Eric Nepomuceno publicou o primeiro livro de contos em 1997. Por essa altura, já tinha editados quatro livros de não-ficção, fruto das suas deambulações pelo jornalismo e pelo mundo. Seguiram-se outros e ainda dezenas de traduções que o estabeleceram como um dos tradutores brasileiros mais importantes, sobretudo devido à divulgação que tem feito, desde os anos 60, dos autores mais importantes da América Latina, como Julio Cortázar, Juan Rulfo, Gabriel García Márquez ou Eduardo Galeano.
Por esse trabalho — que sempre fez por “afeto” e por amor aos seus amigos — recebeu três prémios Jabuti, o mais importante galardão literário do Brasil. Nome bem conhecido no meio literário brasileiro, o escritor viu, porém, a sua apresentação ao público português ser adiada até muito recentemente: foi só este ano que saiu em Portugal o seu primeiro livro de contos, Bangladesh, talvez e outras histórias, publicado a 1 de fevereiro pela Porto Editora. A estreia é especialmente tardia para alguém que viu o seu trabalho ser primeiramente traduzido e publicado noutros países antes de chegar à terra de Camões. Mas Eric Nepomuceno não está preocupado com isso. “As coisas acontecem, n’é?”
Como muitas coisas na vida de Eric Nepomuceno, Bangladesh, talvez foi um acaso do destino. “Uma amiga, chamada Margarida Reis, me convidou, em maio do ano passado, para a serra da Gardunha. Não conhecia, nunca tinha lá estado — foi ótimo. Lá conheci o Manuel Valente [diretor editorial da Porto Editora] e ficámos amigos. Acontece na vida. É o mais novo amigo de infância”, contou o escritor brasileiro. Depois de uns dias na Gardunha, e de uma passagem por Lisboa, antes de regressar ao Brasil, Nepomuceno decidiu deixar um exemplar da sua antologia de contos “na portaria do prédio” de Manuel Valente. Foi um gesto cordial, porque “às vezes você ganha livros que não são uma cordialidade”. “Dois, três meses depois, ele me mandou um email dizendo que tinha gostado muito dos contos e a perguntar se autorizava a publicação de alguns deles. Ele não podia publicar aquele livrão aqui, não tinha muito sentido.” Nepomuceno disse que sim.
Os 16 contos de Bangladesh, talvez foram escolhidos pelo próprio Manuel Valente e é por essa razão que o escritor costuma dizer que o livro não é dele, “é do Manuel”. “Eu só o escrevi.” O texto mais antigo tem mais de 40 anos, o mais recente cerca de dez. Em comum têm as mulheres, “as de toda a vida, e as outras, incapazes de preencher um vazio que se preenche a si mesmo, num mosaico de histórias densas, concisas e intensas, de um escritor que prefere desarticular a realidade, dizendo menos e sugerindo mais”, como refere a sinopse. Todos os contos são inspirados nalgum episódio real, nalguma história que Eric Nepomuceno ouviu contar. Porque “tudo o que está nesse livro, aconteceu”. “Tudo é verdade”, frisou o escritor ao Observador, durante a sua curta passagem por Lisboa depois de ter participado no Correntes d’Escritas, o festival literário da Póvoa de Varzim, no final de fevereiro. É que, para Eric Nepomuceno, não existe literatura sem realidade, tal como defendia Gabriel García Márquez.
“Uma vez, ele disse uma coisa com a qual concordo plenamente: se um texto de não-ficção, jornalístico, tiver uma coisa inventada, tudo o resto se desmorona. Se na ficção — na mentira –, houver uma coisa verosímil, todo o mundo vai acreditar que aquilo aconteceu. E concordo inteiramente com isso”, salientou Nepomuceno, dando como exemplo um dos contos mais conhecidos do colombiano, “O Rastro do Teu Sangue na Neve”. Nesse texto, “é tudo inventado — é tudo mentira –, mas ele teve o cuidado de ir a um hotelzinho em Paris, onde há uma cena, e contar os degraus da escada”, contou o escritor brasileiro. “Em Paris, em certas ruas, nos dias pares pode-se estacionar de um lado e, nos dias ímpares, do outro. Ele foi lá e verificou isso. Então, no conto, numa terça-feira, o cara sai correndo porque tem de mudar o carro [de sítio]. É isso que dá credibilidade à mentira”, afirmou Nepomuceno, que ganhou um dos prémios Jabuti pela tradução do livro Cem anos de Solidão, a obra-prima de García Márquez. “Literatura é usar a mentira para construir outra realidade.” Mas é no mundo real que tudo começa.
