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O "embaraço" de Sócrates com o PS. O texto do "animal feroz" nas entrelinhas

Este artigo tem mais de 5 anos

No artigo em que anuncia a saída do PS, José Sócrates defende Manuel Pinho mas, sobretudo, faz a sua própria defesa. O "animal feroz" ataca Costa, critica César e tenta comprometer Ferro.

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JOSÉ COELHO/LUSA

JOSÉ COELHO/LUSA

José Sócrates reagiu esta sexta-feira às 42 horas mais surpreendentes da história recente do PS. Depois de quatro anos de um aparente silêncio coletivo em relação à Operação Marquês, as mais destacadas figuras do partido decidiram assumir a “vergonha” com as suspeitas que recaem sobre o ex-primeiro-ministro. O antigo líder socialista respondeu da mesma forma: também ele sente “embaraço” de um partido que, segundo ele, se juntou à “direita política” para terminar com as suas aspirações.

No texto de opinião enviado ao Jornal de Notícias, o ex-primeiro-ministro defende Manuel Pinho — mas faz sobretudo a sua própria defesa. Ataca, mais uma vez, o Ministério Público e a comunicação social, que diz serem cúmplices de uma campanha orquestrada para o destruir politicamente. Mas, e mais relevante, ataca António Costa, sem nunca o nomear, e a direção do PS: “Não posso deixar de interpretar [estas declarações] como uma espécie de condenação sem julgamento.”

A carta de José Sócrates está a itálico e a interpretação e o comentário estão a amarelo:

“Começo pelo princípio: sou amigo de Manuel Pinho, pessoa que considero e estimo.”

Primeiro, a demonstração de lealdade para com Manuel Pinho, o homem que escolheu para liderar a pasta da Economia no XVII Governo Constitucional e que só caiu graças aos indicadores — e não os indicadores económicos (Pinho usou os dedos para fazer uns "corninhos" públicos a um deputado do PCP e demitiu-se por isso). Todas as palavras contam e Sócrates sabe-o: o ex-primeiro-ministro nunca perdoou muitos dos seus antigos camaradas, que acusa de terem renegado os laços de amizade que mantinham com ele — Sócrates chegou a dizer que um dos seus “melhores amigos políticos” era Augusto Santos Silva, precisamente um dos socialistas que agora, quase quatro anos depois do início da Operação Marquês, que não escondeu a precoupação perante as suspeitas que recaem sobre o ex-primeiro-ministro. Ao assumir sem reservas que é “amigo” de Manuel Pinho numa altura em que o ex-ministro é acusado de receber dinheiro do BES/GES, José Sócrates julga estar a dar uma lição a quem, segundo ele, o traiu.

“Segundo: tenho ouvido o que se diz sobre a sua relação com o Banco Espírito Santo durante o período em que foi ministro do meu Governo e sobre isso tenho a dizer que a minha primeira exigência é que o Ministério Público prove o que diz. Não, não pactuo com a operação em curso de inverter o ónus da prova como, de forma geral, os jornalistas e os ativistas disfarçados de comentadores têm feito: o primeiro dever de um Estado decente é provar as gravíssimas alegações que faz seja contra quem for, ainda que estas tenham sido, como habitualmente, feitas através da Comunicação Social. Só para recordar o que devia ser óbvio: não é o próprio que tem de se defender ou de provar que é honesto ou inocente; é quem acusa que tem o dever de provar o que diz. Estranhos tempos estes em que lembrar o princípio estrutural do Direito moderno, a presunção de inocência, se confunde com a defesa seja de quem for.”

