Consentiu dois golos, não ganhou (2-2), foi traído inclusive por um autogolo e acabou por ser um dos mais elogiados pela imprensa. A 12 de setembro de 1999, na Catedral de San Mamés, Iker Casillas, então com 18 anos, aproveitou as lesões de Bodo Illgner e Bizarri e teve a primeira oportunidade de jogar pela principal equipa do Real Madrid, então comandada por John Toschak. “Foi o dia mais importante da minha vida desportiva, o da estreia. Cumpri o sonho de um menino que entrou no clube em 1991. Houve nervos, admiração, felicidade e muitas mais sensações que me fizeram desfrutar do momento”, comentou nas suas redes sociais o guarda-redes de uma equipa que tinha nomes como Raúl, Redondo, Roberto Carlos ou Steve McManaman. Esta noite, 18 anos e meio depois, o número 1 alcançou o impensável registo dos 1.000 encontros oficiais. E acabou por sair derrotado, no Restelo.

Preferia ganhar o jogo e seguir no topo da tabela, mas não conseguimos. Vamos com sabor negativo porque vamos voltar ao Porto com liderança perdida. Isto acontece uma vez em 30 jogos… Tocou-nos hoje, foram duas vezes à nossa baliza e fizeram dois golos. Quando sofres dois golos estúpidos como foram estes no final, perdes. Agora é levantar a cabeça. Os adeptos que estiveram aqui são motivo para levantar cabeça e pensar sobretudo no Desp. Aves. O Benfica não me preocupa nada nesta altura. Depois desta derrota, a equipa está caída e importa recuperar o quanto antes. Todos temos de levantar o balneário e assumir a responsabilidade”, disse na flash interview após o final do encontro.

Peter Shilton, Gianuigi Buffon, Roberto Carlos, Rogério Ceni, Paolo Maldini, Javier Zanetti, Frank Lampard ou Ryan Giggs foram alguns dos 20 jogadores no mundo que conseguiram superar essa barreira. A partir desta segunda-feira há mais um. Um que, aos 36 anos (fará 37 em maio), é descrito na página da Wikipedia como “Excelentíssimo Señor D. Iker Casillas Fernández”, recordando a distinção com a Grã Cruz da Real Ordem de Mérito Desportivo. E que tem dez entre muitas histórias que ficarão no legado que deixará no futebol mundial.

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Quando ir ao gabinete do diretor do colégio é tudo menos um pesadelo

É o pesadelo de qualquer aluno mas tornou-se no realizar de um sonho para Casillas. A 25 de novembro de 1997, o guarda-redes da formação do Real Madrid estava entre compassos e esquadros numa aula de geometria com a professora Mercedes quando, de repente, foi chamado ao gabinete do diretor do colégio. O miúdo nem era particularmente conhecido por ser um daqueles terrores ambulantes que só fazem asneira, mas os colegas ficaram a pensar o que se tinha passado. Umas horas depois lá perceberam: Iker foi chamado de urgência à convocatória dos merengues para um jogo do Real Madrid na Champions com o Rosenborg. “Levaram-me a casa no autocarro da escola. A minha mãe estava frenética a fazer-me a mala. Mudei de roupa, agarrei num fato e num casaco, e fomos embora. O Bodo Illgner estava lesionado, o Cañizares tinha levado uma pancada e precisavam de mim para terceiro guarda-redes. Os outros miúdos não faziam ideia porque tinha abandonado a aula e nessa altura não havia telemóveis…”, contou o jogador de 16 anos, que foi mesmo nesse jogo para o banco de Jupp Heynckes.

O amigo Buffon e a outra referência que recusou trocar camisolas

O sentimento de admiração e respeito entre Iker Casillas e Gianluigi Buffon já é conhecido (e constantemente reforçado, em várias publicações nas redes sociais), mas em 2010, numa entrevista ao site oficial da UEFA, o espanhol fez uma lista com mais guarda-redes que, de uma ou outra forma, tinham marcado a sua carreira: Peter Schmeichel, Sepp Maier, Chilavert, Dino Zoff, Iribar, Arconada, Zamora, Yashin e… Oliver Kahn. “Chamavam-lhe o Rei Kahn ou o Titã e isso diz tudo. Tem um carácter muito diferente do meu, é um pouco excêntrico. Para mim, a postura ideal na baliza é a de estabilidade e calma; Kahn não tem nada a ver com isso, mas no final ganhou mais títulos do que qualquer outro guarda-redes na história”, explicou. No entanto, a “relação” com o germânico não começou da melhor forma: depois de um particular entre Espanha e Alemanha, em 2002, que os espanhóis venceram por 3-1, Kahn recusou trocar a camisola com Casillas, que criticou o gesto de alguém que tinha na maior das considerações. O guardião do Bayern pediu depois desculpa, enviou uma camisola sua para o “miúdo” e disse que um dia iria convidá-lo para um jogo em Munique (algo que nunca chegou a acontecer).