Cortar, cortar e cortar
Muitos dos contos de Bangladesh, talvez começaram com uma história que Eric Nepomuceno ouviu contar. “Se a história bater, vou interrogar a pessoa que ma contou como um polícia perverso — vou fazê-la repetir cada detalhe. E aquilo fica na memória. Quando sentir que vivi aquilo, vai para o papel”, explicou o escritor. “Nunca matei ninguém, nunca morri, até prova em contrário. Nunca fui mulher, mas tenho contos com uma voz feminina. Nunca violei nenhuma moça e tenho contos em que há moças que são violadas.” Porquê? Nepomuceno não sabe dizer. Os contos simplesmente acontecem. O mais importante é a “forma”, e é com isso que perde mais tempo. “O meu ofício é o ofício da escrita, que implica rever muito, cortar, buscar o ritmo, o som. É preciso polir muito porque é preciso convencer. Depois de estar convencido, a minha função é convencer o leitor. Convencer o leitor de que é aquela moça.”
Esse processo pode demorar muito ou pouco tempo. “Vareia”, como se diz “em português castiço”. “Há contos em que praticamente não precisei de mexer, mas tem outros que demorei anos. Dois anos, três anos”. Nesse sentido, a literatura é como a culinária. “O bom feijão é o feijão dormido, que se fez ontem para se comer hoje. O conto é a mesma coisa. Quando termino um conto, penso: ‘O Rubem Fonseca vai morrer de inveja’. No dia seguinte, volto a lê-lo e aí penso: ‘O Rubem Fonseca vai morrer de rir’. Porquê? Porque evidentemente falta ritmo, falta entrosamento. Aí é que começa o bom trabalho. Nunca terminei um conto e pensei: ‘Pronto, está terminado’. Nunca. Bom, é mentira: quando era jovem, sim.” Nessa altura, o processo de escrita era outro: Eric Nepomuceno limitava-se a despejar numa folha de papel aquilo que lhe vinha à cabeça, dando o texto como terminado pouco tempo depois. Hoje já não é assim. Apesar disso, admite gostar daqueles primeiros contos espontâneos. Só que, se pudesse, hoje “mexeria” neles.
“Literatura é usar a mentira para construir outra realidade.”
“Havia um pintor impressionista francês, que agora não me lembro do nome — e não vou lembrar mesmo —, que costumava ir ao d’Orsay [em Paris], vestido com uma gabardina e retocar os próprios quadros [quando o museu estava vazio]. Naquele tempo não havia televisão ou fotografias dele, e ninguém sabia quem ele era. Era uma coisa maravilhosa! Para mim, um artista é isto. Volta e meia ele ia preso, claro — estava pintado no d’Orsay. Se eu pudesse, talvez… Puxa, parece letra de canção! Se eu pudesse talvez o fizesse. Mas não posso, não o vou fazer.”
É por isso que perde sempre muito tempo a editar o que escreve. “Sou um datilógrafo muito rápido e um escritor muito lento”, saltando constantemente da ficção para a não-ficção, género com que se deu a conhecer como autor. “Vario entre literatura de ficção e literatura de não-ficção. Uma hora estou fazendo uma coisa, outra hora estou fazendo outra coisa. É o que vem e não o que me disponho a fazer.” Porque, para Eric Nepomuceno, o jornalismo também é literatura, mas uma literatura “com regras próprias, leis próprias”. “Quem acha que o jornalismo não é um género literário é porque escreve mal”, disse, em tom de brincadeira, acrescentando que há um certo “snobismo” entre escritores, que acreditam que “o jornalismo é um género melhor que a gente faz para pagar as contas”. “Não concordo. Defendo que o jornalismo é um género literário. Há quem não concorde. Que bom!” É por essa razão que trata a ficção e a não-ficção da mesma forma, “com o mesmo cuidado”. “Revejo, corto, estruturo — é igual.”
