Um dos primeiros, ou talvez mesmo o primeiro filme americano anti-Ku Klux Klan não foi feito por um realizador negro, nem por um cineasta com vocação “militante”. Foi obra de um sujeito chamado Ted V. Mikels, rodado em 1966 e intitulado “The Black Klansman”. É a história de um negro de pele muito clara, que depois da filha ter morrido assassinada pelo Klan numa igreja, se torna membro desta organização racista para se vingar dos assassinos. Mikels era um realizador de filmes de “exploitation” de série Z, em especial de terror, ficção científica e eróticos, com títulos como “Dr. Sex” ou “The Astro-Zombies”, e rodou “The Black Klansman” para capitalizar no clima de agitação político-social do movimento dos Direitos Civis (a Marcha para Selma tinha decorrido no ano anterior) e não com qualquer generosa intenção de intervenção cívica e política.

[Veja o “trailer” de “The Black Klansman” (1996)]

Apesar do seu sensacionalismo, do oportunismo comercial, da produção pobre, da rodagem às três pancadas e do esquematismo do enredo, “The Black Klansman” foi rodado mesmo em cima da actualidade da época. Por isso, mesmo que involuntariamente, no seu realismo cru e forma tosca, o filme de Ted V. Mikels faz um retrato da atmosfera incendiária, de tensão racial, de raiva e confronto violento que se vivia nos EUA nesses anos de convulsão nacional, mostra o poder que o Klan tinha na altura no Sul e faz passar na história, de maneira espontânea e automática, uma mensagem política e social. Spike Lee podia ter aprendido alguma coisa com “The Black Klansman” se por acaso o tivesse visto antes de filmar o seu “BlacKkKlansman: O Infiltrado”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja o “trailer” de “BlacKkKlansman: O Infiltrado]

A doença infantil do cinema de Spike Lee, que lhe tem prejudicado e estragado bastantes filmes, é a veia comicieira, a sobreexcitação militante, o exibicionismo da histeria activista, que o realizador de “Malcom X”, ao invés de moldar, canalizar e veicular naturalmente nas histórias, expressa de forma espalhafatosa, demonstrativa e descabida. É o que acontece mais uma vez em “BlacKkKlansman: O Infiltrado”, balizado por Lee com um prólogo em que Alec Badwin interpreta um supremacista branco ficcional que arenga aos convertidos, e com uma conclusão feita de imagens – descontextualizadas — dos distúrbios ocorridos em Charlottesville, em 2017, de comentários de David Duke, antigo líder do Ku Klux Klan (e que é uma das personagens do filme) e de declarações de Donald Trump sobre os mesmos.

Ou seja, para quem não percebeu, apesar de só ter faltado Spike Lee pôr uma gigantesca seta luminosa no ecrã a apontar, os EUA continuam tão intolerantes e racistas hoje como nos anos 60 e 70, e Donald Trump é fazenda da mesma peça de David Duke. O curioso é que, mesmo com estas excrescências radicais, “BlacKkKlansman: O Infiltrado” é um filme moderado e com um discurso de conciliação interracial. De tal forma, que algumas das críticas mais violentas vieram de militantes negros de extrema-esquerda, caso do “rapper” e realizador Boots Riley. Este atacou Lee por apresentar o herói do filme, o primeiro polícia negro de Colorado Springs nos anos 70, e a polícia em geral, sob uma luz positiva, e por o cineasta ter concebido uma campanha para promover a imagem da polícia de Nova Iorque junto das minorias étnicas da cidade, e da qual, para Riley, “BlacKkKlansman: O Infiltrado” parece “uma extensão.”

[Veja a entrevista com Spike Lee]

O filme inspira-se na história real de Ron Stallworth (esplendidamente interpretado por John David Washington, filho de Denzel Washington, ao estilo de uma personagem de “blaxploitation” e com a voz do pai), que na década de 70 se tornou no primeiro agente de cor da polícia de Colorado Springs, e em colaboração com o seu colega e amigo Flip Zimmerman (Adam Driver), infiltrou e desmantelou a célula local do Ku Klux Klan. Stallworth também vigiou os movimentos radicais negros, e algumas das melhores sequências de  “BlacKkKlansman: O Infiltrado” são aquelas em que, ainda sob uma identidade falsa, namora com uma militante que conheceu num comício que Stokely Carmichael, líder do Black Power, foi fazer à cidade, procurando que ela não perceba que ele é polícia, enquanto tenta pôr água na fervura no discurso inflamado da “sister”.

[Veja a entrevista com John David Washington]

Percebe-se a sanha do referido Boots Riley contra o filme. A personagem de Stallworth é um exemplo e um símbolo de reformismo pacífico e não de revolução violenta, um negro inteligente e ponderado que se torna polícia para mudar a instituição por dentro, a pouco e pouco, e não para rebentar com ela; os membros do Ku Klux Klan, apesar de perigosos, são basicamente um grupo de pacóvios, broncos e ignorantes (tal como o seu líder nacional, David Duke, interpretado por Topher Grace); e a polícia, embora tenha lá dentro algumas maçãs podres, é composta por pessoas que na maioria prezam o seu dever e a protecção da comunidade e não têm nem alimentam preconceitos raciais ou ódios étnicos.

[Veja a entrevista com o verdadeiro Ron Stallworth]

https://youtu.be/adkcxq8uuGw

Farpas espetadas em Donald Trump, óbvios ululantes anti-racistas e demagogia à parte (a forma como Lee manipula imagens de “O Nascimento de uma Nação”, a certa altura da fita, é lamentável, independentente do que se possa pensar da representação do Klan feita por D.W. Griffith), e depois de devidamente “espremido”, “BlacKkKlansman: O Infiltrado” é um filme apenas moderadamente interessante, um título menor e muito distante dos grandes momentos do já longo currículo de Spike Lee, como “Não Dês Bronca”,  “Quanto Mais Melhor”, “Passadores”, “Verão Escaldante” ou “A Última Hora” — todos eles, nem por acaso, limpos de piromania política e de activismo pronto-a-indignar.

[Veja uma cena de “BlacKkKlansman: O Infiltrado”]

Encarado no que importa, o filme parece ter saído da década de 70 em que decorre, uma série B policial e de comédia anti-racista, com muitos clichés e muita sinalética de didactismo político-social, e um jeitinho de “blaxploitation”, beneficiando imenso de dois actores (Washington e Driver) inspiradíssimos para esconder as suas limitações e tipificações. “BlacKkKlansman: O Infiltrado” é menos do que a soma das suas partes, mesmo já descontando a barulhenta, redundante e simplista ganga de “agitprop” que traz cosida. Spike Lee ainda não compreendeu que, por mais banzé que faça, e por mais razão justiceira que acha que tenha e no-la queira esfregar nos olhos e enfiar pelos ouvidos dentro, o que conta mesmo e o que fica no fim é o cinema, não é o comício.