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Sócrates defende Manuel Pinho com os mesmos argumentos que tem usado, até à exaustão, na sua própria defesa pública. Ataca o Ministério Público, que diz não sustentar as suspeitas com provas concretas — tal como fez ao longo de toda a Operação Marquês. E ataca a comunicação social, que considera cúmplice de uma Justiça que o está perseguir politicamente — tal como vem repetindo sobre o caso que o envolve desde 2014. Assim como sempre se recusou a dar explicações cabais sobre a sua vida em França, para a qual não tinha recursos financeiros próprios, a casa de Paris, as transferências bancárias, as entregas de dinheiro vivo, a generosidade unilateral de Carlos Santos Silva, os códigos que utilizava em conversas com os seus colaboradores mais próximos, quando pedia as “fotocópias”, a “massa” ou “aquela coisa que gosto muito”, Sócrates entende agora que Manuel Pinho não tem de explicar o porquê de receber 793 mil euros do ‘saco azul’ do GES durante o período em que foi ministro da Economia (nem os 2,1 milhões de euros no total, entre 2002 e 2014). É o Ministério Público, diz Sócrates, que tem de provar as suspeitas, ignorando a dimensão política do caso — como sempre ignorou deliberadamente a dimensão política do processo que o envolve. Ele, tal como Manuel Pinho, são suspeitos de terem sido corrompidos pelo mesmo agente, Ricardo Salgado, o antigo "dono disto tudo", enquanto desempenhavam altos cargos políticos.

“Em terceiro lugar, desejo afirmar que tenho Manuel Pinho por um homem honesto e incapaz de uma coisa dessas, tal como é descrita – receber um vencimento privado enquanto exercia funções públicas. Por essa razão recuso-me sequer a discutir hipóteses que para mim são inadmissíveis, sem que o Estado, que o afirma, prove o que está a dizer. Compreendo e partilho o desejo dos seus amigos e colegas de Governo de que Manuel Pinho negue imediatamente as alegações. Não me parece que ele ignore as responsabilidades que também tem connosco. Todavia, não sobreponho o meu desejo de esclarecimento imediato ao seu direito de se defender de tão graves imputações quando achar que o deve fazer. Por mais que isto custe a quem é seu amigo e foi seu colega, é isto que a decência impõe.”

O ex-primeiro-ministro reitera a confiança em Manuel Pinho, embora sublinhe o desejo de ver tudo esclarecido pela voz do próprio. Mas volta ao ponto anterior: não é o partido (“amigos” e “colegas”) que têm de exigir explicações ou impor timings. Mais uma vez, José Sócrates parece falar de si próprio quando fala de Manuel Pinho. Mas com uma diferença: ao contrário de Pinho, o ex-primeiro-ministro nunca deixou de fazer a sua defesa pública, denunciando uma alegada perseguição política e um ataque ao PS, tentando colar o partido à Operação Marquês.

“Um último ponto para me defender da ignóbil intrujice que acompanha a notícia: a ideia de que o nome de Manuel Pinho para fazer parte do Governo me terá sido sugerido pelo dr. Ricardo Salgado. Esta mentira tem sido há muito tempo disseminada pelo Ministério Público e convenientemente divulgada por jornalistas, que nenhum esforço fazem para verificar a sua veracidade. Desde logo, posso afirmar que a primeira vez que me encontrei com o dr. Ricardo Salgado desde que fui eleito líder do PS foi no dia 13 outubro de 2006, conforme registado na secretaria da Residência Oficial do Primeiro-Ministro. A verdade é que nunca fiz parte do seu grupo de amigos nem dos seus círculos sociais. A história da proximidade com o dr. Ricardo Salgado é, portanto, falsa e disparatada.”

Sócrates continua a sua defesa e revisita um argumento que tem utilizado para tentar desmontar a acusação do Ministério Público na Operação Marquês: o antigo líder socialista garante que nunca teve qualquer relação de proximidade com Ricardo Salgado, suspeito de ter corrompido o ex-primeiro-ministro — isto apesar de as escutas entretanto reveladas apontarem exatamente no sentido contrário. Num desses diálogos captados pelos investigadores, José Sócrates e Ricardo Salgado foram "escutados" a combinar um almoço, sendo que o antigo secretário-geral do PS chegou mesmo a confessar ter “saudades” da “esposa” do banqueiro, “sempre tão atenciosa”. A determinada altura, nessa mesma conversa, Ricardo Salgado, que tratava José Sócrates por "Zé", chegou a propor que convidassem também "amigos comuns, alentejanos", que os investigadores acreditam incluir Henrique Granadeiro, também ele arguido na Operação Marquês.