Esse cuidado extremo também se aplica à tradução. “Combino sempre com os editores que a quarta prova é minha. E não existe quarta prova, pelo menos no Brasil — há o original, a preparação do texto e depois vai para a gráfica. Antes de ir para a gráfica, volta para mim, porque posso querer mexer.” E Eric Nepomuceno mexe sempre, até porque, na tradução, o compromisso é “com o autor” e não necessariamente com o editor que o contrata. Quem com ele trabalha, sabe sempre que nunca entrega nada dentro do prazo. “A não ser quando há uma emergência”, o que aconteceu muito recentemente, com um livro de textos sobre futebol de Eduardo Galeano.
Ao contrário do que talvez muita gente julga, Galeano era um grande fã de futebol. “Quando foi a Copa do Mundo de 78, estávamos exilados em Espanha, eu em Barcelona e ele em Madrid. Eu era correspondente de uma revista brasileira e, nesse ano, a conta de telefone da revista explodiu porque víamos os jogos e depois discutiamo-los por telefone. Ele fez um livro lindo sobre futebol. Lindo, lindo. Dos melhores livros de futebol que jamais foram escritos e agora o que fizeram foi pescar textos perdidos, de livros, de jornais, de não sei o quê. O editor — que não é meu editor mas que é meu amigo — me disse: ‘Escuta, quero lançar o livro em março’.” O prazo era apertado mas, como era pouco material, Nepomuceno aceitou. “Entreguei antes de vir para cá mas, em geral, sou lento.” Cem anos de Solidão, que tem perto de 400 páginas, levou-lhe quase dois anos a concluir. “Trabalhava nele todo o dia, duas, três horas. Demorei uns sete meses para terminar a tradução e um ano para o rever porque, enquanto não ficasse do jeito que queria, não adiantava. Ah, mas e o contrato? Que me processassem.” Apesar de ter respeito pelo editor, o mais importante é o livro. O autor.
Traduzir por amor
Apesar de ter sido responsável por traduzir alguns dos mais importantes escritores latino-americanos para português, Eric Nepomuceno considera que a tradução é apenas “a terceira perna” do seu “ofício”. “Não sou tradutor”, admitiu. “Tenho muito respeito pelo tradutor profissional, mas não sou tradutor.” Di-lo com simplicidade, por considerar que, para ser tradutor, é preciso viver da profissão. O que não acontece consigo. O que o leva a traduzir é “outra coisa”: “Traduzo os meus amigos, aquilo que me instiga e me inquieta. Não trabalho com encomendas. Não, se quero traduzir tal livro, proponho ao editor e, se ele aceitar, eu traduzo”. O que, regra geral, acontece. “Tenho 80 livros traduzidos, mereço alguma confiança. Alguma.”
A longa história de Eric Nepomuceno com a tradução começou há 46 anos, na Argentina, para onde se mudou em 1973, em plena Ditadura Militar brasileira, para trabalhar como correspondente para o Jornal da Tarde. “Tinha 24 anos e fui morar para Buenos Aires. Naquele tempo, não tinha Internet, Facebook, essas coisas. Comecei a conhecer escritores, a ler o que eles escreviam e a ficar amigo deles”, recordou. “Havia muitas revistas literárias, coleções periódicas de contos, colectâneas e antologias. Então, comecei a traduzir para que os meus amigos no Brasil conhecessem os amigos que eu estava a fazer na Argentina.” Começou a fazê-lo “por afeto”, um sentimento que perdura até hoje. “Claro que cobro e trato de cobrar cada vez mais, e o editor de pagar cada vez menos, mas o que sempre me moveu foi a vontade de levar aos meus amigos no Brasil os amigos que a vida foi me dando pelo mundo.” Com algumas excepções, claro: “Houve livros de autores que me instigaram de alguma maneira, mas que nunca conheci. Mas por que não?”. Foi o caso do espanhol Miguel de Unamuno, que morreu em 1936, do cubano Virgilio Piñera e do chileno Gonzalo Rojas.
