Os primeiros passos de Giambattista Valli no mundo da moda passaram praticamente despercebidos. Hoje, o designer italiano faz parte de uma elite cada vez mais rara, a da alta costura parisiense. Em 2005 lançou-se em nome individual, depois de ter passado pela direção criativa da Fendi e da Emanuel Ungaro. O bichinho da haute couture estava lá, de tal maneira que as suas primeiras coleções de pronto-a-vestir tiveram sempre um toque de atelier. Seis anos depois, quando o calendário de desfiles de alta costura parecia estar a definhar, Valli contrariou a corrente e pôs mãos à obra.
À delicadeza dos materiais e à volumetria ostensiva das peças, o criador juntou o seu imaginário fantástico. Princesas de contos de fadas (ou mesmo as próprias fadas), deusas de antigas civilizações, donzelas do Renascimento e manequins dos primeiros desfiles de que há memória — são estas as imagens que associamos ao moodboard de Giambattista Valli. As artes decorativas são aplicadas à roupa e a roupa deslumbra as objetivas nas principais passadeiras vermelhas. Rihanna, Kendall Jenner, Diane Kruger, Lupita Nyong’o, Anne Hathaway e, mais recentemente, Zendaya, na última cerimónia dos Óscares, são algumas das celebridades que têm brilhado com as criações do autor.
Giambattista Valli é CEO de si próprio. Orgulha-se de ter construído uma marca independente, sem investidores nem um grupo multimilionário por trás. Já depois de ter fundado a sua própria maison, Valli foi ainda consultor da Max Mara Atelier. Até outubro do ano passado, trabalhou como diretor criativo da Moncler Gamme Rouge, uma linha de autor da marca italiana de casacos. Em 2015, colaborou com a MAC numa edição limitada de batons primaveris. Nesse mesmo ano, o Business of Fashion fez as contas: o criador estava a desenhar 12 coleções por ano, dez delas com a etiqueta Giambattista Valli, incluindo as quatro coleções anuais de Giamba, a linha mais acessível que criou em 2014.
Apesar da agenda preenchida e de ser um tanto ou quanto esquivo, o designer esteve em Lisboa para a Condé Nast International Luxury Conference. Sempre com um colar de pérolas ao pescoço, um amuleto que já se tornou numa imagem de marca, subiu ao palco para uma conversa com Suzy Menkes. A editora da Vogue internacional não foi a única a falar com o criador. O Observador encontrou-o recostado à beira de uma piscina no coração de Lisboa.
Muitos dos oradores desta conferência têm falado sobre a relação deles próprios e das suas marcas com Portugal. Qual é a sua?
Conheço muito pouco Portugal, mas conheço Lisboa. Adoro este sítio, é um daqueles lugares para onde fujo. Sou de Roma, adoro as duas cidades e acho-as bastante parecidas. São calmas, perto do mar, Lisboa muito mais porque o tem mesmo aqui ao lado. É uma cidade internacional ao mesmo tempo que está fora da cena internacional e isso faz com que seja muito mais autêntica. E as pessoas são fantásticas, divertidas, descontraídas, calorosas e isso não encontramos todos os dias.
As viagens que faz e os sítios por onde passa são normalmente uma fonte de inspiração?
Todos os lugares são, mas não é por estar a viajar. Não faço aquelas viagens em busca de inspiração, nunca. Simplesmente vivo a vida e sou inspirado pelo que aparece.
Em algum momento pôs a hipótese de trabalhar apenas para outras marcas?
Trabalhei para outras marcas no passado, quando era mais novo. Para a Fendi, para a Ungaro, mas depois quis expressar a minha própria linguagem. Quando um designer trabalha para outras casas é como se estivesse a dobrar um filme no qual não é ator. Então, quis ser o ator do meu filme, ter a minha criatividade e a minha visão e expressá-las. Provavelmente, é mais fácil ser um intérprete do que um ator, mas fi-lo e adoro.
E fundou a sua própria casa em 2005.
Construí-a em 2005. Estava em pânico, toda a gente me dizia que tinha perdido a cabeça por estar a abrir a minha própria marca, mas na verdade eu estava certo. Na vida, acho que temos de ser muito coerentes com os nossos sentimentos, temos de apoiá-los se queremos fazer alguma coisa.
Foi difícil dar esse passo?