https://twitter.com/Juezcentral/status/425043239263948800

A primeira noite memorável de Liga dos Campeões saído do banco

Na temporada de 2001/02, com Vicente del Bosque no comando, Iker Casillas foi titular desde início mas acabou por perder o lugar na ponta final, altura em que o Real Madrid acabou por sofrer algumas derrotas inesperadas que valeram um terceiro lugar no Campeonato. Ainda assim, os merengues conseguiram qualificar-se para a final da Liga dos Campeões em Glasgow, frente ao surpreendente Bayer Leverkusen comandado por Klaus Toppmöller. Ainda na primeira parte, Raúl González adiantou os espanhóis, Lúcio empatou dentro do quarto de hora inicial e Zidane fez o 2-1 com um dos melhores golos de sempre da competição. A meio do segundo tempo, César lesionou-se e Casillas foi chamado ao jogo para tentar conter o ataque final dos germânicos ao empate, tendo três fabulosas defesas nas compensações, a remates de Baştürk e Berbatov. Chorou após o apito final, mas fez questão de ir abraçar César e atribuir-lhe também o mérito do regresso aos triunfos europeus do clube.

Um Mundial que começou com críticas e acabou com o beijo da celebração

O Campeonato do Mundo de 2010 não começou da melhor forma para a Espanha, que perdeu com a Suíça por 1-0. Depois do título europeu de 2008, as expetativas da La Roja estavam altíssimas e, após esse abalo inicial, surgiram de forma inevitável as primeiras críticas, que chegaram mesmo a meter Iker Casillas ao barulho. Os comandados de Vicente del Bosque reagiram, foram somando sucessos e ganharam a final com a Holanda por 1-0 (golo de Iniesta na segunda parte do prolongamento). E foi no rescaldo da festa que surgiu um dos grandes momentos do Mundial: na flash interview, o guarda-redes não conseguiu evitar as lágrimas enquanto agradecia à família e beijou em direto a namorada, Sara Carbonero, jornalista da Cadena Ser. “Foi algo espontâneo porque somos pessoas como todas as outras, normais, da rua”, explicou no dia seguinte. Outra curiosidade: as palmas que se ouviram atrás das câmaras após esse momento foram de Felipe, atual rei de Espanha, e da mulher, Letizia.

Aquela defesa impossível que foi comparada ao melhor de Gordon Banks

Não há nenhum resumo ou documentário do Campeonato do Mundo de 2010 que não tenha em destaque o lance em que Arjen Robben apareceu isolado em frente a Casillas e o espanhol conseguiu defender para canto após um toque com o pé quando já estava praticamente no chão, quase a meio da segunda parte do tempo regulamentar. No entanto, aquela que para muitos é considerada ainda hoje como a melhor defesa de sempre do guarda-redes foi um ano antes, frente ao Sevilha: no início da segunda parte e com o Real Madrid a perder por 1-0, o espanhol teve um momento do outro mundo após remate de Perotti que foi comparado ao mítico lance em que Gordon Banks travou um golo certo de Pelé no Mundial de 1970. “Os seus reflexos são incríveis e se continua assim vai ser um dos melhores de sempre”, comentou então o internacional inglês.

A relação como um casal com Mourinho, onde se foi perdendo a paixão

Iker Casillas saiu do Real Madrid em 2015, na altura da chegada de Rafa Benítez e depois de dois anos com Carlo Ancelotti, o último dos quais a realizar 47 encontros oficiais. Ainda assim, muitos apontam o último ano de José Mourinho no clube, em 2012/13, como o “início do fim” na capital espanhola. O guarda-redes, que viria a perder o lugar primeiro para Adán (por opção técnica) e depois para Diego López (por lesão), nunca gostou de abordar muito assunto, mas acabou por deixar algumas pistas em várias entrevistas depois de sair do Santiago Bernabéu. “Tivemos uma relação de amor e ódio. Foi com um casal, que no início está muito apaixonado mas depois esse sentimento vai-se deteriorando. Em alguns momentos e assuntos estive com ele, noutros houve demasiada tensão”, admitiu, apontando como uma das causas para o afastamento da titularidade a notícia de que falava com alguns companheiros de seleção do Barcelona por telefone numa altura em que a fricção entre rivais estava no máximo. “Só queria defender a minha equipa, a minha seleção e o futebol espanhol. Mas sabendo que vários jogadores não se davam com Mourinho, não percebi porque fui o único prejudicado”, destacou.

