda muito a espalhar a palavra. Depois, e para garantir que não se trata apenas de viralidade, é preciso sobretudo uma coisa: uma canção. Basta conhecer uma primeira canção. E é curioso ver como Lucy Dacus, uma jovem americana que parece não querer muito, consegue tanto com os primeiros temas que atira para os discos.

E é fácil de comprovar isto porque Lucy só tem dois álbuns. A estreia aconteceu com No Burden, em 2016, e a maior parte de nós estava a dormir para este rock pós teenager mas de acordes crescidos. Uma bonita canção sobre como não vale a pena termos todas as atenções sobre nós, sobre o valor duvidoso da imagem, da pose, da ironia, do estatuto social e da construção musical complexa. Às vezes é preciso pouco para dizer muito:

[“I Don’ Wanna be Funny Anymore”:]

Agora, em 2018, Lucy Dacus deu nas vistas graças à primeira canção de um novo álbum. “Night Shift” abre Historian, editado pela recomendável Matador (bom gosto, estes tipos). É mais que uma break up song porque é uma despedida depois do break up, é a ressaca a falar alto no meio de memórias tão boas que deus-lhe-livre de as largar, será severamente castigada. Os diferentes andamentos da canção ilustram esta dinâmica sentimental, ora doce, ora amarga, como dizia o outro. E sim, aconteceu-lhe tudo o que canta. Não necessariamente pela ordem dos versos, mas isso são detalhes (tem mais de seis minutos e ninguém dá por isso).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Lucy trabalha tudo isto a partir de Richmond, na Virginia, localidade entre o hipster e o tradicional-americano. E gravou Historian em Nashville, cidade que se rege pelos mesmos valores, com mais country e sotaque a caminho do sul. O resultado é um conjunto de canções saídas da garagem, mas daquelas em que os carros estão parados e a garotada prepara a limonada para vender no meio da rua. Querem uma comparação? Lembrem-se da amiga de Lucy, Julien Baker, mas com mais queda para partilhar medos e angústias com uma banda. É meio eternamente-juvenil mas só porque a autora não quer saber da idade adulta. Ou melhor: quer saber, mas não tem pressa de lá chegar com as certezas todas decoradas, até porque sabe que isso nunca vai acontecer. Ao menos é lúcida a esse ponto. E com essa lucidez faz canções que a vão salvando dos males que mais teme. Diz que a receita cura. E falou connosco ao telefone, a partir de terras americanas. Uma simpatia.

Historian fez parte das listas de álbuns mais esperados do ano logo aos primeiros dias de 2018. Como é que lidou com essa expectativa?
Ah, as listas… Sei bem que quando há uma lista dessas há pessoas que as fazem, há ali uma escolha humana, de alguém, e isso é muito bom, é muito especial. Penso mais nisso do que no significado das próprias listas. Porque há muita gente que as lê mas isso não quer dizer nada. O que significa alguma coisa é que alguém fez a lista, alguém ouviu a minha música e a escolheu. E isso é genuíno. Já aquilo que o álbum pode significar para as pessoas… A ideia de muita gente estabelecer uma relação com estas canções é algo distante para mim, é algo difícil de perceber. Tento não pensar muito nisso, às vezes é mais fácil assim.

Mas a Lucy presta atenção à música dos outros, aos álbuns de outros artistas, por isso deve saber mais ou menos o que isso representa.
Claro, mas quando se trata da minha música isso não é assim tão simples. A verdade é que nem costumo estar muito atenta ao que acontece. Nem por isso… Não sou muito de usar o computador. Adoro música, é um vício, mas aquilo que conheço por norma surge-me através de amigos, alguém me mostra uma canção ou um disco e é assim que começo. Fui assim sempre, nunca dei muita atenção à cena, ao que acontece. Agora tento estar mais a par. Tinha que ser, não é? Estão a escrever sobre mim, estamos aqui a ter esta conversa, certo? Pois, tenho de prestar alguma atenção.