“O que sempre me moveu [na tradução] foi a vontade de levar aos meus amigos no Brasil os amigos que a vida foi me dando pelo mundo.”
Alguns desses amigos eram já escritores consagrados no Brasil, mas havia outros que eram completamente desconhecidos do público brasileiro. Era esse o caso de Eduardo Galeano, que tinha ficado famoso depois da publicação de As Veias Abertas da América Latina (1971), dois anos antes de ser preso na sequência do golpe militar uruguaio que o obrigou depois a exilar-se na Argentina, onde fundou a mítica revista Crisis. No Brasil, contudo, “ninguém sabia quem era” Eduardo Galeano. Foi Nepomuceno que o deu a conhecer aos brasileiros, tendo sido responsável pela primeira edição brasileira do uruguaio e de todas as outras que se seguiram. Foi também graças a si que Antonio Skarmeta começou a ser publicado no Brasil. Do chileno, autor do romance Carteiro de Pablo Neruda, “só conheciam o filme”, realizado por Michael Radford e Massimo Troisi em 1994. Apesar de, inicialmente, ter tentado convencer uma editora brasileira a encomendar o trabalho a outro tradutor por estar demasiado ocupado, foi Nepomuceno que acabou por traduzir os dois livros de Skarmeta editados no Brasil. “Tudo é assim”, comentou o escritor, para quem “nada é muito importante”. “As coisas acontecem. A vida é muito mais criativa do que qualquer ser humano. Ela arma as coisas, cria as coisas.”
Outro amigo querido que teve oportunidade de traduzir foi Juan Rulfo. “Ele estava traduzido no Brasil mas não gostava das traduções. De jeito nenhum. Ele me pediu a vida inteira para o traduzir, mas havia questões contratuais. Até que a minha editora no Brasil, a Record, comprou os direitos a outra editora e aí me deu [a tradução].” Isso aconteceu por volta de 2000, 14 anos depois da morte do escritor mexicano. “Traduzi com um deleite e uma dor infinita porque Rulfo tinha morrido em 1986. Ele nunca viu as traduções que fiz, que ele me tinha pedido. Porque é que eu traduzi o Rulfo? Porque ele me tinha pedido, por afeto.” Com Julio Cortázar também foi assim — apesar de sempre ter tentado traduzir o argentino no Brasil, Eric Nepomuceno só acabou por conseguir fazê-lo já depois da morte do amigo.
“Traduzi com um deleite e uma dor infinita porque Rulfo tinha morrido em 1986. Ele nunca viu as traduções que fiz, que ele me tinha pedido.”
Em 1959, Cortázar tinha publicado As Armas Secretas, obra que inclui o conto “El Perseguidor” — inspirado no músico norte-americano Charlie Parker —, uma das suas obras-primas. O livro nunca tinha sido publicado no Brasil, e Eric Nepomuceno insistia constantemente com as editoras brasileiras para que fosse publicado. Contudo, estas respondiam-lhe sempre que a coletânea de contos já tinha sido traduzida e publicada no Brasil. Cortázar dizia o contrário. Já depois da morte do autor argentino, a 14 de fevereiro de 1984, uma conhecida de Nepomuceno, que tinha então assumido a direção de uma editora brasileira, ligou-lhe a pedir sugestões de traduções. Uma vez que não lhe ocorria nada, o escritor ficou de ligar de volta quando se lembrasse de alguma sugestão. “Desliguei o telefone e, dois minutos depois, liguei para ela: ‘As Armas Secretas, do Julio Cortázar’”, contou o escritor ao Observador. Como sempre, a conhecida de Eric Nepomuceno insistiu que o livro já estava traduzido no Brasil. “Então me manda. Dou 500 reais pelo livro”, disse-lhe. Meia hora depois, a conhecida de Eric Nepomuceno voltou a ligar-lhe. “Quando é que você começa a traduzir?”, perguntou-lhe. “Já comecei.”