“Depois, há mais: a escolha que fiz de Manuel Pinho como porta-voz do PS para a área da economia, e mais tarde para o Governo, aconteceu naturalmente na decorrência da colaboração que este há muito prestava, na condição de independente, ao PS, como conselheiro económico do então líder Ferro Rodrigues. Foi aí, nessa condição de membro do chamado grupo económico da Lapa (por reunir regularmente no Hotel da Lapa), que o conheci e que desenvolvemos um trabalho comum que viria a culminar no convite que lhe fiz. Muitas pessoas dentro e fora do PS conhecem esta história, que desmente por completo a ficção da indicação por outros, com quem não tinha nenhum contacto.”

Ao lembrar que Manuel Pinho já colaborava com o PS ainda antes de chegar a líder socialista, José Sócrates dá o abraço de urso à atual direção do PS. Sócrates recorda que o antigo ministro da Economia circulava há muito nos corredores do Largo do Rato e que chegou à primeira linha do PS como conselheiro de Ferro Rodrigues, ex-líder socialista e hoje presidente da Assembleia da República — os dois conheceram-se ainda no Liceu Francês, aliás. Sócrates avisa assim o partido: não vale a pena colarem Manuel Pinho a José Sócrates, como se fossem as duas únicas ovelhas tresmalhadas do rebanho; apesar de independente, o ex-ministro é tão socialista como Sócrates, Ferro Rodrigues, António Costa e outros. "Muitas pessoas dentro e fora do PS conhecem esta história", recorda Sócrates.

P.S. Já depois de escrever este artigo, ouvi Carlos César. Durante quatro anos defendi-me das acusações falsas e absurdas que me foram feitas: a falsidade da propriedade do dinheiro da Suíça, a falsidade sobre a propriedade do apartamento em Paris, a falsidade sobre a PT, a falsidade sobre a Parque Escolar, a falsidade sobre o TGV, a falsidade sobre a relação de proximidade a Ricardo Salgado. Durante quatro anos suportei todos os abusos: a encenação televisiva da detenção para interrogatório; a prisão para investigar; os prazos de inquérito violados sucessivamente como se estes não representassem um direito subjetivo que não está à disposição do Estado; a campanha de difamação urdida pelas próprias autoridades com sistemáticas violações do segredo de justiça; o juiz expondo na televisão a sua parcialidade com alusões velhacas; a divulgação na televisão de interrogatórios judiciais com a cumplicidade dos responsáveis do inquérito.

Chega o P.S. (post scriptum) de Sócrates, que, ironicamente, é o momento em que o ex-primeiro-ministro anuncia a intenção de se desfiliar do PS. Repete todos os ataques que tem feito à Justiça (à procuradora-geral Joana Marques Vidal, ao juiz Carlos Alexandre, ao procurador Rosário Teixeira ou ao inspector tributário Paulo Silva) e à comunicação social. Fala em “acusações falsas e absurdas”, nos muitos “abusos” sofridos, na estratégia de “difamação” dirigida contra ele e nas “violações do segredo de justiça”. Mas, mais relevante do que isso, Sócrates dá um nome e um rosto à nova estratégia de distanciamento do PS: Carlos César, líder parlamentar e presidente do partido, o homem de quem se diz estar sempre ou quase sempre sintonizado com António Costa e que nunca foi politicamente próximo de José Sócrates.

“Na verdade, durante estes quatro anos não ouvi por parte da Direção do PS uma palavra de condenação destes abusos, mas sou agora forçado a ouvir o que não posso deixar de interpretar como uma espécie de condenação sem julgamento. Desde sempre, como seu líder, e agora nos momentos mais difíceis, encontrei nos militantes do PS um apoio e um companheirismo que não esquecerei.”

