Se um visitante de Marte chegasse ao nosso planeta e se sentasse num cinema onde estivesse em exibição “Lady Bird”, a primeira realização a solo de Greta Gerwig, actriz, argumentista e coqueluche da cena “indie” americana (em 2008, já tinha rodado “Nights and Weekends” com Joe Swanberg), diria que ela tinha inventado a comédia da inquietação e insatisfação adolescente. Mas não só Gerwig não traz nada de muito novo a um género sobejamente tratado pelo cinema americano (e recordemos apenas as contribuições fundamentais de John Hughes para o mesmo na década de 80, de “O Clube” a “O Rei dos Gazeteiros”), como também “Lady Bird” é o primo “indie” daquelas comédias juvenis afáveis e “feel good” que Hollywood costumava fazer – e por vezes bem — com regularidade, antes de se deixar monopolizar pelos mastodônticos filmes de super-heróis.

[Veja o “trailer” de “Lady Bird”]

Quem tenha seguido o caminho de Greta Gerwig como argumentista, em especial nos filmes do seu namorado Noah Baumbach (como “Mistress America — Quase Irmãs” ou “Frances Ha”); e visto como ela conseguiu, como actriz, criar uma “personagem” feminina distinta, que ficou plasmada na Frances Ha da fita homónima, uma mulher de sensibilidade “alternativa” e modo de ser efervescente , imatura e aventurosa, irritante e atraente, espontânea e “screwball”, vai encontrá-la, em boa parte e por procuração, na jovem heroína de “Lady Bird”, interpretada por Saoirse Ronan. Tal como vai deparar com algumas particularidades autobiográficas, dado que o filme se passa no início deste século, na Sacramento natal de Gerwig (que tem frisado nas entrevistas não ter feito um auto-retrato mal disfarçado, embora haja ali “um núcleo de verdade”).

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[Veja a entrevista com Greta Gerwig]

Lady Bird chama-se na realidade Christine McPherson, mas deu a si própria esta alcunha por achar que o seu nome é muito aborrecido. Vive com o pai (Tracy Letts), um bonzão em vias de ser despedido, a mãe, uma enfermeira que se esfalfa a trabalhar, neurótica, sempre preocupada e muito possessiva (Laurie Metcalf, também a mãe de Sheldon Cooper em “A Teoria do Big Bang”), e dois meios-irmãos. Nos seus inquietos, ansiosos, convencidos e exasperantes 17 anos, Lady Bird está convicta que não vive uma vida como deve ser e que Sacramento é uma chatice de uma cidade, e aspira ir para uma faculdade prestigiada, numa cidade grande e cosmopolita, como Nova Iorque, onde “haja cultura” e possa concretizar todos os seus (difusos) sonhos.

[Veja a entrevista com Saoirse Ronan]

Enquanto isso não sucede, Lady Bird exaspera a mãe, que não quer de maneira nenhuma que ela abra as asas e saia de Sacramento (o filme esteve para se chamar “Mães e Filhas”, de tal forma a relação entre as duas lhe é central ), entra no musical que vai ser posto em cena no colégio, prega partidas às freiras com a melhor amiga, procura insinuar-se junto de uma colega popular e rica mentindo sobre o seu estatuto social, e circula sentimentalmente entre um colega certinho e amável, que poderá ser “gay” (Lucas Hedges), e um outro (Timothée Chalamet, de “Chama-me Pelo Teu Nome”) com pose “blasé” e atitude de rebeldia encostada ao dinheiro dos papás. Para quem diz que não tem uma vida como deve ser, a de Lady Bird é bastante atarefada e cheia de variedade. Ela é que parece não dar por isso.

[Veja a entrevista com Laurie Metcalf]

Se o forte de Greta Gerwig não é a realização – “Lady Bird” é um caso de não-identidade estilística –, ela sabe bem como os adolescentes se comportam, falam, sonham, disparatam e se relacionam ou entram em fricção com o mundo e as pessoas em seu redor (especialmente com as famílias), e escreve diálogos e sequências cómicas com muita graça e estaleca (a do treinador de futebol que tem que ser encenador à última hora é um achado), mesmo que a espaços a fita seja avoada, borbulhante ou “cute” demais. E, tal como nos filmes de Woody Allen que Woody Allen só realiza mas não interpreta, o protagonista tende a representar como ele, também em “Lady Bird” a vivíssima Saoirse Ronan personifica a heroína como se estivesse a canalizar o espírito de Greta Gerwig.

[Veja uma sequência do filme]

O exagerado e deslumbrado entusiasmo em redor de “Lady Bird”, fruto da himalaica popularidade de que Gerwig goza actualmente, bem como da rarefacção radical de filmes com estas características no cinema americano, levou a que fosse coberto de nomeações e prémios os mais diversos nos EUA, que acabariam por desembocar em cinco nomeações aos Óscares. Apesar de toda a insistente e afirmativa conversa sobre “dar mais poder” às mulheres no cinema que se ouviu durante a cerimónia, “Lady Bird” saiu sem levar um só Óscar no saco. E tanto Greta Gerwig, como autora do argumento, e Ronan e Metcalfe, como Melhor Actriz e Actriz Secundária, respectivamente, podiam perfeitamente ter ganho. Mas não é nada que não fosse previsível e nos admire, porque já sabemos o que a casa em Hollywood gasta.