Foi mais do que difícil. Corri um grande risco, mas fi-lo de uma forma inconsciente, completamente cega, como quando se dá um salto. Simplesmente fiz, sem pensar se era difícil ou não. É claro que, agora, olhando para trás, foi completamente louco, mas nunca é para questionar muito, é para fazer. Foi especialmente difícil naquela altura, depois do 11 de setembro e dos primeiros grandes ataques na Europa, além de ter sido também um momento económico muito difícil. Não consigo imaginar-me a fazê-lo agora, mas espero poder inspirar outros jovens designers a fazê-lo e, se quiserem mesmo expressar-se, a avançarem.
É o melhor conselho que tem para dar?
O melhor conselho é: não sejam seguidores, sejam líderes.
Diria que o início da marca Giambattista Valli foi o momento mais difícil da sua carreira?
Não diria o início. O momento mais difícil veio depois, quando percebi que tinha construído algo e que com isso vinham responsabilidades. No salto não se pensa nisso, mas quando o negócio começa a crescer, juntamente com o lucro, aumenta também o risco, o stress. Depois dos primeiros anos, olhei para trás e pensei: ‘Ó meu Deus’. Esse foi, provavelmente, o momento mais difícil. Tive de manter o foco, de me renovar a cada estação e, ao mesmo, de construir a perceção que as pessoas tinham da minha marca e da minha moda. Aí, é muito importante haver essa renovação mas também continuar fiel, senão as coisas mudam muito e perdes-te.
Claramente, teve de ser mais do que designer. Teve de ser um homem de negócios.
Acho que hoje é muito importante estar em contacto com a realidade do negócio. Não podes ficar trancado numa torre de marfim e fazer apenas um trabalho puramente criativo. Tem de ser um negócio e, no final, as mulheres têm de usar aquilo e quanto mais vendes, mais te expressas. É importante.
Isso faz-nos pensar se, enquanto designer, se considera mais emocional ou mais cerebral.
Quando era mais novo era mais emocional. Hoje, de certa forma, sou mais cerebral, mas continuo a dar lugar às minhas emoções. Acho que viver em Paris trouxe-me esse lado mais racional. Roma é paixão, é sentimento, é aberta às emoções. Paris é muito mais introspeção, é onde vais mais a fundo dentro de ti, onde meditas.
O seu trabalho tem uma grande dose de fantasia. Por vezes, parece vestir princesas de contos de fadas e, outras vezes, deusas de antigas civilizações. De onde vem esse imaginário?
Isso é aquele lado da minha infância que continua vivo. As peças surgem assim, mas no final é bom ver pessoas como a Rihanna ou a Jennifer Lopez usarem-nas, é o lado contemporâneo. A inspiração vem da minha vida enquanto experiência total. Pode ser de quando tinha quatro anos, mas também pode ser de ontem ou de agora.
E tem sido um imaginário constante no seu trabalho.
É constante, mas há sempre uma evolução. Uma coleção é muito curta, a seguinte é muito longa, há sempre opostos.
A maioria das peças tem sempre um toque romântico e, acima de tudo, intemporal. Acha que encaixam num mundo da moda cada vez mais rápido e volátil?
Sabe que mais? O melhor antídoto para a rapidez da vida é criar algo intemporal. O que é intemporal é intemporal, não pertence a nenhuma época, nunca sai de moda. Eu adoro trabalhar em moda, mas estou totalmente fora do sistema de tendências. Não tenho interesse nisso, de todo. Se há uma tendência, corro na direção contrária. Independência também é isso.
Há três anos, o Business of Fashion descreveu-o como um “restless workaholic“. Podemos dizer o mesmo hoje?
Eu trabalho aqui, com esta vista. Veja bem o privilégio que tenho. Vivo em Paris, faço alta-costura, tenho a minha própria marca. Lendo dessa forma, parece que sou só um robô a trabalhar, mas não sou. Sou alguém que ama este trabalho, sou apaixonado por ele, sou super curioso e passo 24 horas a captar coisas. É o meu privilégio, a minha paixão e o meu amor, não sou obrigado a fazê-lo nem é algo que faça mecanicamente. É a diferença entre uma pessoa que faz uma pausa para fumar um cigarro e alguém que fuma de forma nervosa milhões de cigarros. Mesmo que trabalhe durante 24 horas, é com prazer.
