Chegou sozinho, sem dar nas vistas, e quase 20 minutos antes da hora marcada. Ainda não eram 14h. Acompanhado do presidente do núcleo de estudantes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Simão de Carvalho, entrou discretamente e a tempo de beber café. A sala do auditório onde decorreu esta quarta-feira o ciclo de conferências “Economia hoje, futuro amanhã” ainda estava a meio gás, apesar de a conferência de José Sócrates estar marcada para as 14h15. O ex-primeiro-ministro só apareceria pouco depois das 14h30 e a primeira coisa que disse aos alunos que o esperavam foi gabar-lhes a “coragem” por o terem convidado. Seguiram-se quase duas horas de intervenção a culpar a austeridade implementada pelo anterior Governo por ter “escavado” ainda mais no buraco da crise: “A austeridade como resposta à crise falhou em toda a linha”, disse, invocando as diferenças face à forma como os EUA saíram da crise de 2008.
Do brexit à Catalunha, de Macron a Donald Trump, passando pelo Facebook e as restrições à liberdade em nome da segurança, pelo “desencantamento europeu”, e terminando em elogios “imodestos” ao seu próprio governo — o último governo com um “projeto de modernização” –, a palestra do ex-primeiro-ministro teve de tudo um pouco: só não teve nem uma palavra de justiça, de processos judiciais, Operação Marquês, crimes ou acusações de corrupção. Nem nas perguntas feitas pelos jovens estudantes, onde Simão de Carvalho, garantiu ao Observador que não havia qualquer restrição temática.
“Gabo-vos a coragem e o desassombro de não cederem ao politicamente correto e fazerem o que acham que melhor contribui para a perceção do projeto europeu”, disse quando tomou a palavra, depois de Simão de Carvalho ter reforçado que a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra é “inequivocamente um local de reflexão social sem doutrina política vinculada”. Prova disso era a escolha de José Sócrates como orador deste ciclo de conferências, que arrancou em fevereiro com Pedro Passos Coelho, e por onde já passaram nomes como Marques Mendes, Jorge Coelho ou Teodora Cardoso. “Primamos pelos pilares democráticos e pelas opiniões díspares”, disse ainda o presidente do núcleo de estudantes, lembrando que para as 17h00 estava marcada naquela mesma universidade uma manifestação de estudantes contra o aumento das propinas e o regime fundacional. “Só esperamos que seja dado à manifestação dos estudantes pelo futuro do ensino superior o mesmo eco que foi dado a esta conferência”, ironizou o jovem.
Uma “história mal contada”. Entre o “buraco da austeridade” e a falta de modernização
O tema era o projeto europeu depois da crise económica e foi nisso que José Sócrates se centrou. A ideia foi fazer um ajuste de contas com a história, apesar de admitir que ainda não há “distância suficiente”. “Esta história está mal contada”, disse, explicando que, quando a crise de 2008 rebentou, a Europa iniciou uma narrativa de que “a origem estava nos défices e não nos mercados, logo, que a crise era da responsabilidade dos Estados”.
“Criou-se a ideia de que tudo se resolveria com menos proteção social, com redução da despesa, com essas tretas todas, mas deu no que deu”, disse, apontando depois o dedo “àqueles que aplicaram uma receita desastrosa de acordo com uma ideologia dominante na Europa, e que agora vêm dizer que as coisas estão melhores porque essa ideologia da austeridade aconteceu — não, essa história está mal contada”, disse.
A imagem é clara e põe Pedro Passos Coelho e António Costa como protagonistas: “É como se alguém estivesse num buraco e, para sair do buraco, escava mais, afundando-se ainda mais. O que aconteceu foi que este Governo deixou de escavar, abandonou a austeridade, e só aí é que se começou a verificar recuperação”. Ou seja, “a recuperação económica portuguesa não está a acontecer porque houve austeridade, mas sim porque se abandonou a austeridade“, disse, defendendo depois que foi só quando o Banco Central Europeu decidiu implementar uma política de harmonização financeira quantitativa (quantitative easing) que a crise começou a ser superada. Um passo que foi dado muito antes pela reserva federal dos EUA, e que fez com que a resposta dos EUA à crise tivesse sido mais rápida e mais eficaz do que a resposta europeia.
“Foi a crise que causou o défice e não o contrário. Foi o excesso de protecionismo social e não o inverso. Austeridade não foi capaz de resolver o problema do défice nem da dívida”, disse Sócrates.
Para José Sócrates, o segredo é claro: Portugal não precisa de austeridade, precisa de projetos de desenvolvimento. E foi aí que não se poupou em auto-elogios. “Quando é que foi a última vez que ouviram falar num verdadeiro projeto de modernização para o país?”, perguntou aos alunos, respondendo: “Foi no governo que eu liderei, quando apostámos na construção de escolas públicas, de barragens, de mais investimento na ciência, nas tecnologias de informação, na modernização das infraeestruturas”, disse, pedindo perdão pelo auto-elogio pouco modesto.
