Título: Ler Pessoa
Autor: Jerónimo Pizarro
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 176
Preço: 13,90 € (12,51 € no site da editora)

Ler Pessoa é um ensaio de Jerónimo Pizarro. Chegou às livrarias no passado dia 1 de junho

“Sê plural como o universo!”

A frase é de Fernando Pessoa e parece ter sido levada à letra — durante 47 anos, o poeta foi muita coisa e muitas coisas ao mesmo tempo. Foi Pessoa (mais ou menos) ele próprio, foi “Mestre”, foi Campos, foi Reis, começou por ser Vicente Guedes mas acabou por ser Soares. Foi literalmente “plural como o universo”, e isso valeu-lhe fãs dedicados nos quatro cantos do mundo. Foi essa pluralidade que atraiu Jerónimo Pizarro que, no seu mais recente livro, explica que foi o poeta que o levou “um dia a descobrir ‘toda uma literatura’, quer do próprio Pessoa, que utilizou esta expressão, quer a escrita em português”. E não só: foi também Pessoa que o levou “a ler mais Pessoa e até livros da sua biblioteca particular”, a “ler os seus inúmeros leitores, os seus mais alquímicos críticos e os seus diversos biógrafos”. “Ler Pessoa mudou a minha vida e daí eu ter aceitado o título proposto por Carlos Pittella para um livro recente: Como Fernando Pessoa Pode Mudar a Sua Vida”. Há sempre mais em Pessoa do que apenas Pessoa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Evocando Pirandello, Pizarro explica que “Pessoa pode ser visto como um, nenhum ou cem mil”. “Quem tem construído um Pessoa mais indiviso? Quem tem militado a favor de um mais vazio? E quem defende um poeta mais múltiplo?”, questiona. Fernando Pessoa pode ser isso tudo — depende de que ângulo se olha. “Ler Pessoa” é, por isso, “entrar num universo, ou melhor, num ‘universão’, como Álvaro de Campos descreveu Walt Whitman”, que Pizarro apresenta de forma sintética em Ler Pessoa. O pequeno ensaio ou um “livro-síntese”, como lhe chama a editora Tinta-da-China, pretende ser um convite à leitura e releitura da obra pessoana, reunindo os principais aspetos da “galáxia” Pessoa, de Alberto Caeiro a Álvaro de Campos, passando por Ricardo Reis e terminando na obra-prima de Bernardo Soares. Com pouco mais de 170 páginas, chegou às livrarias no passado dia 1.

Mas comecemos pelo início. O primeiro capítulo é dedicado à “Pluralidade”. Neste, Jerónimo Pizarro apresenta três leituras da obra pessoana que, para ele, “vão continuar a traçar os caminhos pelos quais os leitores chegam a essa obra”. São elas as expostas em Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa (1949), de Jacinto Prado Coelho, “que apresenta um Pessoa mais unitário”; em Fernando Pessoa, Aquém do Eu, Além do Outro (1982), de Leyla Perrone-Moisés, aluna de Roland Barthes, ”que defende um Pessoa com menos existência”, vivida através das personagens que criou; e em Pessoa por Conhecer (1990), de Teresa Rita Lopes, “que revela um poeta mais diverso”. Através destas três, Pizarro acaba por fazer uma espécie de cronologia dos Estudos Pessoanos (que teve o grande boom nos anos 80), ao mesmo tempo que resume muito do que foi dito sobre Pessoa nas últimas décadas.

O segundo capítulo, “Unidade”, é sobretudo dedicado aos desafios que a edição de uma obra como a de Pessoa — maioritariamente inacabada — apresenta. “Mas como é possível sintetizar o que se ramifica, o que se desdobra, o que fica em aberto, o que está cheio de alternativas, o que passou por inúmeras intervenções?”, questiona o pessoano. Apesar de as edições críticas terem ajudado a responder parcialmente a esta questão, a solução definitiva não parece estar no papel, mas sim fora dele: “Uma edição eletrónica permite ultrapassar com maior facilidade as limitações do códex e, em geral, dos formatos em livro; facilita as marcações, as remissões, os layers e, em geral as edições e edições”, explica Pizarro.

