Há muitas antologias de Fernando Pessoa mas não há outra como esta. Composta por 87 poemas, escritos pelo ortónimo e por nove heterónimos, Poesia — Antologia Mínima, publicada neste mês de outubro pela editora Tinta-da-China, pretende apresentar em formato “mini” as várias facetas da obra pessoana, onde se inclui a poesia de Caeiro ou Campos, mas também os poemas políticos de Pessoa, o classicismo de Reis ou a sátira de Joaquim Moura-Costa. Nas palavras do seu editor, Jerónimo Pizarro, trata-se de um convite para redescobrir Pessoa, dirigido aos “‘meros amadores’ da poesia pessoana, a quem não conhece essa poesia, a quem ainda não a julgou bem, a quem a pode redescobrir, aos alunos e aos que ainda não se sentem alunos”. Como o próprio pessoano, que, como ele próprio admite no prefácio, “embora seja, entre outras coisas, um professor”, aprende “incessantemente” o seus “estudantes”.

Esta antologia surge na sequência de uma outra, preparada por Jerónimo Pizarro juntamente com Nicólas Barbosa para o Fondo de Cultura Económica, um grupo editorial com presença em muitos países de língua castelhana. Publicada em 2016, Pessoa múltiple. Antología bilingüe tem 11 capítulos — dedicados a Pessoa, Caeiro, Reis, Campos, à poesia inglesa, francesa, Fausto, Rubaiyat, quadras, Mensagem, juvenília e a “outras figuras” — e é naturalmente mais extensa do que esta agora editada e que Pizarro procurou que fosse literalmente “mais ‘mínima’” do que a anterior mas que “contemplasse essas mesmas ‘áreas’”. “Já em Pessoa múltiple tínhamos observado que as antologias pessoanas costumam cingir-se a Pessoa, Caeiro, Reis e Campos. A única ‘área’ da qual decidi abdicar foi da juvenília”, os poemas da juventude. “Com tantos ‘autores fictícios’, 136, preferi ter alguns deles”, explicou ao Observador.

Esta escolha editorial, que distingue esta antologia de todas as outras, é evidente logo nas primeiras páginas, onde é possível encontrar o poema “O Aldeão”, famoso pelos versos “Ó sino da minha minha aldeia/ Dolente na tarde calma/ Cada tua badalada/ Soa dentro da minha alma”, mas também os menos conhecidos “Mar. Manhã.”, com que o volume arranca, e “Fonte”. De modo a mostrar a grande variedade da poesia ortónima, a que o primeiro capítulo é dedicado, foram também incluídos alguns poemas políticos, como “Coitadinho” ou “Liberdade”, poemas em inglês, em francês e também partes de Mensagem e do texto dramático Fausto (que teve direito à sua primeira edição crítica este ano), organizados cronologicamente.

Poesia — Antologia Mínima chegou às livrarias no passado dia 12 de outubro. A edição é da Tinta-da-China

É, aliás, à poesia ortónima que é dedicada uma grande parte do livro (são 61 poemas ao todo). Jerónimo Pizarro decidiu dar “mais destaque” a este lado da obra de Fernando Pessoa porque a poesia ortónima “é maior, clara e amplamente maior”. “Proporcionalmente, é imensa. O que acontece é que quase ninguém tem lido o ortónimo passando pelos anos todos e contemplando os poemas ingleses, franceses, Fausto, Rubaiyat, quadras e Mensagem. Apenas Eduardo Lourenço, por exemplo, na sua antologia pessoana, defendeu a inserção do Fausto”, afirmou o pessoano, salientando que, em termos de quantidade, a poesia do ortónimo “vai crescer mais porque falta publicar muita poesia não datada e muitos poemas ingleses”. Este crescimento “em expansão” da obra pessoana foi também uma das razões que motivou a organização desta nova antologia.

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“Quando cheguei a Portugal, em 2000, existia uma antologia pessoalíssima do Eugénio de Andrade, aquela do Adolfo Casais Monteiro e poucas mais, feitas com um misto de amor e investigação. O nosso conhecimento de Pessoa está em expansão acelerada, mas muitas das antologias que existem parecem preparadas ainda a partir da Ática [que começou a publicar as obras completas de Pessoa nos anos 40, alguns anos após a sua morte], da Aguilar [uma editora brasileira] e da Internet”, afirmou Jerónimo Pizarro. “Não parece que estejamos a ler as obras mais completas e volumosas para encontrar novos poemas, surpresas e novidades, mas apenas o que já faz parte de uma certa vulgata pessoana. A Antologia Mínima é uma tentativa de fixar melhor alguns poemas dessa vulgata, como por exemplo ‘Dizem?’, e de resgatar alguns que ainda não sabemos se passarão a prova do tempo, como ‘The happy sun is shining’, por exemplo.”

Foi por esta razão que Pizarro decidiu incluir poemas escritos por Fernando Pessoa (ortónimo e não só) em inglês e francês, sem tradução para português, outra das novidades da Antologia Mínima. Essa decisão editorial foi também em parte influenciada pelo surgimento de novos artigos e edições sobre a produção poética de Pessoa noutras línguas, que “quase” obrigaram o pessoano a não se esquecer que esta existia. “Escolhi incluir poemas escritos noutras línguas porque achei que era importante mostrar também essa faceta da obra pessoana”, afirmou, dando como exemplo de estudos e edições recentes o número especial da revista Portuguese Literary and Cultural Studies, intitulado “Fernando Pessoa as English Reader and Writer”, da Pessoa Plural, “Inside the Mask — The English Poetry of Fernando Pessoa”, e o livro de poemas franceses organizados por Patrício Ferrari, Poémes Français.

