[artigo originalmente publicado em maio de 2018 e atualizado a 1 de dezembro de 2020, a propósito da morte de Eduardo Lourenço]

Não é fácil apanhá-lo com grandes disponibilidades para entrevistas. Está sempre em trânsito entre as mil tarefas que compõem os seus dias na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Confessa que “não sabe dizer que não a ninguém”, queixa-se que “esta coisa do filme o está a deixar muito cansado”, mas quem o conhece percebe que, na verdade, ele não consegue estar parado.

É comum vê-lo em todo o lado como se tivesse o dom da ubiquidade: apresentações de livros, lançamentos, concertos de música, cinema, colóquios. No seu gabinete o telefone está sempre a tocar, há recortes de jornais e livros marcados por toda a parte. A sua não conversão ao computador e à internet não lhe tira a absoluta sintonia com este tempo. E esta movida chega a fazê-lo parecer séculos mais novo que muitos dos seus pares.

E no entanto, Eduardo Lourenço, parece nunca sair totalmente de um mundo só seu; dir-se-ia mesmo que, ao contrário de Dédalo, ele dispensou as asas de cera para fugir e se rendeu aos encantos do labirinto e dos seus Minotauros e das suas Ariadnes, como muito bem percebeu o cineasta Miguel Gonçalves Mendes, no documentário que esta semana se estreia nas salas de cinema e na RTP1, Labirinto da Saudade. O filme é uma “mise-en-abyme” sobre o pensamento do filósofo, sobre o livro homónimo publicado há 40 anos e, simultaneamente, sobre a História de Portugal.

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[trailer do documentário que passa esta quarta feira na RTP às 21h]

Em 1978 publica aquele que é um dos seus ensaios mais emblemáticos e, provavelmente, o que mais contribuiu para a descoberta deste pensador pelas gerações do pós-25 de Abril, O Labirinto da Saudade: Psicanálise mítica do destino português. Um livro iluminado que analisa os traumas da nossa história e como eles deixaram cicatrizes profundas no nosso inconsciente coletivo, nos mitos que nos animam e, sobretudo, na nossa auto imagem como povo face à Europa e ao mundo.

No rescaldo do golpe de estado do 25 de Abril de 1974, do PREC, da ameaça comunista, Eduardo Lourenço percebe que é urgente pensar que país havíamos sido e que país queríamos ser. Quarenta anos depois, a sua análise permanece atual até porque ninguém nos ofereceu nenhuma outra chave tão estimulante e intelectualmente honesta para a psique lusitana. Embora reconheça que “nos últimos 20 anos, como povo, tenhamos mudado ontologicamente, tal como a restante Europa e estejamos hoje noutro quadro civilizacional que já não o cristão e iluminista”, defende que “os traumas da nossa história mantêm-se latentes e estão sempre na iminência de reemergir.”

Labirinto da Saudade (Gradiva) foi publicado em 1978 e teve reedição em 2000

Se, “na aparência”, o país que justificou um livro como O Labirinto da Saudade já não existe, porque “mudámos, literalmente falando, quase sem darmos conta disso, de mundo. Mudámos porque o mundo conheceu uma metamorfose sem precedentes, não apenas exterior, mas de fundo(…) Portugal nunca sofreu uma metamorfose comparável à dos últimos 20 anos. Não foi apenas uma mudança exterior, mas uma alteração ontológica como povo (…) ainda que esta metamorfose não seja obra sua como foi noutras épocas, e que seja uma metamorfose que fazemos, talvez pela primeira vez, em simultâneo com toda a Europa. Como todo o Ocidente tornámo-nos todo o mundo e ninguém.”

Eduardo e Annie em França nos anos 50

É então neste ano da graça de 2o18 em que nos tornámos finalmente “todo o mundo e ninguém” desmultiplicados nas redes sociais onde alegremente praticamos a nossa vocação para tribunais do Santo Ofício por conta da amizade universal, na felicidade televisiva dos euro festivais e casamentos reais entre protestos contra a estátua de padre António Vieira e a confrontação com o facto de não sermos nem termos sido “um país de brandos costumes”, fomos encontrar Eduardo Lourenço para lhe perguntar onde estamos afinal? Pergunta que a ele — com a humildade só conquistada por aqueles que fugiram da paixão que a verdade comunica para perseguirem aquilo que ela esconde —  diz não saber responder. Portugal é afinal uma questão que cada português tem consigo mesmo e só cada um pode encontrar a resposta.