Os primeiros passos já começaram a ser dados. No final do ano passado, foi lançado o Arquivo Digital do Livro do Desassossego, uma plataforma interativa que permite consultar e comparar as quatro principais edições da obra de Bernardo Soares e também criar edições virtuais. Em fevereiro passado, ficaram online os projetos de publicação e o “corpus da poesia”, editada em vida por Fernando Pessoa e, muito em breve, será lançada a edição digital de Fausto, que será apresentada a 21 de junho na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A unidade pode ser mais apelativa, mas a multiplicidade é muito “mais real” e muito mais “interessante”, como diz Pizarro. Então, para quê fugir dela? Fernando Pessoa nunca o fez, e os seus leitores só ganham em seguir os seus passos.

O terceiro capítulo, “Interpretação”, surge na sequência das questões exploradas em “Unidade”. Neste, Jerónimo Pizarro mostra como todos os pormenores importam, desde a “filológica do local de repouso”, à “localização de uma folha num arquivo”, passando pelas “características materiais de todo um escrito” e a história da circulação de um determinado documento. Para o exemplificar, o pessoano recorre ao famoso poema “Liberdade”, uma crítica velada a Salazar (alvo de considerações mais diretas por parte de Pessoa em poemas como “António de Oliveira Salazar”, “Este senhor Salazar” ou “Coitadinho”) muitas vezes interpretada como sendo um texto para crianças, sobretudo depois da sua publicação na antologia O Melhor do Mundo São as Crianças, de Manuela Nogueira. Como escreve Jerónimo Pizarro, “este caso exemplifica até que ponto o sentido de um texto, e nomeadamente de textos políticos, dificilmente pode ser inferido sem atender à história e ao contexto da publicação e da circulação do escrito”.

Os últimos cinco capítulos de Ler Pessoa são dedicados à heteronímia, termo que, explica Pizarro, foi criado depois da morte do poeta (na chamada carta sobre a génese dos heterónimos, Fernando Pessoa usa a palavra “heteronimismo”). O mais interessante é talvez o que é dedicado ao Livro do Desassossego, obra que Jerónimo Pizarro, responsável pela primeira edição crítica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (2010), conhece de trás para a frente. Explicando as principais diferenças entre a primeira e segunda fase do Livro, entre os excertos atribuídos a Vicente Guedes e os excertos atribuídos a Bernardo Soares, “ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa”, Pizarro mostra como Fernando Pessoa transformou um conjunto de textos de teor decadentista numa “obra-prima” com Lisboa no centro. Tudo isto graças a Cesário Verde, a grande influência da segunda fase do Livro.

Com o número aparentemente interminável de publicações que saem todos os anos sobre Pessoa, é bom encontrar um pequeno livro (este tem exatamente 176 páginas) que reúna tudo o que se disse, tudo o que há para dizer e tudo o que se poderá vir a dizer sobre um dos nomes grandes da literatura. Escrito por um dos grandes especialistas na obra de Fernando Pessoa, Ler Pessoa é uma excelente introdução à obra do poeta português (ainda que convenha ter algumas noções básicas antes de o ler), mas é também mais do que isso: é uma homenagem à “constelação” Pessoa e ao poeta que, por tanto o querermos encontrar, nos escapou “a todos”. Mas não é precisamente aí que está o seu encanto?

“É mais nosso, porque continuamos a construí-lo. É menos nosso, porque cada vez é de mais pessoas”, afirma Jerónimo Pizarro. Palavras que inevitavelmente lembram aquelas ditas por Eduardo Lourenço em 2005, em Leipzig, por altura do 70º aniversário da morte do poeta: “[Fernando] Pessoa não precisa de nós e, mais do que simples evocação ou homenagem, este encontro deve deixar Pessoa entregue ao seu enigma para que fiquemos entregues ao nosso”.

O livro será “apresentado” no próximo a 13 de junho (dia do aniversário de Fernando Pessoa), durante um debate na Praça Laranja da Feira do Livro de Lisboa. Pelas 16h, Jerónimo Pizarro estará à conversa com António Cardiello, Claudia Fischer e Filipa de Freitas a propósito deste e outros livros da coleção Pessoa da Tinta-da-China, por ele dirigida.