De dentro para fora — o movimento foi repetido vezes sem conta durante o desfile de Dino Alves, o último desta 51.ª edição da ModaLisboa. Numa forma de aludir àquilo a que o criador chama de “caráter” (em substituição do chavão “beleza interior”), todos os coordenados refletiram uma vontade de expor o invisível, através de peças do avesso, de recortes reveladores da pele e de transparência que nada mais fizeram senão mostrar outras peças usadas por baixo. No final, enquanto projetou a frase “Tudo o que somos está dentro de nós”, fez os modelos regressarem à passerelle, carregados com pesados sacos de xadrez. O que começou por ser apenas um símbolo de bagagem individual, revelou-se ser também o retrato de um designer de moda com a casa às costas.

“Fiz isto tudo numa semana e meia”, admite ao Observador. “Confirmei que ia fazer o desfile mesmo no último dia do prazo para comunicar o calendário. Achei mesmo que não tinha condições”, acrescenta. Na mesma altura em que produziu o guarda-roupa para a festa dos 20 anos do Lux Frágil, Dino Alves ficou sem o atelier que ocupava há nove anos, na Rua da Madalena. O edifício foi comprado e, possivelmente, será convertido num hotel ou num complexo de apartamentos para turistas. “Agora, estou num espaço que uma amiga me emprestou temporariamente. Quando lá chegámos, não tinha tesouras, agulhas, linhas… Estava tudo dentro de caixas”, conta. A solução, como referiu, é temporária. Em busca de um novo espaço para o atelier, Dino Alves deu por si a contar somente com a própria criatividade.

Dino Alves © ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

LAB, a consagração de uma geração de ouro

O dia começou luminoso, junto ao Lago do Botequim do Rei. A luz, o verde da água e a brisa só enalteceram as silhuetas da Imauve, marca de Inês de Oliveira. Quem acompanha o trabalho da jovem criadora da plataforma LAB, saberá que todas as coleções partem de manifestações artísticas. Neste domingo, último dia da 51ª edição da ModaLisboa, depois da arquitetura, da pintura, da joalharia e do cinema, foi a escultura a inspirar o verão de 2019. “Fui em Paris no início do ano. Estava sozinha no Louvre às 11 da noite e tive um flash quando olhei para a Vitória de Samotrácia. Fiquei tocada com a forma como os tecidos são representados na escultura. Reproduzir a fluidez de um tecido no mármore é dificílimo, fascinou-me”, conta ao Observador.

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Quando apresentou a última coleção, em março deste ano, Inês já trazia o bichinho da estação que estava por vir. O branco do mármore abriu o desfile, seguiram-se o azul da pedra, os tons metálicos, sob a forma de lantejoulas, absorvidos do bronze e do cobre, e as diferentes tonalidades do barro. A coleção, transversal, foi das peças quotidianas aos fluidos vestidos de festa. Inês quis que as manequins caminhassem assim, sem pressa, a desfrutar do passeio, até. Numa fase em que a marca cresce a cada estação e conquistados dois pontos de venda físicos fulcrais em Lisboa e no Porto (Loja das Meias e The Feeting Room), a Imauve avança da capital portuguesa para o mundo. Daqui em diante, a grande aposta é o digital, uma ponte para chegar a mercados estrangeiros.

Imauve © ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

Na mesma tarde, mas já no interior do Pavilhão, Carolina Machado aproximou o verão português da atmosfera dos trópicos. A criadora pode ter partido das silhuetas de Cuba nos anos 50, mas os vestidos de toque acetinado com franzidos laterais, tal como os tops com uma única manga, remeteram para as silhuetas dos já saudosos anos 2000. Mas foi na paleta que o tropicalismo de Carolina se assumiu na plenitude. Os blazers, vestidos, saias e fatos completos começaram por pintar a passerelle de bege, branco e castanho, mas o amarelo vivo, o salmão e o verde não tardaram. “Sempre que penso em verão, penso num ambiente muito quente e tropical, Cuba fazia todo o sentido. Além disso, também é um verão nostálgico, desperta saudades do calor, dos mojitos e da salsa”, conta ao Observador.