A ousadia de se deixar perder no horizonte

Nasceu há 95 anos em São Pedro do Rio Seco, distrito da Guarda, tão perto da fronteira com Espanha que dava para brincar com um pé de cada lado, filho de filhos do povo: a mãe tinha apenas a 4ª classe e o pai fez-se militar para fugir à miséria e dar um mar à sua inteligência para as matemáticas.

Com isso comprou uma vida sempre ausente da família. Eduardo lembra-se de querer imitar a letra do pai e  da “indizível melancolia e tristeza” que lhe ficaram quando ele foi para Moçambique onde ficou durante seis anos. Essa partida foi-lhe mais difícil do que a sua própria, aos 10 anos, rumo a “uma gaiola dourada”que era o colégio militar em Lisboa. Não foi fácil adaptar-se mas não se podia queixar porque sabia que lhe estava a ser dada uma “oportunidade de luxo”. Desses anos guarda afinal uma boa memória com as brincadeiras, os camaradas e as tardes de domingo no cinema com uma tia, a fazerem diluir algumas amarguras.

Eduardo Lourenço aos 16 anos, com a mãe e os irmãos, na Guarda.

O irmão, Adriano Lourenço de Faria, de 89 anos, que vive em Coimbra e veio para a estreia do filme, conta ao Observador que “Eduardo foi sempre assim: curioso, namoradeiro, apaixonado por mulheres, logo na adolescência houve uma Maria Helena, depois uma Natália…” . Quem foi esta Maria Helena? “Foi a minha primeira namorada”, recorda o filosofo como pudesse ainda tocar este deslumbramento dos seus 16 anos. “Era muito bonita até arranjei maneira de ser vizinho dela, de resto acho que desde criança namoro com tudo à minha volta, namoro com tudo o que acho belo, e as mulheres para mim são a personificação da beleza. Sobretudo as de belo sorriso, aquelas cujo sorriso ilumina o mundo”.

Em 1949 parte para França com uma bolsa para estudar a obra do teólogo e filósofo Nicolas Malebranche. É aí, na universidade de Bordéus, que conhece Annie Salomon, estudante de literatura hispânica com quem casa em 1954. Mas logo em 49, com apenas 26 anos, publica em edição de autor Heterodoxias, uma obra corajosa, um manifesto contra toda e qualquer ortodoxia e a favor da liberdade de pensar fora dos espartilhos de qualquer género.

Resistamos à ilusão de supor que tudo pode ser inundado de luz. Deixaríamos de ver. Recusemos o absoluto humano de Calígula, a tentação da unidade a todo o custo, uma vez que sabemos ser a unidade o pretexto do imperador louco para cortar a cabeça ao povo romano. No plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na política, o homem é uma realidade dividida. O respeito pela sua divisão é Heterodoxia.”

Se não se revia no país de Salazar, também não se revia na alternativa que galvanizava a sua geração, o projeto comunista. Lembra-se que em Coimbra os amigos lhe chamavam “reaça” e que depois, em França, se deu com muita gente do PCF, mas o seu espírito foi sempre heterodoxo e é ainda dentro dele que surge O Labirinto da Saudade, um titulo vagamente glosado de O Labirinto da Solidão do poeta e ensaísta mexicano Otávio Paz.

Também, por isso, n’ O Labirinto da Saudade, defende que o Neo-realismo enquanto movimento cultural e artístico nunca foi capaz de subverter o sistema por dentro e que mais não fez do que mitificar como heróis os pobres e humilhados. Pelo contrário, é na curta margem ocupada pelos surrealistas que surge uma das mais consistentes críticas ao Salazarismo e a uma real capacidade de o dinamitar por dentro, usando o “ubuesco”, o “riso aliado à lucidez” e reconhece que, embora tenha passado a vida a estudar Fernando Pessoa, Alexandre O’Neill outro heterodoxo com o qual dialoga, tal como Mário de Sá-Carneiro, cuja poesia “implosiva, suicidária” o torna mais poeta que Pessoa, que era talvez “demasiado racional”.

