“Os corpos das mulheres tornaram-se verdadeiros campos de batalha e a violação está a ser usada como arma de guerra.” A frase, pronunciada por Denis Mukwege aquando da entrega do Prémio Sakharov em 2014, resume todo o programa deste médico ginecologista, que é mais do que um clínico — é um verdadeiro ativista.
Nasceu em 1955 na República Democrática do Congo (RDC), o terceiro de nove filhos de um pastor Pentecostal. Em criança, Denis acompanhava várias vezes o pai em visitas a membros da comunidade — o que, segundo conta, o inspirou a enveredar pela Medicina. Especializou-se em pediatria e assim continuaria a cuidar de crianças vida fora, não fosse uma experiência ter-lhe mudado a vida: no Hospital Lemera, na sua terra natal de Bukavu, como pediatra teve contacto de perto com muitas mães que, por falta de tratamento e acompanhamento devido, sofriam de profundas lesões genitais após o parto. Foi aí que tomou a decisão de ir estudar ginecologia e obstetrícia para a Universidade de Angers, na esperança de poder ajudar outras como elas.
A experiência em França foi transformadora, como o próprio Mukwege reconheceu à revista Lancet, anos depois: “Os professores que me deixaram uma marca maior foram os que combinavam humanidade e profissionalismo, com um foco nos valores humanos”, contou.
“A medicina puramente mecânica assusta-me. Quando vejo médicos que combinam o profissionalismo com o humanismo, esses sim, são os que estão a fazer bem o seu trabalho.”
De regresso à RDC, Mukwege abriu a sua própria clínica, o Hospital Panzi. O objetivo inicial era o de contribuir para reduzir a taxa de mortalidade materna, ou seja, o número de mulheres que morrem por complicações na gravidez ou no parto — causa de morte de 35% das mulheres no país. Mas a primeira paciente a chegar à clínica, em setembro de 1999, alteraria o rumo do próprio Hospital: “Era uma mulher que tinha sido violada por várias pessoas, e os seus genitais estavam dilacerados. Ela chegou com ferimentos muito, muito graves”, recordou à News Deeply o cirurgião.
Desde aí, só nos primeiros três meses, 45 mulheres foram operadas por Mukwege por problemas semelhantes. E foi então que o médico percebeu que estava perante um problema grave da RDC. “Ao fim de seis meses percebi que muitas das pacientes vinham ter comigo com a mesma história: ‘Fui violada e eles depois atingiram-me com uma baioneta’ ou ‘fui violada e eles depois queimaram borracha nos meus genitais’”, explicou o médico. Foi aí que Mukwege entendeu que a violência sexual estava a ser aplicada não apenas por motivações pessoais, mas usada como arma de guerra nos conflitos que opõem variadas milícias na RDC.
A RDC (antigo Zaire) está mergulhada num conflito sangrento que se arrasta há mais de 20 anos pelo controlo de um dos países do mundo mais rico em minerais. A Segunda Guerra do Congo terminou oficialmente em 2003, mas o país continua mergulhado em instabilidade política e os vários conflitos internos têm sido usados como desculpa pelo Presidente Joseph Kabila para se manter no poder — adiando eleições desde dezembro de 2016, altura em que deveria abandonar o cargo.
A RDC é um dos países mais perigosos para se ser mulher em todo o mundo, tendo sido apelidada pelas Nações Unidas de “capital da violação”. Os dados mais recentes sobre a violência sexual no país, de 2011, dão conta de uma média de 48 mulheres violadas por hora. Ao todo, quase dois milhões de mulheres congolesas dizem já ter sido violadas pelo menos uma vez na vida. Num país em guerra há muitos anos, onde as mulheres assumem posições de charneira na economia familiar pela falta de homens e onde os grupos armados proliferam, são muitas as situações em que uma mulher se vê vulnerável fora de casa, à mercê de grupos de homens. Em 2013 um soldado de 16 anos, Noel Rwabirinba, resumiu a visão destas milícias face às mulheres: “Se vemos raparigas, é nosso direito podermos violá-las”, disse o adolescente, que admitiu ter violado 53 mulheres até então.
