O nome de Johan van Hulst pode não ser tão popular quanto o próprio mereceria. Porventura por nunca se ter considerado um herói e por raramente ter falado dos seus feitos durante o Nazismo, a sua morte na passada sexta-feira, 23 de março, passou em grande parte despercebida. Ex-professor, escritor, jogador de xadrez (ganhou um torneio aos 99 anos, refere a BBC), político (foi senador e deputado no Parlamento Europeu), van Hulst ajudou a salvar centenas de crianças judias dos campos de concentração nazis. Morreu esta semana, com 107 anos.
Filho de um estofador de móveis, Johan van Hulst enveredou pelo ensino. Em 1942, dois anos depois da invasão da Alemanha à Holanda, Hulst, então com 31 anos, trabalhava num seminário protestante em Amesterdão, situado no bairro de Plantage, habitado predominantemente por judeus, quando o governo decidiu cortar o financiamento à escola. Depois de “ir bater à porta dos pais dos alunos”, pedindo apoios para a manter aberta mesmo sem subsídios — relata a estação inglesa –, van Hulst conseguiu que ela não fosse encerrada, trabalhando — juntamente com os restantes professores — “o dobro das horas de antigamente” e “ganhando o salário mínimo”.
A poucos metros da escola ficava um antigo teatro, Hollandse Schouwberg, que os nazis confiscaram e que funcionava à época já como centro de deportação de judeus para campos de concentração (Westerbork, na Holanda e Auschwitz e Sobibor, na Polónia ocupada). Este era dirigido, curiosamente, por um judeu alemão, Walter Süskind, cujo judaísmo era ignorado dadas as suas ligações às SS. Também próxima ficava uma creche, gerida por Henriëtte Pimentel, onde as crianças que chegavam ao centro de deportação eram (já depois de separadas das suas famílias) temporariamente colocadas, até serem enviadas para os campos de concentração.
Com a ajuda de Süskind na manipulação dos registos (era-lhe relativamente fácil, por exemplo, registar que apenas 50 crianças haviam chegado ao centro de deportação e sido enviadas para a dita creche, limpando do registo uma ou duas dezenas), Henriëtte Pimentel começou a trabalhar na forma de as tirar dali e de as levar para famílias de acolhimento da Resistência.
Como a creche partilhava um jardim com a escola que Johan van Hulst já dirigia (fruto dos seus esforços em mantê-la aberta), as crianças começaram a ser passadas da creche para a escola — e daí para famílias adotivas. Os métodos para o fazer eram variados e um deles incluía o aproveitamento da altura de passagem de comboios (que obstruíam a vista do centro de deportação para a escola e creche) para transportar as crianças de bicicleta. Como a entrada das crianças em fuga não havia sido registada no centro de deportação de Süskind, o seu desaparecimento não era notado. O esquema permitiu salvar entre 500 a mil crianças.
Não dar nas vistas obrigava, contudo, a que as operação de fugas fossem meticulosamente preparadas, assim como a não salvar a maioria das crianças que ali chegavam. Esta última consequência nunca deixou de perseguir Van Hulst em vida: “Toda a gente percebia que se 30 crianças eram trazidas, não podíamos salvar as 30. Tínhamos de fazer uma escolha e escolher [as crianças que se salvavam] era uma das coisas mais horríveis”, disse certa vez Van Hulst à estação pública holandesa NOS, citado pela BBC.
Manter boas relações com os nazis era também um mal necessário para que os salvamentos pudessem acontecer. Outro era Johan van Hulst ter de esconder o seu trabalho das pessoas mais próximas (inclusive da mulher, Anna). A operação terminaria no verão de 1943, quando Henriëtte Pimentel foi descoberta e enviada para Auschwitz. Morreria dois meses depois. Foi anunciado que a creche seria encerrada e muitas crianças que lá estavam não puderam ser salvas a tempo.
Tentem imaginar 80, 90, talvez 70 ou 100 crianças ali, connosco a ter de decidir que crianças poderíamos levar [dali para fora]. Esse foi um dos dias mais difíceis da minha vida. Sabes que as crianças que vais deixar para trás vão morrer… Eu levei 12 comigo. Mais tarde perguntei-me: porque não 13? (…) Só penso no que não fui capaz de fazer, sobre os milhares de crianças que não pude salvar”, disse Van Hulst em 2015, ao jornal holandês Het Parool.
Depois do encerramento da creche, Van Hulst conseguiu manter a escola aberta e continuou a trabalhar com a Resistência nazi. Passou as últimas semanas da II Guerra Mundial escondido, depois de saber que era procurado pelos alemães. Não há registos fidedignos mas os historiadores estimam que, em dois anos, mais de 40 mil pessoas foram deportadas do antigo teatro Hollandse Schouwberg para campos de concentração .
Nas décadas seguintes ao fim da II Guerra Mundial, Van Hulst continuaria o seu trabalho académico, tornar-se-ia político, jogador de xadrez e autor de vários livros e ensaios. Em 2012, numa visita a Israel, o primeiro ministro de então (ainda hoje em funções) Benjamin Netanyahusaid disse-lhe: “Costumamos dizer que aqueles que salvam uma vida salvam um universo. Tu salvaste centenas de universos. Quero agradecer-te não apenas em nome do povo judeu, mas em nome de toda a humanidade”.