Publicada em 1994 pela editora José Olympio (hoje parte do grupo editorial Record), a tradução de As Armas Secretas valeu a Eric Nepomuceno o segundo Prémio Jabuti (recebeu o primeiro em 1993, com a tradução de Doze Contos Peregrinos, de Gabriel García Márquez), que lhe foi atribuído no ano seguinte, dez anos depois da morte de Julio Cortázar. Apesar de ser um dos prémios literários mais importantes do Brasil, o Jabuti não significou nada para Nepomuceno. “Trocava todo aquele cheque, a estatueta, o diabo, para poder ligar para o Julio e dizer: ‘Hermanito, yo logré. Depois de dez anos, consegui’. Não ganhei prémio nenhum. O prémio que queria não era esse.”
Os Jabuti foram apenas três dos prémios de tradução que Eric Nepomuceno foi arrecadando ao longo dos anos e que, para ele, não têm significado absolutamente nenhum. “O maior elogio que um tradutor pode receber é o seguinte: ‘Nem parece tradução’. Esse é o prémio”, afirmou. “O resto, a estatueta na prateleira, as moças que ficam impressionadas e tal, nada é importante. Não me seduzo por esse tipo de prémio, digamos. É legal, claro, todo o mundo é vaidoso, mas não quer dizer nada. Tem escritores que escrevem para receber prémios — tem um monte —, mas nunca me apresentei num concurso, num prémio. Nunca inscrevi nada meu em lugar nenhum. Se o editor quiser inscrever, que inscreva. Mas eu não.” Nem tão pouco as traduções que faz são homenagens. “Quem sou eu para homenagear os meus amigos? Não.” No caso de Julio Cortázar, “estava cumprindo uma dívida de gratidão, uma dívida de afeto para com alguém que foi tão generoso” consigo. “Nunca pude retribuir aquela generosidade. O carinho? Talvez. Tinha uma dívida aberta para com ele, como tinha para com o Rulfo. No México, o Rulfo foi meu pai.”
Com Galeano a dívida não era menor mas, ao contrário do que aconteceu com outros amigos escritores, Nepomuceno pode pagá-la ainda em vida. Foi o tradutor do escritor uruguaio no Brasil durante mais de 30 anos, trabalhando diretamente com ele em todas as traduções, que eram revistas e aprovadas por si. Essa colaboração, fruto de uma amizade profunda, só terminou com a morte de Galeano, a 13 de abril de 2015. Nessa data, Nepomuceno ficou “órfão de irmão”.
“Trocava todo aquele cheque, a estatueta, o diabo, para poder ligar para o Julio e dizer: ‘Hermanito, yo logré’. Não ganhei prémio nenhum. O prémio que queria não era esse.”
Eric Nepomuceno conheceu Eduardo Galeano depois de chegar a Buenos Aires, nos primeiros meses de 1977. “Quando estava saindo do Brasil, e sabia que ia custar para voltar, um camarada me pediu que levasse um envelope para um jornalista uruguaio chamado Alberto Carbone. Naquele tempo, a gente conspirava por envelope também.” Assim que chegou à capital argentina, o correspondente do Jornal da Tarde combinou um encontro com o tal Carbone num café de Buenos Aires. “Ele começou a fazer perguntas sobre o Brasil — perguntas políticas — e respondi ao que podia”, lembrou. Carbone era “legal e tal” mas o assunto acabou por morrer. Por volta das sete da tarde, os dois jornalistas levantaram-se e despediram-se.
Antes de se ir embora, Alberto Carbone lembrou-se de falar de “um compatriota” que estava prestes a lançar “uma revista de cultura”. “De repente te interessa”, disse a Nepomuceno. A revista era a mítica Crisis e o “compatriota” Eduardo Galeano. “Para mim era Joaquim Silva”, admitiu o escritor brasileiro. “Não tinha ideia de quem era Eduardo Galeano.” Ainda assim, Nepomuceno decidiu seguir Carbone e conhecer o tal Galeano. “O Carbone conversou um pouco com ele e Galeano começou a me perguntar sobre o Brasil. Lembro que eram nove e meia da noite quando liguei para minha casa para dizer à minha namorada que ia levar um amigo para jantar. E pronto, começou aí e terminou quando ele morreu.”