São estas mulheres que acabam muitas vezes por bater à porta do Hospital Panzi, feridas e mutiladas. Segundo o Hospital de Mukwege, 12% das suas pacientes sofrem de sífilis e 6% tem o vírus do HIV. Ao todo, mais de 50 mil mulheres já foram tratadas por Mukwege e a sua equipa desde 1999. E o médico faz questão de incluir também apoio mental no tratamento destas vítimas: “Muitas vezes é muito importante ajudá-las a sarar psicologicamente e dizer-lhes ‘tu não estás destruída. Eles querem destruir-te, mas tu continuas a ser uma mulher. És uma mulher e tens de ser forte’”, recorda Mukwege.
Para além do seu trabalho como médico, o ginecologista assume também uma postura de ativista, denunciando a violência que se vive no seu país.
“Vemos mais e mais mulheres a chegar do centro do país, onde antes não havia conflito. Isso é resultado de uma metástase da violência e dos acordos de paz que não se respeitam. Na verdade, é preciso que estes grupos sejam desarmados mentalmente, no plano psicológico, o que não está a ser feito”, declarou Mukwege à Agência Lusa, em julho de 2017.
A sua postura politizada, defendendo as vítimas que trata, trouxe-lhe reconhecimento internacional, mas também sérios problemas na RDC. Em outubro de 2012, Mukwege e a sua família foram violentamente atacados na sua casa. Cinco homens, armados com Kalashnikovs, entraram na residência do médico, em Bukavu, e fizeram reféns as suas duas filhas até Mukwege chegar a casa. Quando isso aconteceu, o guarda-costas do médico tentou intervir para proteger a família e acabou por morrer, atingido a tiro. Mukwege e a família conseguiram fugir para a Bélgica.
O médico, contudo, não conseguiu ficar longe de Bukavu durante muito tempo e, no ano seguinte, regressou à sua clínica. A motivação dos atacantes nunca foi oficialmente apurada, mas muitos apontaram o facto de, semanas antes do sequestro, Mukwege ter feito um discurso nas Nações Unidas onde responsabilizou diretamente o Governo da RDC pela proliferação de conflitos no país e pela violência sexual a que milhares de mulheres estão sujeitas.
O desconforto da liderança política de Kabila perante este ginecologista de 63 anos é tal que, esta sexta-feira, em reação à atribuição do Nobel a um dos seus cidadãos, o ministro das Comunicações Lambert Mende tenha reagido à Associated Press reconhecendo o “trabalho tremendo” realizado por Mukwege na Medicina, mas sublinhando que o clínico tem tendência a “politizar” o seu trabalho humanitário.
O Comité de Oslo concordou com essa definição, mas, ao contrário do regime de Kabila, vê-la como sendo positiva: “Denis Mukwege é o símbolo mais destacado e unificador, tanto nacional como internacionalmente, da luta para acabar com a violência sexual na guerra e nos conflitos armados”, declarou o painel do Nobel da Paz. Segundo os rumores, o Comité tem nomeado Mukwege para a short-list nos últimos anos, mas nunca antes o tinha selecionado para receber o Prémio. Jan Egeland, presidente do Conselho para os Refugiados da Noruega, declarou no Twitter que há dez anos indicou pela primeira vez ao Comité o nome do médico, classificando esta escolha para o Nobel da Paz como a “melhor em muito tempo”.
The best Nobel Prize in a long time. Finally focus on horrific & widespread sexual violence in war. Must lead to action against impunity for perpetrators & preventive action within armies & militias. It is ten years since I fist proposed heroic Mukwege for Nobel Prize. https://t.co/fOpphHFdYs
— Jan Egeland (@NRC_Egeland) October 5, 2018
A filosofia de Mukwege é simples: o papel da violência sexual nos conflitos é tão grave como a violência armada e este é um problema de todos, que tem de ser combatido por todos. “Este não é um problema só das mulheres, é um problema da humanidade e os homens têm de assumir responsabilidades para acabar com ele”, declarou o médico em 2013 numa entrevista. “Não é um problema de África. Na Bósnia, na Síria, na Libéria, na Colômbia, temos a mesma coisa.”
Quando a atribuição do Nobel foi anunciada, Mukwege estava no meio de uma operação, tendo sido interrompido por um grupo entusiasmado: “De repente, as pessoas entraram e contaram-me as notícias”, disse mais tarde, já no meio dos festejos. O maior reconhecimento vindo da comunidade internacional interrompeu-o a fazer o trabalho que faz todos os dias, há quase 20 anos: sarar os corpos, tentar aliviar as almas e relembrar ao mundo o que tem de ser feito.