Carolina passou por Cuba em pequena (vantagens de se ter um pai piloto), quando a idade ainda não lhe permitia experimentar nenhum tipo de cocktail alcoólico. Hoje continua a viajar, tal como a roupa que desenha. A marca existe oficialmente desde 2016 e, desde essa altura, admite que terá vendido três peças, no máximo, a clientes portugueses. “Tem sido um processo lento e demorado e, como sabemos, não há grandes apoios. A marca ainda não é autossustentável”, afirma. Enquanto as vendas se concentram na loja online, com os Estados Unidos e, logo a seguir, Alemanha, Suíça e Holanda como principais mercados, Carolina procura lojas físicas que queiram acolher coleções como a que apresentou este domingo.

Carolina Machado © ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

Sem questões do foro das vendas e da distribuição, Olga Noronha, outrora embaixadora da joalharia medicamente prescrita, voltou a cumprir o calendário da ModaLisboa. Antes da coleção propriamente dita, as confissões de uma designer que, mais do que isso, é artista e que, como tal, volta e meia, se sente uma espécie de peixe fora de água. “Ultimamente, tenho dito que sou a penetra mais bem-vinda da ModaLisboa. Há pouco, falaram-me em moda e eu senti-me compelida a dizer: ‘Não é moda, são esculturas’. Cada vez mais, tento fugir a isso, não me enquadro, mas tento enquadrar-me, ao mesmo tempo criando um momento disruptivo, que proporcione uma sensação diferente. É aquilo que o corpo transporta, que encaixa, mas que tem uma forma distinta e, se calhar, ainda melhor fora do corpo. A minha parte comercial são os museus e os colecionadores de arte, lido com eles diretamente”, explica a criadora ao Observador.

Hipnopompia, estado alterado de transição entre o sono e a vigília física. A meio da noite, meio atordoada, Olga costuma ter as melhores ideias, uma delas está na base desta coleção. Pegou nas garças, figura que já queria trabalhar há algum tempo, e na memória de um móvel, ao estilo renascentista, que a convidaram a fazer quando tinha 15 anos, composto por marfim, embutidos e pedras incrustadas. “Não costumo ser figurativa, gosto de trabalhar o abstrato e de tirar partido de erros químicos e dos materiais, mas desta vez não”, acrescenta. Estas são, muito possivelmente, as criações mais “bonitinhas” que Olga Noronha já fez. Através dos acetatos, recriou o aspeto de sodalites, ametistas e lápis-lazúli, a madrepérola foi ela mesma. Para os adornos, a inspiração veio do Oriente — além das garças, vimos carpas e flores de cerejeira, tudo ao som de Feeling Good, de Nina Simone. Segundo Olga, a música é simplesmente a folha de sala da coleção.

Olga Noronha © ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

“Tenho esta obrigação com a ModaLisboa porque gosto, faço-o de coração para mim e para eles. E essa obrigatoriedade dá-me muito alento porque sou daquelas que gosta de trabalhar sob pressão”, completa. Mais no mundo artístico do que propriamente no do design de moda, Olga soma colaborações várias universidades internacionais. Em julho, deixou de dar aulas na ESAD Matosinhos, mas continua ligada ao Politécnico de Milão, à Central Saint Martins, em Londres, e à Creative Academy do grupo Richmont, em França.

Depois de Olga e das suas peças rígidas, Gonçalo Peixoto foi o último nome da plataforma LAB a pisar a passerelle do Pavilhão Carlos Lopes. O jovem designer teve direito a casa cheia — podemos dizer mesmo que afluência se comparou à do desfile de Filipe Faísca –, tudo para ver de perto um jardim que o criador construiu, única e exclusivamente dedicado às mulheres. “É uma coleção que evidencia as mulheres, é uma homenagem. É um paraíso onde mulheres se apaixonam por mulheres, onde mulheres são fortes com mulheres, quase um mundo utópico onde os homens não existem”, refere designer ao Observador. Foi com este feminismo implícito que as manequins irromperam pela sala de desfiles, enquanto carregavam ramos de flores num dos braços.