Até porque muitas pessoas estão a prestar atenção à sua música, também. Ainda que seja particularmente pessoal.
Pessoal como? Pessoal tinha de ser, fui eu que a fiz.

Por pessoal quero dizer autobiográfica, reveladora de intimidade. O primeiro single, por exemplo, “Night Shift”. É a história de um final de uma relação e consequente ressaca e é claramente biográfica.
Claro que é. Porque é muito pessoal. E eu sei que não é uma história completa, que é uma interpretação, é a apropriação de uma história para o propósito de escrever uma canção, mas sou eu ali.  E atenção, tem seis minutos, cabe ali muita coisa, mas não tudo. Eu sei que muita gente vai ouvir e vai ficar com a ideia de que me conhece e sabe tudo da minha vida. Mas não sabem.

Mas isso não é meio assustador?
Tudo o que estou a cantar é verdade e faz parte de mim, mas não capta todas as nuances. É o que sinto, ou senti, mas também é alguma coisa que vivi e senti no passado. Não quero que ninguém venha ter pena de mim, não quero ser olhada com nenhum tipo de miséria. Eu estou bem. Acho que até vou aproveitar esta oportunidade para dizer a toda a gente que estiver a ler isto: eu estou bem. Podes escrever isto?

Posso, pois.
Obrigado.

Ao mesmo tempo, esta canção, só para a tomar como exemplo para as outras, está escrita de uma maneira que permite que quem a ouve se identifique. É um bom truque?
Não é um truque porque é óbvio que toda a gente já passou por uma coisa semelhante. Mais: não imaginas a quantidade de pessoas que já me disseram que viveram isto tal e qual, como se fosse só acrescentar o nomes das pessoas e estava feito.

[“Addictions”:]

As canções foram gravadas há um ano.
Sim, em março do ano passado.

E que efeito teve o tempo sobre as canções?
Mudou essencialmente a abordagem que tenho quando as canto. Foi muito difícil escrever estas coisas, foi mesmo. Hoje não é difícil cantá-las, é essencial para mim e é importante, ao mesmo tempo que é uma coisa muito emocional. Mas não é difícil. A parte da gravação, do trabalho em estúdio, se pensar na música e não na letra, essa parte eu nem me lembro muito bem, foi como foi, mais mecânico, tive mais gente, é tudo obra minha mas é menos pessoal e isso dilui-se no tempo com alguma naturalidade. Agora estou para ver é como é que isto vai acontecer ao vivo.

“Estou para ver”… Isso quer dizer que vos falta confiança? Estão com medo?
A minha dúvida é se tocar isto tudo ao vivo me vai fazer regressar a emoções e experiências que me levaram a escrever as canções. Às vezes, em algumas noites, consigo tocar e estar completamente distante de tudo o que gerou as canções. Outras vezes não, outras vezes aparece-me tudo à frente. E na verdade não consigo antecipar nenhuma das duas possibilidades, nunca sei o que vai acontecer nem quando.

Bom, ninguém consegue controlar isso, parece-me…
Pois não, eu sei.

E de qualquer maneira não é uma pessoa diferente daquela que escreveu as canções, apesar das mudanças que possam ter acontecido. Ou é?
Não, claro que não. Fazer este disco fez com que aprendesse alguma coisa, muita coisa, até. Mas não mudei, não sou outra pessoa. Na verdade, ache que sou a mesma pessoa há muitos anos. Atenção, a minha vida está diferente, mas eu sou a mesma… de repente não sei se isto está a fazer muito sentido. O álbum foi escrito essencialmente numa altura em que estava a tentar resolver alguns problemas, tentava ultrapassar dificuldades complicadas. E acho que ultrapassei muitas delas. Vivo em Richmond, na Virginia, gosto da minha vida e aprendi a lidar com as mudanças, lido muito melhor com isso. Depois de um período em que não o sabia fazer. Estou confortável comigo mesma.