Sócrates nunca nomeia António Costa, mas também não precisa. Quando diz que nunca teve da “direção do PS” o apoio que esperava ter, José Sócrates ataca diretamente o atual líder socialista, que se esforçou muito por traçar um cordão sanitário em torno da Operação Marquês, mesmo com muitos camaradas de partido a participarem nas romarias a Évora e a jurarem lealdade a José Sócrates. António Costa só o visitou uma única vez na prisão de Évora, na véspera de Ano Novo, e apenas para dizer: "Deixemos a Justiça funcionar. [José Sócrates] vai certamente lutar pelo que acredita ser a sua verdade”. Antes e depois, repetiu o mantra: "À justiça o que é da justiça, à política o que é da política". Na passada quinta-feira, deu o passo decisivo: "Se essas ilegalidades se vierem a confirmar, serão certamente uma desonra para a nossa democracia". Foi o golpe final na relação entre os dois e acontece já depois de José Sócrates ter acusado António Costa de lhe ter virado as costas. "Éramos amigos. Elegi-o como ministro e como meu sucessor natural. Tudo acabou quando me detiveram e tanto ele como a cúpula do PS viraram-me as costas", chegou a dizer Sócrates, em entrevista ao jornal La Voz de Galicia. O antigo líder socialista acusa a direção, tentando argumentar que, apesar do esforço de Costa, os militantes de base estiveram sempre ao seu lado — em almoços e manifestações de apoio, que foram sempre organizados pelo próprio ou pelos amigos mais chegados. Para Sócrates, será apenas um detalhe.

“Mas a injustiça que agora a Direção do PS comete comigo, juntando-se à Direita política na tentativa de criminalizar uma governação, ultrapassa os limites do que é aceitável no convívio pessoal e político. Considero, por isso, ter chegado o momento de pôr fim a este embaraço mútuo. Enderecei hoje uma carta ao Partido Socialista pedindo a minha desfiliação do Partido. Pronto, a decisão está tomada. Bem vistas as coisas, este post scriptum é congruente com o que acima escrevi.”

Em dezembro de 2015, em entrevista à TVI, José Sócrates já tinha dito que “esperava mais do PS”. Na entrevista ao La Voz de Galicia (outubro de 2017), visou diretamente António Costa. Agora, vai mais longe: se o silêncio coletivo do partido o desiludiu, a surpreendente e inesperada sucessão de declarações sobre o desconforto do PS com os contornos da Operação Marquês foram demasiado para o ex-líder. Nas 42 horas anteriores ao comunicado de Sócrates, António Costa falou uma única vez e foi para deixar cair o camarada. Esta sexta-feira, e já depois de o ex-primeiro-ministro anunciar a sua decisão, Costa ainda ensaiou uma surpresa com a decisão de Sócrates, jurou que nada tinha mudado em relação à posição do PS e resolveu a questão dizendo que respeitava a opção do camarada de partido. José Sócrates, que sempre alimentou a tese de que esta investigação não era mais do que uma campanha da "direita política" para travar as suas aspirações, abandonou o partido e fê-lo com estrondo: a direção do PS, escreveu, juntou-se à mesma direita que tirou o poder aos socialistas, em 2011, traindo os interesses e a herança do próprio partido. Para Sócrates, todo o processo é e será sempre político, pelo que a existência de uma acusação formal e de indícios amplamente conhecidos são e serão sempre uma fabricação política. Sendo a traição uma traição política, o “embaraço” sentido pelos representantes do PS que falaram sobre o caso é “mútuo”, reagiu José Sócrates. "A injustiça que agora a Direção do PS comete comigo, juntando-se à Direita política na tentativa de criminalizar uma governação, ultrapassa os limites do que é aceitável". E, dizendo-se vítima do próprio partido, Sócrates sai.

[Veja como as críticas a Sócrates se intensificaram na quarta-feira, dia 2 de maio]

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