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O caso TGV é disso exemplo, disse. Sócrates lutou pela construção de uma linha de alta velocidade, que caiu por terra com o governo de Passos Coelho. Um erro, segundo disse Sócrates esta quarta-feira. “Pôr a rede de alta velocidade a parar em Badajoz é uma decisão política que nos condena ao atraso, e é das ideias mais reacionárias que tenho ouvido no nosso país”, disse, explicando o uso da palavra reacionário: “reacionário porque é uma ideia de resignação, não tem ambição, e nós não devemos aceitar tudo isto sem querer mais, devemos ter uma visão para a modernização porque só assim é que se consegue crescimento económico”, defendeu.
Foram quase duas horas de palestra, com Sócrates sempre a defender as medidas “contra-cíclicas” da economia, e a constatar que a crise, e a forma como a Europa respondeu à crise, só começando a sair dela em 2015, deixou “mossa”. “Sou um profundo europeísta mas sou obrigado a constatar que, depois disto, instalou-se o germe da desconfiança entre Estados europeus”, disse, afirmando que, agora, a ideia que fica do Velho Continente é de que, ao primeiro obstáculo “é cada um por si”.
“Vim para me rir”. O que os estudantes esperavam de Sócrates
A sala do auditório da Faculdade de Economia encheu plenamente, com jovens estudantes a terem de se sentar ao longo das escadas por não haver lugares sentados para todos. Na verdade, não foram só estudantes de economia que quiseram ir assistir à palestra. O Observador encontrou mais estudantes de Gestão, e até de Relações Internacionais, do que apenas de Economia. Gonçalo e Lara, por exemplo, estudam Gestão e até nem se tinham inscrito para assistir à conferência, mas como tiveram uma “aula que foi cancelada”, resolveram ir espreitar.
“Vim para me rir”, dizia Gonçalo à entrada, explicando que achava “irónico” o núcleo de estudantes ter convidado o ex-primeiro-ministro que está acusado de 31 crimes, de corrupção passiva a branqueamento de capitais passando por fraude fiscal qualificada. Mas ao seu lado, Lara não concordava com o amigo: “Ainda assim foi primeiro-ministro, terá sempre alguma coisa a dizer e contributos importantes para o debate”, dizia.
O mesmo pensa Renato Correia, também estudante de Gestão, de 29 anos. “Não foi ainda julgado, por isso não achei mal esta conferência”, disse ao Observador o jovem estudante, que sabe muito bem o que gostaria de perguntar ao ex-primeiro-ministro no âmbito desta conferência sobre o projeto europeu depois da crise: “Tenho curiosidade de saber de que maneira as políticas dele influenciaram ou não o início da crise, porque dizem que a crise foi internacional, mas o impacto que teve nos vários países foi diferente, e isso dependeu das políticas que foram implementadas em cada um”, disse ao Observador. Ou seja, “o que poderia ter sido feito que [Sócrates] não fez”.
Hannah Braz e Lauren Bento, estudantes de Relações Internacionais de 21 e 19 anos, por sua vez, estavam mais curiosas em ver “a forma como ele se comporta”, e a “postura que os estudantes vão ter” perante a presença do ex-primeiro-ministro. “Esta é uma universidade muito crítica, por isso é importante ouvir o que estas personalidades de peso têm para dizer”, afirmava Hannah ao Observador, dizendo que “achou bem” o convite feito a José Sócrates para dar esta palestra: “É preciso ouvir para criticar”.
À entrada do auditório, quando foi questionado pelos jornalistas sobre se a sua presença naquela conferência era uma espécie de regresso à política ou, até, o início da preparação de uma candidatura presidencial, José Sócrates foi parco nas palavras, mas irónico no tom: “Não me parece que isto seja uma matéria de política, é mais uma matéria de bruxaria. Deixemos essa matéria entregue aos videntes, que fazem disso profissão”, disse, rejeitando comentar o que quer que fosse. À saída, repetiu-se o número: não quis comentar a atuação do atual Governo, não falou no nome de António Costa, nem tão pouco disse se esta conferência era o início de um ciclo de participação ativa.
Sócrates saiu da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra como tinha entrado: à boleia, num carro que o deixou à porta e o foi buscar à porta. Ainda foi convidado pelos estudantes para os acompanhar na manifestação das 17h, mas ficou-se pelo convite. “Boa sorte”, disse apenas, ainda sentado à mesa do auditório, depois de um aluno lhe ter feito uma “pequena provocação muito simpática” sobre a reforma do ensino superior implementada ainda no seu governo, que alterou a forma de representação dos professores e estudantes nas direções das universidades.
“Mas a vossa manifestação não é sobre isso pois não? É sobre menos propinas e mais bolsas de estudo, não é?”, perguntaria. “E pela representatividade!”, ouviu-se responder da plateia. “Ai é? Lamento, então, nisso discordamos mas acho que podemos viver com essa divergência. Boa sorte, então”. Ainda houve risos na plateia, mas a divergência ficou-se por ali. Não houve perguntas incómodas, e Sócrates terminou a palestra debaixo de aplausos. A manifestação prossegue fora de portas, e junta todos os núcleos de estudantes da Universidade de Coimbra. Mas a essa hora, já Sócrates estará a caminho de Lisboa.