O cabeça de cartaz era Travis Scott, mas o melhor concerto da segunda noite do festival Super Bock Super Rock foi de Anderson .Paak & The Free Nationals. Ora máquina funk bem oleada, ora precursora do melhor R&B do momento, ora apaziguada a tocar baixinho o seu soul-jazz, ora explosiva e próxima do hip hop, a formação do cantor e baterista de 32 anos esteve sempre impecável, fez da Altice Arena um grande salão de festas e deu um concerto memorável. Tão memorável que foi um dos melhores dos últimos anos no festival. Excluindo-se evocações nostálgicas do passado (Red Hot Chili Peppers, Blur, Eddie Vedder, Iggy Pop), só mesmo a atuação de Kendrick Lamar em 2016 rivaliza com a de Anderson .Paak nesta sexta-feira. Ao seu estilo, ambas foram reveladoras de alguns dos melhores avanços recentes da música americana.
Esta foi a segunda vez que Anderson .Paak atuou na Altice Arena. A primeira tinha sido em abril do ano passado, quando .Paak fez o concerto de abertura de Bruno Mars na sala lisboeta. A confluência dos dois artistas na mesma noite até fez algum sentido, dado que ambos viajam pelas sonoridades R&B, soul e funk.
Há, porém, algumas diferenças: onde Bruno Mars é classicista, Anderson .Paak é futurista. Se o primeiro adapta como ninguém o groove da soul e funk do passado aos tempos modernos, o músico que atuou esta sexta-feira no Super Bock Super Rock apropria-se desses géneros para criar uma fórmula nova, onde cabe a melhor música de dança recente (há temas que evocam levemente um certo Daft Punkismo), o hip hop, o novo R&B, o auto-tune usado com surpreendente bom gosto e uma catrefada de novas soluções sonoras. Menos presa à canção pop, essa fórmula permite longas viagens instrumentais, com uma banda de músicos virtuosos na guitarra, baixo, bateria, teclas e mesa de mistura libertos de amarras.
Durante o concerto, que durou perto de uma hora e quinze minutos, Anderson .Paak teve sempre a plateia na mão, a dançar e a saltar com ele, até mesmo a fazer mosh a seu pedido. “Abram o mosh pit”, pediu a certa altura, com uma sugestão adicional: “Tenham cuidado com as senhoras, protejam as vossas amigas e namoradas”.
Quando “Come Down” abriu o concerto, o público soltou-se e dançou como se tivesse estado uma eternidade à espera daquela injeção rítmica e daqueles versos cantados com uma voz a que é difícil encontrar parentescos: “Now you, drank up all my liquor, come on / What I’m ‘posed to do now?”. Quando .Paak perguntou “não estão cansados, pois não?” e avisou que vinha aí uma canção que exigia “energia”, nada fazia prever os saltos e a euforia com que foi recebido “Bubblin”, novo single do músico, que está a preparar o sucessor do seu aclamado segundo álbum Malibu. Euforia também de Anderson .Paak, que dançou com um segurança, aproximou-se do público, dançou freneticamente com os fãs.
Ao longo do concerto, o músico atirou recorrentemente uns “Yes Lawd” à plateia. Uma expressão que lhe é cara, tanto que batizou assim o disco que editou há dois anos com o produtor musical Knxwledge. Sempre de sorriso rasgado e pose de miúdo traquina que só se quer divertir, Anderson .Paak concedeu uns “obrigado”, viajou entre a dianteira do palco e a bateria, acompanhou na perfeição com voz e baquetas a banda nas suas jams e deixou brilhar o tremendamente talentoso teclista Ron Tnava Avant, num momento a solo em que este tocou e cantou com um auto-tune que deu um agradável tom cósmico à viagem musical.
Mais impressionante ainda foi a inteligência demonstrada na gestão dos ritmos do concerto, com Anderson .Paak e a sua banda a acelerarem e desacelerarem intermitentemente, sempre com grande cuidado, passando pela viagem funk delicada de “Sweet Gidget”, pelo groove de “Heart Don’t Stand a Chance”, pelo jazz e R&B de “The Bird” e pela explosão de “Am I Wrong?”. Altos e baixos, festa e balanço lento de embalar, sempre a grande nível.