Em 2011, expandiu a marca com a primeira coleção de alta-costura. Foi uma necessidade criativa?
Comecei com esta ideia quando trouxe para o pronto-a-vestir aquele sabor da alta-costura. Na altura em que comecei, em 2005, percebi que as casas de moda tinham perdido aquele savoir-faire na confeção dos vestidos — o sentido de corte, de qualidade, dos acabamentos, das proporções –, simplesmente punham um logotipo e vendiam. Então comecei a fazê-lo. Já tinha tido uma grande experiência de atelier em casas de alta-costura como Ungaro, Fendi, Roberto Capucci. Pensei: porque não combinar a parte industrial com algo tão extraordinário? Este foi o início da minha história. Depois disso, as mulheres começaram a pedir-me peças especiais e únicas além das que estavam à venda na loja. Foi quando chegou a hora de separar as coisas, de tornar o pronto-a-vestir mais pronto-a-vestir e de começar a fazer alta-costura. Foi muito positivo, porque trouxe leveza ao meu pronto-a-vestir e me deu este espaço para expressar ainda mais o lado da alta-costura. E foi mais um momento em que as pessoas me disseram: ‘estás louco, todas as casas de alta-costura estão a fechar, ela já não existe, a semana da moda de alta-costura vai morrer”. E agora é a mais concorrida. Por isso é que eu digo: corre o risco.
Ela está bem viva, por sinal.
Super viva, agora toda a gente está a voltar à alta-costura. Versace voltou a fazer, Dolce & Gabbana voltou a fazer. Hoje, vais a uma mercearia e até tens uma maçã de alta-costura. A alta-costura está em todo o lado.
Há alguma coisa que nunca o veremos fazer?
Nunca dizer nunca. Moda é moda. Na moda, hoje dizes não, amanhã dizes sim.
Isso também vale para os logotipos?
Eu já fiz os logotipos, atenção. Nos meus últimos três desfiles, há logotipos. No geral, não luto contra eles, apenas acho que o melhor logotipo que uma casa poder ter é a silhueta. E se pensarmos na Chanel, vemos logo a silhueta. Se pensarmos em Comme des Garçons, sabemos logo qual é a silhueta. Armani tem a sua própria silhueta também. Todos têm e eu sou conhecido pela minha. É importante já termos uma silhueta antes de virem os logotipos.
Ao fim de mais de 30 anos de carreira, continua a ser um designer de moda relativamente low , em oposição aquele tipo de designer celebridade.
Eu não sou low profile, sou discreto e elegante. A discrição é, aliás, o meu último grande luxo. Não sou do tipo de pessoa que tira selfies, não vou aparecer seminu numa praia. Aqui as celebridades são os meus vestidos, mais do que eu. Eu vendo vestidos, não vendo a minha vida privada.
Tecnologia ou savoir-faire?
Ambos. Eu comecei com a tecnologia, na indústria, depois fui para o atelier e juntei tudo à maneira de Giambattista Valli. Mas acho que não há tecnologia se não houver savoir-faire e vice-versa.
Quem é que o inspirou mais ao longo da carreira?
A minha curiosidade. E a cultura. A cultura e a curiosidade fazem parte de mim.
Nunca vimos a casa Giambattista Valli ter uma relação forte com uma celebridade, como a de Jennifer Lawrence com a Christian Dior, por exemplo. Não faz parte do seu modelo de promoção de uma marca?
Eu nunca vi uma relação forte dessas. Quer dizer, elas existem, mas eu não lhes pago. Se estiver a falar noutras marcas que têm relações próximas com celebridades, saiba que isso acontece porque lhes pagam, por isso é óbvio que têm exclusividade. Mas eu quero uma que seja livre. No ano passado, vesti a Rihanna três vezes em três meses, acho que é bastante forte. A Jennifer Lawrence para a Dior? Ela é paga, tem exclusividade com eles. Michelle Williams, também lhe pagam um salário. Há uma grande diferença. Quando vêm ter comigo é por prazer, eu não obrigo ninguém a nada. E, só por acaso, também já vesti a Jennifer Lawrence.
Suzy Menkes descreveu-o como sendo “inspirador para outras pessoas”. Que herança ou mensagem é que gostaria de deixar para o futuro?
Que não tenho medo da beleza.