Vítor Vaz Pinto, comandante distrital da Proteção Civil de Faro, coordenou as operações de combate ao incêndio de Monchique durante cinco dias. Ao quinto dia, a coordenação do incêndio passou para o comando nacional e logo correu a informação de que o Governo o tinha afastado. Ao sexto dia, a sua sucessora no comando, Patrícia Gaspar, e o primeiro-ministro, António Costa, negam o afastamento por incompetência e explicam que a substituição foi praticamente automática a partir do momento em que o nível de incêndio subiu de quatro para cinco.

Só que essa substituição, mesmo sendo automática, já aconteceu fora de tempo, ou seja, o comando nacional da ANPC devia ter assumido a liderança do combate ao incêndio em Monchique logo na madrugada de sábado, horas depois do fogo ter deflagrado na hora de almoço de sexta-feira, conforme noticia o Público na sua edição desta quinta-feira.

Monchique. Proteção Civil assumiu comando nacional das operações com atraso de dois dias

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Nessa altura o número de operacionais mobilizados ultrapassou os 648, o que, segundo as novas regras, obriga à implementação da chamada Fase V das operações (existem seis, no total). Tal mudança implica que o comando de operações seja liderado por um comandante de agrupamento ou pelo comando nacional da ANPC, ora, como nesta altura não existe comandante de agrupamento distrital do Algarve, segundo a própria Proteção Civil, só dava para escolher a segunda opção.

Esta regra faz parte das novas orientações decididas após os fogos do último ano. A 3 de abril de 2018 foi publicado em Diário da República um despacho do então presidente da Autoridade Nacional de Proteção Civil, Mourato Nunes, que definia a Revisão do Sistema de Gestão de Operações (SGO). São, por isso, essas as regras que valem no incêndio de Monchique. Ora, esse mesmo SGO esclarece no artigo 1º que deve ser garantido o “desenvolvimento de um sistema evolutivo de comando e controlo adequado à situação em curso”. Ou seja: quanto maior o incêndio, maior terá de ser a hierarquia do comando.

Por exemplo, quando há um pequeno foco de incêndio e um carro de bombeiros chega ao local, o chefe dessa equipa torna-se imediatamente o Comandante das Operações de Socorro (COS). E esse será, naturalmente, o nível um. Se o fogo começar a ganhar dimensões, a hierarquia vai subindo e chegará, naturalmente, ao Comandante Distrital da Proteção Civil se o incêndio tiver uma dimensão considerável. No caso de Faro, esse comandante era Vaz Pinto. Ou seja: a partir do quarto nível de incêndio (a partir de 324 efetivos), seria sempre Vaz Pinto o responsável. O que aconteceu durante vários dias.

No terceiro capítulo do Sistema de Gestão de Operações são então tipificados os vários níveis de incêndio (o que também é aplicável noutro tipo de desastres, como sismos). Assim, à partida, há uma certeza: a partir do momento que o fogo passar para o nível cinco, a coordenação do combate ao incêndio passa para o comando nacional da Proteção Civil.

Mas, afinal, o que define como se passa do nível quatro para o nível cinco? É certo que pode haver alguma subjetividade na definição da “complexidade” do incêndio, mas existe uma matriz que define critérios objetivos, como se pode verificar nos artigos 45º e 46º do Sistema de Gestão de Operações. Um dos critérios é, precisamente, o número de operacionais. Segundo fonte da Proteção Civil ouvida pelo Observador estava a tornar-se “inevitável” avançar para o nível cinco, aquele que vai da presença de 648 a até 1944 operacionais, como se pode ver através da matriz da Fase IV e da matriz da Fase V.

Matriz da fase 4 de incêndio

Matriz da fase V de incêndio

A mesma fonte da ANPC explica ao Observador, para justificar a complexidade da coordenação, que chegou a contar 172 entidades envolvidas na ação da Proteção Civil: câmaras municipais, juntas de freguesia, bombeiros, polícias, forças armadas, empresas de água e luz, entidades de turismo, entre muitas outras entidades. A passagem a nível 5 era por isso mais do que expectável.

Além disso, fontes da ANPC contactadas pelo Observador explicam que “o comandante Vaz Pinto continua envolvido na coordenação. Ele e o Abel [Gomes], o segundo comandante distrital. Até porque a Patrícia é lá de cima, não conhece o terreno. Por isso, naturalmente que muita da coordenação continua a passar por ele. Ele está na equipa. A mudança de comando é uma questão quase técnica”.

De acordo com o mesmo Sistema de Gestão de Operações (SGO), “a decisão de evolução da organização para um nível superior é da responsabilidade do COS, que a deve tomar sempre que os meios disponíveis na intervenção inicial e respetivos reforços se mostrem insuficientes, ou quando a previsão do potencial dano o exigir ou aconselhar”. Ou seja: de acordo com o SGO, em condições normais, seria o próprio Vaz Pinto a aumentar o nível do incêndio de quatro para cinco, uma vez que era ele o COS. O Observador não conseguiu apurar se o comandante foi pressionado a aumentar o nível ou se o fez de livre vontade, mas uma coisa é certa: Monchique já tinha — e essa informação foi pública — mais de 1000 efetivos, o que tornava inevitável a passagem ao nível cinco.

Já na terça-feira, Patrícia Gaspar tinha garantido que a substituição do comando “não é uma rutura, é uma solução de continuidade.”  O primeiro-ministro também disse, já esta quarta-feira, que a substituição “não constitui embaraço nenhum, constitui a execução daquilo que está planeado”. E explicou: “Em função do tipo de ocorrência, o escalão de comando vai variando. O primeiro escalão de comando, é o local. Quando ganha uma dimensão superior, passa a um escalão supra-municipal, quando tem um escalão superior, passa para um escalão de comando distrital e quando ganha maior dimensão ainda, passa para o escalão nacional, é isto que, infelizmente, tem vindo a acontecer.”

A questão é perceber porque o nível de comando não foi alterado logo ao segundo dia (4 de agosto) quando às 02h06 já existiam 670 operacionais no terreno, segundo dados da próxima ANPC. Ou seja: pelo SGO, a coordenação deveria, desde logo, ter passado para as mãos do comando nacional. Ainda assim, fonte da ANPC explica que a estrutura de comando esteve sempre a funcionar e que o comando nacional esteve sempre em contacto com Vaz Pinto.

Em 2012, aí sim, Vaz Pinto foi substituído do cargo de comandante nacional da ANPC devido a erros cometidos no combate aos incêndios na Serra do Caldeirão, ocorridos no verão de 2011. Passou então a comandante distrital, o seu lugar de origem, cargo que ainda ocupa. Na altura, Vaz Pinto admitiu ter cometido um “erro pessoal” na avaliação do incêndio e na estratégia de o combater. Isto depois de um relatório muito crítico do especialista Xavier Viegas, que arrasou a prestação do comando.