Desaguou tudo em músico e público a cantarem “I think I love you” (do tema “Luh You”) a uma voz. Ficou a clara impressão de que o Super Bock Super Rock assistiu ao concerto de um dos melhores músicos e de uma das melhores bandas a aparecer nos últimos anos nos EUA, precisamente na fase em que de fenómeno relativamente popular, Anderson .Paak promete transformar-se em estrela pop de massas. Bastava que o próximo disco replicasse a fórmula do anterior e as probabilidades já seriam grandes, mas o single “Bubblin” sugere um rumo tão imprevisível quanto grandioso. Daqui por diante, a festa poderá tomar proporções avassaladoras, mas a julgar pelos sorrisos e cumplicidade de Anderson .Paak com os seus Free Nationals, por aqui está tudo bem, não há nada que cause dores de cabeça quando ainda há músicas por fazer que ponham o mundo a dançar.
A energia contagiante de Travis Scott
Sons constantes de explosões, fumo com fartura, chamas em palco, um grande cenário de luzes e um volume muito, muito alto. Assim foi o concerto de Travis Scott no Super Bock Super Rock. O rapper texano de 26 anos era o grande cabeça de cartaz do “dia do hip hop” do festival e cumpriu por completo as expetativas dos milhares de jovens que o foram ouvir esta sexta-feira, à Altice Arena. A maior prova disso foi a reação do público. Da plateia às bancadas sentadas, onde quase toda a gente esteva de pé a saltar e dançar, o trap hedonista e agressivo de Travis Scott contagiou quase todos. Foi percetível que, apesar do entusiasmo que se viu em concertos anteriores, era mesmo por ele que a maioria lá estava. Bem ou mal.
É certo que Travis Scott não é consensual. De todos os cabeças de cartaz de hip hop que o festival já teve, aliás, só Kendrick Lamar o é minimamente, fruto de misturar uma sonoridade moderna com uma escrita cuidada. Porém, comparado com a atuação de Future, outro artista de trap, no ano passado, o concerto de Travis Scott foi muito mais enérgico e eficiente.
Confiante, o rapper iniciou o concerto com uma música inédita, “Stargazing”, que tem apresentado apenas em concertos e que será incluída no seu próximo álbum. Ainda sem data de lançamento definida, mas com edição prevista para os próximos meses (“Sairá em breve”, disse esta sexta-feira Travis Scott ao público português), Astroworld será o terceiro registo a solo do rapper. O que equivale a dizer que este só precisou de dois álbuns, Rodeo e Birds in the Trap Sing McKnight, a que se somam duas mixtapes e um álbum em parceria com Quavo, rapper do grupo Migos, para conseguir ser cabeça de cartaz em festivais europeus de nomeada.
O estilo é enérgico. Cantando, ou melhor, gritando sempre com muito auto-tune (ferramenta que permite melhorar artificialmente a voz, tornando-a mais “eletrónica”), como faz aliás quando grava as canções para os discos, a Travis Scott só faltaram as guitarras para ser punk. Afinal, o volume da voz e das batidas instrumentais lançadas por um DJ era tão alto que para alguns foi incomodativo. “Pensava que isto não era assim”, ouviu o Observador à saída, de uma das poucas descontentes.
Ao volume do som e às explosões juntou-se a postura de Travis Scott, que saltou durante o concerto todo, foi gritar junto do público numa plataforma colocada quase a meio da plateia e pareceu ter pilhas inegostáveis. Ele avisou logo no início do concerto: “Vamos ficar um bocadinho loucos esta noite”. Assim foi, com os grandes êxitos do rapper a serem despachados com urgência punk no concerto mais curto da noite.
As palavras e a mensagem aqui são pouco importantes, o que conta é a intensidade das canções, que atuam como um desfibrilador sobre uma juventude ávida de dançar. “Mamacita”, “Goosebumps”, “Sky Walker”, “Company”, “Beibs in the Trap” e uma nova versão de “Love Galore” (que compôs com a talentosa cantora SZA) foram alguns dos temas mais celebrados pelo público. Apesar do público ter aderido à música do texano, voltou a ficar a impressão de que este estilo de música trap, com excertos pré-gravados e outros cantados ao vivo, resulta melhor ouvido numa discoteca do que num concerto.
Um americano, um britânico e uma princesa debaixo da pala
Oddisee, nome de palco de Amir Mohamed el Khalifa, esteve em Portugal em novembro passado para o Vodafone Mexefest (que este ano volta a chamar-se Super Bock em Stock), em Lisboa, mas o concerto neste Super Bock Super Rock foi muito diferente. No final do ano passado, Oddisee deslocou-se a Lisboa sozinho, sem a companhia da sua banda. Esta sexta-feira, porém, contou com a presença dos Good Compny, a “boa companhia” capaz de elevar as suas atuações a outro nível. Misturando géneros como o funk, o R&B e o jazz, os Good Compny complementam Oddisee — também ele uma espécie de híbrido nestas coisas do hip hop — na perfeição.
