A contratação de Pedro Passos Coelho para o cargo de professor catedrático convidado na área da Administração Pública, pelo ISCSP, tem motivado acesa discussão e até trocas de galhardetes entre alunos. Faz sentido contratar um antigo governante para um cargo de professor universitário? E se sim, é adequado dar-lhe o grau de catedrático?

Uma coisa é certa: Mário Soares, Vitor Constâncio, Luís Amado, Paulo Macedo e Guilherme d’Oliveira Martins não são doutorados mas também foram convidados para o cargo de professor catedrático convidado.

ISCSP. Depois do abaixo-assinado, outro grupo de alunos apoia contratação de Passos Coelho

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Virgílio Meira Soares, ex-reitor da Universidade de Lisboa, ex-secretário de Estado do Ensino Superior de João de Deus Pinheiro (Governo do Bloco Central em 1985) e antigo líder da Comissão de Acesso ao Ensino Superior (que se demitiu em protesto em 2013) diz ao Observador que não considera “descabido” o convite a Passos Coelho, levantando no entanto reservas quanto ao título de catedrático. “As categorias de convidado — auxiliar, associado e catedrático — são paralelas à carreira normal académica”, começa por explicar Meira Soares. “Quando queremos alguém especialista num tema, num nicho, convidamos uma pessoa especializada. E aí convida-se para o nível que se pensa equivalente.”

Também André Azevedo Alves, professor na Universidade Católica que em 2016 fez um artigo de análise à qualidade do pessoal académico em Portugal, considera que o regime de contratação de professores convidados serve precisamente para a academia ir buscar a “experiência do mundo não-académico”. “Imagine na área da literatura: um escritor pode não ser doutorado, mas fazer sentido convidá-lo. Ou num curso de gestão desportiva, contratar José Mourinho, por exemplo”, afirma. “É claro que se Passos Coelho fosse convidado para dar física quântica, não faria sentido nenhum. Agora, para administração pública ou ciência política, faz todo o sentido”, afirma o antigo colunista do Observador.

Meira Soares concorda e até dá o exemplo de Edgar Cardoso, “o homem que mais percebia de pontes em Portugal” e que foi professor catedrático no Instituto Superior Técnico apesar de ser apenas licenciado: “Ele não era doutorado nem nada, mas isso era irrelevante, porque ele era o melhor.” Também José Brites Ferreira, professor especialista em análise do Ensino Superior, considera que a experiência profissional é o mais importante num convite desta natureza: “No caso de Passos Coelho, penso que o facto de ter sido primeiro-ministro nas circunstâncias em que foi tenha sido considerado relevante pelo ISCSP”, resume.

A lei explicita que os professores convidados “são recrutados, por convite, de entre individualidades, nacionais ou estrangeiras, cuja reconhecida competência científica, pedagógica e ou profissional na área ou áreas disciplinares em causa esteja comprovada curricularmente”, como pode ler-se no estatuto da carreira docente universitária. “O que muitas vezes se passa em Portugal”, acrescenta André Azevedo Alves numa análise para o que crê explicar uma certa “confusão” neste debate, “é que como a contratação de convidados é muito mais flexível em termos orçamentais, a universidades abusam da contratação de académicos como professores convidados. Por vezes até contratam pessoas que querem favorecer na carreira para que elas ganhem currículo.”

Ser catedrático: “uma questão de estatuto” ou “uma universidade refém de decisões políticas”?

Se os três académicos consultados não têm dúvidas relativamente à possibilidade de Passos Coelho ser contratado como professor convidado, não apresentam a mesma unanimidade sobre o facto de ter sido oferecido ao antigo primeiro-ministro o estatuto de catedrático, muito embora tenha apenas uma licenciatura.

“O cargo de catedrático é o do ‘fim da linha’. Tem mais responsabilidades: coordenar outros professores, dirigir a investigação, coordenar cursos. Mas nem sempre isto acontece na prática…”, explica Brites Ferreira. ““Existe alguma flexibilidade no regime de convidado. Ilegalidade aqui não há; pode é haver injustiça”, acrescenta, referindo-se a outros possíveis convidados que possam ter currículo inferior e a quem não tenha sido oferecido o cargo de catedrático.