A saída da equipa, a chegada aos 100 jogos e o título por ganhar no FC Porto

Iker Casillas perdeu durante alguns meses o lugar para José Sá (entre meio de outubro e meio de fevereiro jogou apenas nos jogos a contar para a Taça de Portugal e para a Taça da Liga), mas acabou por recuperar a posição após a goleada sofrida pelo FC Porto no Dragão com o Liverpool (5-0), já depois de ter alcançado um marco histórico pelos azuis e brancos: tornou-se apenas no décimo guarda-redes do clube a chegar à fasquia dos 100 encontros, sucedendo a Vítor Baía, Helton, Barrigana, Américo, Zé Beto, Rui Teixeira, Fonseca, Tibi e Acúrsio. Nesta altura, o espanhol leva um total de 108 partidas desde que chegou à Invicta em 2015/16 (80 Campeonato, 19 na Champions, quatro na Taça de Portugal, três na Taça da Liga e dois na Liga Europa), tendo sofrido 78 golos entre 52 jogos a zero. O que lhe falta? Um troféu, quebrando um jejum dos dragões que se arrasta desde agosto de 2013 (Supertaça).

Recordes atrás de recordes… e ainda atrás de outro recordista (Raúl)

No final do nulo entre FC Porto e Liverpool em Anfield Road, muito se falou sobre a possibilidade de ter sido o último jogo de Iker Casillas na Liga dos Campeões (que pode não ter sido, dependendo da equipa que representará na próxima temporada). E tudo porque o guarda-redes é o recordista de jogos na principal competição europeia de clubes, 171 (quatro em pré-eliminatórias), tendo ainda outros registos como o maior número de encontros sem sofrer golos (58) e de épocas consecutivas na prova (19, tal como Ryan Giggs). Mas esses são apenas alguns marcos individuais de um percurso onde, além de dois Europeus e um Mundial pela Espanha, ganhou cinco Campeonatos, duas Taças, quatro Supertaças, três Champions, duas Supertaças Europeias, um Mundial de Clubes e uma Taça Intercontinental pelo Real Madrid. O que pode aspirar mais o espanhol? A dois objetivos imediatos: ganhar o primeiro troféu pelo FC Porto até ao final da época (ou dois, Campeonato e Taça de Portugal) e fazer mais uma temporada como profissional, por forma a superar os 1.033 jogos oficiais de Raúl González, o antigo companheiro nos merengues que era o único espanhol a ultrapassar a barreira dos 1.000 encontros.

Cortas as mangas, bater com a mão no poste e… as redes sociais

Casillas decidiu ser guarda-redes após seguir os conselhos do pai (que, tal como a mãe, tem raízes bascas, o que justifica o nome Iker), mas foi o equipamento da posição oferecido pela tia quando era miúdo que ajudou também na decisão. Em entrevistas que foi dando ao longo da carreira, admitiu que a cor preferida da camisola era o verde, mas superstições ou manias só tem mesmo duas que ficaram à vista de todos na final da Liga dos Campeões de 2002, quando substituiu César: cortar as mangas com uma tesoura e bater na barra quando chega à baliza. Fora de campo, o espanhol gosta de passear em família, estar com amigos, ver filmes, ouvir música e navegar pela internet, onde é um dos futebolistas mais ativos e não perde uma oportunidade de “picar” os rivais como aconteceu este fim de semana, a propósito de decisões tomadas pelo vídeo-árbitro nos jogos do Benfica e do Sporting.

O que reserva o futuro a Iker Casillas: Inglaterra, China ou Estados Unidos?

Iker Casillas termina contrato com o FC Porto no final da temporada e, apesar da vontade revelada por Pinto da Costa em manter o guarda-redes pelo menos mais um ano, a renovação apenas poderá acontecer se o espanhol reduzir o atual salário nos azuis e brancos. Entre as alternativas fora de Portugal, já depois da hipótese Deportivo da Corunha ter sido ventilada, existem notícias que dão conta de um alegado interesse do Liverpool na contratação do antigo campeão europeu e mundial (que se junta ao Newcastle), ao mesmo tempo que se continua a falar de uma possível saída para a China ou para os Estados Unidos.