Para quem viu o rapper e produtor, natural de Washington D.C., no ano passado, não há-de ter tido dificuldades em perceber a falta que fizeram. Mas a atuação foi morna (ainda que com muita corrida em cima do palco) — Oddisee não impressionou em palco e o funk dos Good Compny fez muitas vezes lembrar as bandas dos talk shows norte-americanos. Esperava-se mais de alguém que recebeu tantos elogios desde de o lançamento do último álbum, The Iceberg, em 2017. Ainda assim, o concerto até que nem foi mau aquecimento para o resto do dia.
Princess Nokia veio a seguir. Descrita como um dos nomes mais promissores do hip hop mundial, Nokia (pseudónimo da artista de ascendência porto-riquenha Destiny Nicole Frasqueria) era um dos nomes mais aguardados neste segundo dia do Super Bock Super Rock — como admitiram vários espectadores ao Observador. Com uma história conturbada (a artista perdeu a mãe quando tinha apenas dez anos e passou a infância em famílias de acolhimento), Nokia começou a fazer rimas aos 16 anos. Lançou a primeira música em 2012, o primeiro álbum em 2014 e o último — o único com o selo de uma editora — em 2017.
Foi com este, 1992 Deluxe, que alcançou verdadeiro sucesso, afirmando-se não apenas com uma rapper talentosa, mas também como uma artista de causas. E foi assim que se apresentou em palco na noite desta sexta-feira: sem papas na língua, como se estivesse em casa. Durante o concerto no Palco EDP, Princess Nokia pediu erva, pediu cerveja, misturou-se com o público e distribuiu beijos e abraços como se estivesse entre amigos. Dançou, pulou, rimou e disse aos fãs que os adorava. Mas os abusos levaram Nokia, feminista e ativista, a pedir respeito e a lembrar que existem limites: “Vou dizer isto em inglês, ok? Adoro estar com os fãs, adoro estar com vocês, mas não me agarrem, ok? Eu tenho respeito por vocês, por isso, respeitem-me”.
Tom Misch teve o azar de começar o concerto quando Andersen .Paak ainda estava a tocar com os The Free Nationals no palco principal do Super Bock Super Rock. O californiano começou a atuação às 22h e, pelas 22h50, debaixo da pala de Siza Vieira, as coisas ainda não tinham aquecido. Felizmente para o britânico, as coisas foram mudando à medida que o espetáculo foi avançado. Até porque, apesar de não ser um dos nomes fortes do cartaz desta sexta-feira e de a sua relação com o hip hop ser apenas subtil, Misch não desiludiu e conseguiu manter a multidão, enérgica e dançante, entusiasmada até ao fim. A estreia em Portugal não podia ter corrido melhor.
Misch entrou agarrado à guitarra, mas não faltou um violino em palco — talvez para nos lembrar que foi precisamente assim que, aos quatro anos, o britânico se iniciou no mundo da música, que não abandonou mais. Depois de uma longa introdução, apenas instrumental, Tom Misch e a sua banda avançaram no alinhamento com os temas “Colours of Freedom”, “I Wish” e “It Runs Through Me”, este último retirado do disco de estreia Geography (2018), que recebeu boas críticas e que ocupou grande parte do concerto desta sexta-feira. “South of the River”, outra música de Geography, pôs o público a cantar, mas foi “Crazy Dream” que levou a maior ovação da noite.
Já na reta final do concerto, Misch decidiu partilhar com o público algumas das influências que o moldam enquanto músico e que tornam o seu som tão característico — Stevie Wonder, com uma versão apenas instrumental de “Isn’t She Lovely”, e J Dilla, com um “medley de hip hop oldschool”. No meio de uma nuvem de fumo e com o violino novamente em palco, Tom Misch despediu-se dos português com um “muito obrigado” e com “Watch Me Dance”, tema de 2017.
Esta sexta-feira, pelos palcos do Super Bock Super Rock, passaram ainda Olivier St. Louis, Virtus, Luís Severo, Ermo, Pierre Kwenders, o prestigiado produtor e DJ americano de hip hop The Alchemist e o rapper português ProfJam, que reuniu muita gente às 18h, no palco EDP. O concerto do rapper de Telheiras, que esteve acompanhado por um baterista e pelo DJ e rapper Mike El Nite na mesa de mistura, começou com alguns problemas técnicos, que obrigaram a uma interrupção inicial de alguns minutos. Ainda assim, ProfJam (que se chama na verdade Mário Cotrim) pôs muitos jovens a dançar, em particular ao som do trap dos seus singles recentes “Gwapo” (com Yuzi convidado a ir ao palco) e “Mortalhas”.