Eduardo Lourenço com o irmão mais novo, Adriano, 89 anos,  ontem na conferência de Imprensa nos Jerónimos

Passou pelas universidades alemãs, brasileiras, estabeleceu-se em França sem nunca sair de Portugal. Recusa para si mesmo o estatuto de exilado da mesma forma aguerrida com que outros o põem na lapela. Recusa a ideia da “diáspora portuguesa” afirmando que a única diáspora que saiu de Portugal foi aquela “que impusemos aos nossos judeus”. E não deixa de ser curioso e corajoso como nesta frase cabe um pronome que raramente usamos quando se fala dos judeus: “nossos”. “Sim”, diz “porque apesar de tudo o que lhe infligiram eles nunca deixaram de ostentar orgulhosamente o estatuto de portugueses”.

Aos 95 anos repugna-lhe como aos 26, qualquer tipo de ortodoxia e, se neste Labirinto da Saudade defende que Portugal deve integrar os traumas do seu passado, mas não deve viver em função do termos sido, para com isso justificarmos a nossa posição de criança eternamente carente, frágil, ou os nossos momentos de megalomania, também defende que “não devemos ter vergonha do nosso passado”.

Por isso, quisemos saber como olha para protestos contra a estátua do padre António Vieira, um dos autores que, de resto analisa nesta obra: “Tirar a estátua do Vieira? Era só o que faltava! Ele que foi um génio literário ímpar, que teve uma visão cristã fora dos padrões da época e da nossa tradição, que percebeu o lado inumano da escravidão e que fez o possível, no seu ponto de vista, por pregar aos brancos dominadores que eles eram uns maus cristãos. Naquele tempo ninguém foi tão longe. E hoje há alguém que faça tanto em prol dos outros? E com a mesma coragem, arriscando a vida? Esse julgamento bizarro, estranho, é-me insuportável ainda por cima vindo de pessoas que não se comoveram com  atentados muito piores, muito maiores e que ocorreram há muito menos tempo e que agora se acham donas de uma boa consciência total.”

Eduardo Lourenço a participar no programa Prova Oral de Fernando Alvim, na antena 3

Se Os Lusíadas de Camões e a Mensagem de Pessoa, A Arte de Ser Português de Pascoaes, são algumas das obras que encerram vários dos traumas da nossa história passada, Eduardo Lourenço diz que o Portugal presente e futuro está afinal no Livro do Desassossego, de Bernardo Soares: “Pela sua capacidade de mostrar todas as contradições do homem moderno, a dissolução do sujeito, a fragmentação do discurso, a crise da experiência moderna.”

Pedimos-lhe, por fim, que nos apontasse um autor contemporâneo para o futuro e, sem um instante de hesitação, Eduardo Lourenço nomeou Agustina Bessa-Luís, “porque ninguém como ela conseguiu situar-se nesse Portugal e nessa Europa mítica”. E, se como dizia Pessoa, “o mito é o nada que é tudo”, eles serão sempre a estrutura do nosso pensamento. Ainda que hoje, como lembra o filósofo, os mitos que nos animam “sejam menos os helénicos e os latinos mas sim os americanos.”

Esta quarta à noite Eduardo Lourenço vai ver, pela primeira vez, o filme de Miguel Gonçalves Mendes no qual participa como ator de si mesmo. Ao Observador, o general Luís Sequeira conta que a ideia de transformar o livro Labirinto da Saudade num filme partiu dele e do general Ramalho Eanes e foi este que, depois de muita luta, conseguiu convencer o filosofo a participar no filme. A ideia é que depois das salas de cinema, onde só deve ficar uma semana, o documentário siga para as escolas,universidades portuguesas, lusófonas e seja uma porta para entrar no livro homónimo e na restante obra de Eduardo Lourenço, o filosofo que queria ser poeta,  que escreveu dezenas de livros sobre Portugal, para afinal falar sempre de si mesmo “através da voz dos outros.”

O filósofo juntamente com dois dos atores do filme, o escritor Gonçalo M,Tavares, o astrofísico José Afonso e o general Luís Sequeira, um dos ideólogos do documentário