Ainda que esta não seja uma edição crítica, Jerónimo Pizarro fez questão de incluir fac-símiles “porque queria aproximar o leitor do espólio pessoano e dos muitos arquivos e coleções onde há autógrafos pessoanos”. “Sempre achei que nem o liceu nem a universidade portugueses dirigiram os alunos para esses lugares de pouso e que era uma pena que os alunos, no geral, perante um autor ainda amplamente inédito, como Pessoa, não fossem eles próprios às fontes e não criassem desde jovens uma noção de património menos abstrata.” Além disso, “alguns dos fac-símiles incluídos são de poemas ou testemunhos há poucos anos revelados”.

Os outros “eus”

O último capítulo, intitulado “Os outros”, é dedicado aos heterónimos menos conhecidos de Fernando Pessoa e está intimamente ligado a trabalhos anteriores de Pizarro, como a antologia Pessoa múltiple, mas sobretudo ao livro Eu Sou Uma Antologia. Organizado pelo colombiano com Patrício Ferrari, este inclui informação sobre 136 “autores fictícios” de Pessoa, incluindo aqueles que surgem representados nesta Antologia Mínima e que podem constituir uma surpresa para alguns leitores. “Digamos que é um convite a ler este último livro [Eu Sou Uma Antologia] e a ter presente que uma proposta de antologia passa por Pessoa mas também pelos seus muitos outros eus. Pessoa não foi apenas quatro grandes poetas, embora isso já fosse excecional, mas muitos poetas, como Alexander Search”, exemplificou Pizarro.

Este heterónimo surge naturalmente representado na antologia, juntamente com o também conhecido Charles Robert Anon. Mas no capítulo final da Antologia Mínima também surge o Dr. Pancrácio, o Joaquim Moura-Costa, o Vicente Guedes e o Dinis da Silva. Ainda que Guedes seja muito conhecido enquanto primeiro autor do Livro do Desassossego, a sua faceta de poeta é certamente menos famosa, aqui representada pelo poema “Nunc est bibendum…”, que foi buscar o título a uma citação de Horácio que quer dizer “É a hora para beber”, como explica Pizarro nas suas notas. Também surpreendente é o poema de Pancrácio, um dos decifradores e criadores de charadas d’O Palrador, o jornal criado e dirigido por Pessoa em 1902, ano em que foi composto o poema “Sonho”, que vem nesta edição. E em relação a Joaquim Moura-Costa e Dinis da Silva?

Deste último pouco sabe além de ter sido o “autor conjetural de quatro poemas”, manuscritos a 24 de setembro de 1923, “embora só um dos quatro lhe tenha sido explicitamente atribuído” — “Eu”, escolhido para esta edição. O seu nome surge ainda referido “num plano algo confuso” da Athena, como explicaram Jerónimo Pizarro e Patrício Ferrari em Eu Sou Uma Antologia, ainda que nunca tenha chegado a ser publicado nenhum dos seus poemas na revista.

Joaquim Moura-Costa é anterior a Silva, tendo produzido a sua curta obra literária entre 1909 e 1910. “Colaborador previsto dos jornais O Phosporo e O Iconoclasta”, também criações de Pessoa, assumiu “a autoria de alguma poesia satírica, antimonárquica e anticlerical, talvez a mesma que teria assinado uma figura como o Sr. Pantaleão”, também de acordo com Pizarro e Ferrari. O poema escolhido para esta “antologia mínima”, “Origem metafísica do Conde de Samodães”, corresponde a esta descrição: escrito em 1909, faz troça de Francisco de Azeredo Teixeira de Aguilar, conde de Samodães, dirigente do jornal católico A Palavra. Numa outra versão do texto, o poeta “faz mofa do padre José Lourenço de Matos, monárquico e diretor de um importante diário católico batizado Portugal”.

“O meu sonho é ter leitores que coloquem o livro num piano”

Todos estes poemas nada mais fazem do que apresentar os diferentes lados de um Pessoa que “sempre foi pessoas e cada vez mais”. Porque, como questionou Pizarro no prefácio da Antologia Mínima: “Quão crescentemente múltiplo não será…”? É neste sentido que surge a dedicatória desta antologia, dirigida a Júlio Resende, líder da banda Alexander Search, que surgiu depois do músico e compositor ter lido uma antologia da poesia inglesa de Pessoa, chamada No Matter What We Dream.

“Inspirado nessa antologia, que tem poemas com uma carga juvenil muito marcada, decidiu criar uma banda de rock depois de ter começado, numa espécie de ‘dia triunfal’, a compor uma canção e depois outra e depois outra…”, relatou Pizarro, explicando que, para si, “a proposta da banda Alexander Search, que tem como vocalista Salvador Sobral, “sintetiza muitas coisas ideais”.

“O Júlio já tinha lido Pessoa, mas Pessoa ainda o podia surpreender, ao ponto de levá-lo a dias de criação artística total…”, afirmou Jerónimo Pizarro. “O meu sonho é ter leitores que coloquem o livro num piano, por assim dizer. Isto é, leitores que não deem Pessoa por já lido e arrumado na prateleira, e para os quais Pessoa ainda possa representar uma revelação. Esses leitores poderão ter lido Pessoa antes ou não, mas vão ler a antologia como quem se prepara para uma descoberta, como quem pode transformar aquilo que descobre. Que Pessoa inspire a criação de bandas é um facto que dá para pensar e sorrir.”