Gonçalo Peixoto © ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

À segunda participação na ModaLisboa, Gonçalo Peixoto superou-se. À lista de materiais que já lhe conhecíamos, adicionou rendas, bordados, brocados e cetins, um desafio bem sucedido que justapôs o sportswear à base de tecidos técnicos e os requintes de uma coleção de alta-costura. Num dos coordenados, isolado de tudo o resto, Peixoto usou um brocado multicolor. Encontrou-o em Nova Iorque e foi amor à primeira vista. “Estava a começar a coleção e apaixonei-me logo por aquele tecido. De tal maneira que tive de trazê-lo debaixo do braço. Não havia suficiente, mas trouxe o que pude. São peças muitos exclusivas”, explica. A paleta é simples de justificar — todos os verdes, rosas e amarelos presentes na coleção podem ser encontrados num jardim. Sem devaneios cromáticos, o criador esmerou-se nos materiais, do linho italiano revestido de uma película de acabamento iridescente e do vinil rosa bebé às franjas de lurex que, por terem sido milimetricamente aplicadas no tecido, compõem as peças mais caras da coleção.

“Se de um lado tenho uma mulher delicada, com rendas, logo a seguir, corto com materiais mais contemporâneos, mais ao estilo Gonçalo Peixoto”, continua. Os progressos de Gonçalo Peixoto na passerelle da ModaLisboa não têm como não dar frutos. O designer conta com a recetividade de buyers internacionais que fazem da Rússia, de Itália e de Nova Iorque os seus principais mercados.

Do outro lado do Atlântico, chegou uma das novidades desta edição. Andrew Coimbra, um lusodescendente do Canadá, voou para Lisboa para desfilar pela primeira vez em solo português. Com ele trouxe um streetwear com retoques de alfaiataria, numa coleção assente na fluidez de género, mas também numa clara orientação comercial. E foi o próprio designer a contactar a ModaLisboa. Com uma marca já disseminada por vários pontos de venda na América do Norte, Andrew veio atraído pelos elevados padrões de qualidade da moda portuguesa. Quem sabe se o próximo passo não será começar a deslocar a sua produção para o lado de cá. Pelo menos, as apresentações já estão feitas.

Kolovrat © ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

O calendário da plataforma LAB ficou completo com o desfile de Duarte. A sua designer, Ana Duarte, inspirou-se no histórico Monaco Grand Prix, desdobrando a referência em cores como o bege, o vermelho, o preto, vários tons de azul e o laranja. Através de minissaias e de macacões, o universo das corridas de fórmula 1 abriu o calendário do dia, num desfile conjunto com a marca Imauve.

Faísca e Kolovrat, o verão dos veteranos

Lidija Kolovrat, um dos pesos pesados da ModaLisboa, começou por prometer uma liberdade, possível apenas em sonhos. O exercício resultou numa parada de cores garridas, ora sólidas, ora em dégradé ou sob a forma de estampados alucinantes. Formalmente, brincou com desconstruções, recortes, inversões e camadas (uma linguagem já cunhada pela criadora), balançando entre a fluidez de vestidos e camisas e a estrutura de trench coats e macacões. Antes dela, Filipe Faísca deu continuidade ao trabalho iniciado na última coleção. Incorporando o Bordado da Madeira, o verão do criador assumiu a leveza do organdi, do linho, da seda e da viscose, servindo-se deste ponto tradicional para deixar apontamentos nas peças. Sem sobressaltos de cor, a coleção desfilou sempre entre o cru, o pêssego, o creme e amarelo.