E como é que escrever canções pode ajudar seja quem for? Ou seja: a Lucy escreveu canções porque passou por momentos difíceis que a inspiraram ou motivaram. Mas ao escrever as canções não está a fechar-se nesses mesmos momentos?
Pois… mas há uma dimensão de sangria que é importante. Sangrar. Deixar que o sangue corra. Não é literal, escreve isso, por favor, não quero levar ninguém a fazer asneiras.

Anotado.
Atribuir palavras a um sentimento é a maior catarse que existe. Por isso é que as pessoas falam com quem quer que seja sobre as coisas que se passam nas suas vidas, sejam mais importantes ou menos, mais felizes ou mais tristes. Isso concretiza as coisas, dá-lhes uma espécie de corpo. Sintetiza-as. E uma canção ajuda ainda mais porque transforma essas coisas em algo que deixa de ser apenas meu, é a maior das partilhas, quando escrevo uma canção é um alívio. O meu maior desejo depois já não tem a ver comigo, tem a ver com a forma como a canção pode chegar a outros e como pode influenciar seja o que for na vida de outras pessoas.

Mas também é verdade que uma canção não dá uma resposta, não fala com quem a escreve, não há feedback. Não é uma pessoa que pode responder.
Dá uma resposta sim, claro que dá. É uma resposta de mim própria. Isto parece demasiado espiritual mas não é. E acho que alguém que não escreve canções não consegue perceber bem isso. Desculpa, não quero ofender-te…

[ouça “Historian” através do Spotify:]

Não estou ofendido, eu percebi…
A verdade é que não há aqui hipótese de escolher. Se escreves canções, se é isso que a vida te levou a fazer, não vais conseguir fugir de transformar o que te acontece em canções, é tão simples quanto isso. E atenção: as pessoas que me conhecem também ouvem estas canções, a minha família, os meus amigos. Falamos sobre isso, faz parte do ciclo da minha criatividade.

Com tudo isto, sabia o que queria fazer quando chegou ao estúdio. Tinha um plano totalmente definido, não?
Depois de ter as canções feitas? Claro. Claro que tinha um plano, sabia exactamente o que fazer e como fazer. Eu e o Jacob [Blizzard], que produziu comigo o disco e tocou tudo e mais alguma coisa em estúdio. E também fez arranjos.

Fez muita coisa, o Jacob.
Nem imaginas. Sintetizando: tudo o que não implique cantar teve provavelmente o toque dele. Ele tem um impacto enorme no som de tudo isto. No estúdio já tínhamos um plano feito porque fizemos muito trabalho de casa. Gosto de gravar rápido, não gosto de desperdiçar tempo.

E quanto tempo demorou para gravar este disco?
Uma semana.

Isso é rápido.
Sim, mas é muito mais tempo do que no primeiro disco.

Que demorou…
Um dia.

Pois, demorou mais tempo, de facto.
E demorou mais por causa do som das guitarras.

Mas foi tempo bem empregue.
Só usei uma guitarra durante todo o disco, para todas as canções. Uma Gretsch White Falcon. Como é oca, tem um som muito quente, que é muito o meu estilo. E por norma ou tem distorção ou não tem, só isso. Mas depois o Jacob…

É um tipo mais complicado.
Sim. Ele os seus quase 40 pedais de efeitos ou que é aquilo. Mas tem alguns incríveis, devo dizer.

Agora é levar isso tudo em digressão.
É, temos que ver isso. Mas estou muito entusiasmada, por isso vai correr tudo bem. Talvez goste um pouco mais de trabalhar no estúdio porque tem um lado mais criativo, mas os concertos são incríveis. Porque há uma alegria imediata em ver as pessoas que gostam de ti e do teu trabalho. Pelo meio viajas. E é óptimo ter a noção de que vais regressar a casa, mas para isso tens que estar fora. E é isso que vou fazer.