André Azevedo Alves, por seu turno, considera perfeitamente natural a atribuição do grau catedrático a um licenciado nesta situação: “Aqui tem basicamente a ver com o estatuto da pessoa. No caso de um professor convidado, não é o grau académico que determina e não deve determinar [essa atribuição]”, diz. “O que eu acharia estranho é se Passos Coelho agora em meia dúzia de anos aparecesse doutorado e entrasse de repente na carreira académica. Ou se fosse professor convidado numa área em que não fosse claro como é que pode contribuir.”

Já o antigo reitor Meira Soares reconhece um grau de subjetividade nesta avaliação. “É preciso olhar caso a caso, para o currículo da pessoa”, diz. “Eu só lhe conheço a experiência de governante — que teve coisas boas e coisas más, não vale a pena estar aqui a discuti-las. Não sei se para além de ter sido governante, tem outros atributos para o cargo. Em princípio, só isso seria pouco”, resume, questionando por que se optou pelo grau de catedrático em vez de associado. “Se se põem a pensar ‘ele foi primeiro-ministro e por isso não pode ficar abaixo dos outros’, então estamos mal. A universidade não pode ficar refém de decisões baseadas em mérito político.”

Soares, Constâncio, Macedo… Os vários licenciados catedráticos

Certo é que não é a primeira vez que um antigo governante licenciado ocupa um cargo de professor catedrático convidado. Mário Soares, como se pode ler no site da sua Fundação, teve o cargo de professor catedrático convidado de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra em 1996/1997 e 1997/1998, apesar de ser apenas licenciado em História e Direito.

Também há casos de ex-governantes que não chegaram a chefes de Governo e que tiveram percursos similares: “O Vítor Constâncio foi convidado apenas com o currículo de ter sido ministro e de ter trabalhado no Banco de Portugal”, explica Brites Ferreira. Licenciado em Economia, Constâncio foi convidado para professor catedrático no ISEG em 1989, como pode ler-se na biografia que tem disponível no site da instituição.

Vítor Constâncio, licenciado em Economia, foi professor catedrático convidado no ISEG

Outro caso no ISEG foi o de Paulo Macedo. Licenciado em Organização e Gestão pela instituição, foi professor catedrático convidado na instituição entre 1986 e 1999 (mas na altura ainda não tinha ocupado funções como dirigente político). Tal viria a acontecer mais recentemente, precisamente no ISCSP, onde ocupa o cargo de professor catedrático convidado já depois de ter sido ministro da Saúde — atualmente sem remuneração desde julho de 2017, quando já estava à frente da Caixa Geral de Depósitos.

Outro exemplo de um ex-ministro sem doutoramento com cargo de professor catedrático convidado no ISCSP é Guilherme d’Oliveira Martins: o ex-presidente do Tribunal de Contas é mestre em Direito e também dá aulas como catedrático no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Ou o de Luís Amado, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e licenciado em Economia, também ele com o cargo de professor catedrático convidado, de acordo com o site da instituição.

“Isto já tem acontecido, mas não é tradição em todas as faculdades, tem a ver com a tradição das próprias instituições. A tradição da Universidade de Coimbra, por exemplo, é provavelmente diferentes da das Universidades mais novas”, resume Brites Ferreira. Um ponto também sublinhado por Azevedo Alves, que fala em aspetos da “cultura das universidades” e até de algumas “áreas científicas”. “Algumas universidades, por exemplo, se calhar tinham contratado Passos Coelho como associado e arranjado uma forma de lhe pagar mais.”

O académico sublinha que qualquer instituição de ensino superior tem o direito de, como sugere Meira Soares, não se envolver em questões de mérito político, decidindo por exemplo “não fazer contratações de ex-políticos”.”Mas a fazer — e a de Passos Coelho nem sequer foi a primeira no ISCSP — não vejo onde está a questão”, diz, sobre um Instituto que tem ou já teve no seu corpo docente nomes como António José Seguro, Rui Pereira ou Basílio Horta, para além dos já mencionados. “Das possíveis carreiras profissionais que um ex-primeiro-ministro pode seguir, esta até me parece das menos problemáticas. Parece-me bastante surpreendente este nível de debate”, acrescenta.