Dois dos contos de Bangladesh, talvez, “Novembro” e “A promessa”, são dedicados a Eduardo Galeano. Neste último, a dedicatória é partilhada com o cineasta brasileiro Ruy Guerra e com o músico Chico Buarque por razões que nada têm a ver com uma homenagem. “Uma vez, fomos almoçar os quatro. Tinha apresentado o Eduardo ao Chico fazia pouco tempo e, no meio do almoço, já não me lembro quem, deu a ideia seguinte”: cada um contava uma história à pessoa que estava ao lado e depois essa pessoa fazia o que quisesse com ela. Se passados três anos essa história não fosse usada por quem a recebeu, esta podia ser utilizada por qualquer um dos outros três amigos. “Nenhuma história valia nada”, garantiu Nepomuceno, mas a que Ruy Guerra contou a Chico Buarque era “uma coisa maravilhosa”. “Três anos depois, escrevi ao Chico dizendo: ‘Malandro, você não fez nada. Azar teu! Estou escrevendo’.” Galeano também foi avisado e, tanto ele como Buarque, pediram a Nepomuceno que não estragasse a história. Por essa razão, “por via das dúvidas, dediquei para os três”. “Assim ninguém pode falar mal.”
As veias abertas da América Latina
Por causa da dedicação que tem aos seus amigos, Eric Nepomuceno acabou por ser responsável pela divulgação de alguns dos melhores autores da América Latina no Brasil. Uma divulgação que continua, de certo modo, a fazer ainda hoje, através do seu programa Sangue Latino, produzido pela Globo. A ideia foi do seu filho, Filipe, e o primeiro programa teve como convidado o músico Chico Buarque. Nepomuceno fez questão que assim o fosse. Esse primeiro programa começa com Buarque, de óculos de sol, a falar da sua relação com os filhos e com os netos. “Filipe falou ‘fala alguma coisa’ e eu falei. E ele disse ‘Chico, fala alguma coisa’ e ele falou. ‘É que a gente está testando o som’. O Chico estava de óculos escuros, eu estava de óculos escuros. Era verão. ‘Chico, como é que é o negócio de ser avô?’, perguntei-lhe, e ele começou a contar. A conversa foi indo, foi indo… Uma hora, perguntei: ‘Filipe, quando é que vai começar a gravar?’. Ele queria me jogar pela janela porque estava gravando tudo!”, contou o escritor, acrescentando que “foi a primeira vez na televisão brasileira que o Chico apareceu sem os olhos”, muito azuis, porque estava de óculos de sol. “E os dois de camisa preta. Era pura máfia!” Ainda por cima, o programa era a preto e branco.
Eduardo Galeano também por lá passou, anos antes da sua morte, e a conversa passou inevitavelmente pela América Latina, que o uruguaio considerava ser “a pátria das diversidades humanas”. Eric Nepomuceno é da mesma opinião. “Somos completamente diferentes entre nós”, afirmou em conversa com o Observador. “Cada país tem vários povos e busca-se uma unidade. Não conheço nenhuma outra região que tenha a variedade cultural de Cuba, do México, da Guatemala, do Paraguai, o que faz com que seja uma diversidade dos povos, das pessoas.” Nepomuceno apercebeu-se disso durante as muitas viagens que fez pelo continente americano, enquanto assistia à ascensão de várias ditaduras sul-americanas, incluindo a brasileira, mas também à sua queda. Mas a paz que ajudou estabelecer — levando cartas, escrevendo duros artigos a partir de Buenos Aires — parece ter desaparecido. À medida que atenção aumenta em países como a Argentina e até no próprio Brasil, o escritor admite olhar para o que se passa na América Latina com “muita tristeza e muita indignação”.
“Em alguns países, levámos anos a construir alguma coisa, a tentar mudar alguma coisa. Nos últimos dois, três anos, está tudo a ser destruído no meu país, na Argentina e agora no Chile. O que você destrói em três anos anos leva duas, três gerações para ser reconstruído e a minha geração já não vai ver isso. Sou um cidadão da América Latina e vejo com furiosa indignação e tristeza o que se passa.” Apesar de não conseguir prever o que vai trazer o futuro, Nepomuceno espera que, um dia, “a maré volte”. “Que a maré enchente, como nós dizemos em português do Brasil, volte. Porque a maré vazia está levando tudo.”