“Pela primeira vez a Comissão [Europeia] vê-se obrigada a pedir a um país do zona Euro para rever a sua proposta de Orçamento do Estado. Mas não vemos outra alternativa a não ser pedir às autoridades italianas que façam isso mesmo”. A frase é do vice-presidente da Comissão Europeia, com a pasta do Euro, o letão Valdis Dombrovskis. Dito de outra forma: Bruxelas “chumba” o Orçamento italiano e a proposta segue mesmo para trás.

O governo de Giuseppe Conte — que resulta de uma coligação entre o movimento anti-sistema Cinque Stelle (Cinco Estrelas) e os nacionalistas de extrema-direita do partido Liga — tem agora três semanas para apresentar um novo, que satisfaça Bruxelas. Mas o que significa e como chegamos a este ponto, a uma decisão inédita, mas já antecipada pelo próprio governo italiano e pelos observadores internacionais?

O que consta da proposta de Orçamento do Estado italiano para 2019? A começar, um défice de 2,4% do PIB

A intenção do novo governo italiano, inscrita na proposta de OE para 2019, foi a de aumentar o défice para 2,4% do PIB, para incorporar algumas das promessas da campanha eleitoral de março: rendimento mínimo para os desempregados, descidas de impostos, eliminação dos aumentos da idade de reforma, etc. O ministro da Economia italiano, Giovanni Tria, pensava poder conter esta percentagem nos 1,6% ou no máximo 2%, mas a decisão do governo italiano como um todo — que inclui elementos de ala mais dura como os vice-primeiros-ministros, o líder do Cinque Stelle, Luigi Di Maio, e o líder da Liga, Matteo Salvini — foi de inscrever um défice de 2,4% para 2019, repetindo-se a previsão para 2020 e 2021. O défice inscrito para 2018 tinha sido de 1,8%. A percentagem que consta na proposta para 2019 também é três vezes superior aos 0,8% de défice que o anterior governo italiano tinha previsto para o próximo exercício.

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Mas essa percentagem não fica abaixo das regras europeias?

Sim. Na verdade fica bastante abaixo do limite de 3% de défice inscrito nas regras da Zona Euro. Só que a Itália tem uma dívida enorme: cerca de 131% do seu PIB. É a segunda maior dívida da zona euro, segundo o Eurostat. Portugal é a terceira. O vice-presidente da Comissão Europeia, o letão Valdis Dombrovskis, explicou na conferência de imprensa desta terça-feira que a Itália arrisca-se a ficar presa à dívida e argumenta que, em 2017, Roma gastou em serviço da dívida o mesmo que gastou em Educação.
“À primeira vista pode parecer tentador quebrar as regras, pode dar uma ilusão de estar a ganhar a liberdade. É tentador curar a dívida com mais dívida, mas a certa altura a dívida torna-se demasiado  pesada”, acrescentou.
“Infelizmente, as clarificações (enviadas por Roma) não nos convenceram a mudar a nossa conclusão anterior, a de um não-cumprimento particularmente sério”, salientou Dombrovskis, acrescentando depois: “o governo italiano está a ir, conscientemente e abertamente, contra os compromissos que assumiu”.

Faz sentido o Governo italiano seguir esta via orçamental quanto ao défice (e quanto à receita fiscal)?

Pode fazer. O sistema bancário italiano está fortemente afetado pelo crédito mal-parado e isso significa que a sua capacidade de emprestar dinheiro tem diminuído. A quantidade e a composição da dívida italiana também significam que o programa de quantitative easing e as taxas de juro baixas do BCE tiveram menos efeitos positivos em Itália do que noutros países europeus, incluindo Portugal. Por isso, se a política monetária conduzida pelo Banco Central Europeu – quantitative easing e taxas de juro baixas – está a ter menos efeitos (e esta política até vai acabar), isso abre caminho a que o governo italiano argumente que precisa de uma política fiscal — mexendo nos impostos e influenciando o consumo — para gerar e aumentar a procura. Por essa via, estima o governo italiano, Itália poderia obter um crescimento maior, o que levaria a um aumento da receita fiscal e, assim, a uma redução do défice. Em parte (sem contar com o controlo apertado das contas públicas e as cativações) foi assim que Mário Centeno justificou o crescimento desde 2016 e os “brilharetes” no défice português.

A Comissão Europeia avisou logo o Governo italiano quando recebeu a proposta?

Sim, como é a norma. Após ter recebido a proposta de OE italiano, quase no final do prazo de segunda-feira, a Comissão Europeia enviou uma carta ao ministro da Economia italiano, Giovanni Tria, a pedir clarificações e a deixar alertas (fez o mesmo com Portugal). As preocupações de Bruxelas resumem-se em três pontos: a despesa pública prevista pelo governo italiano é demasiado alta, o défice estrutural — excluindo eventos únicos (one-off) e efeitos conjunturais — iria aumentar, em vez de diminuir, e a despesa pública italiana não iria descer em linha com as regras comunitárias. “Estes três fatores parecem apontar para um não-cumprimento particularmente grave face às obrigações de política orçamental que constam do Pacto de Estabilidade e Crescimento”, indicava a carta.
A Comissão explicou que a proposta de OE italiano prevê uma taxa de crescimento da despesa pública líquida de 2,7%, muito acima do permitido pela União Europeia, que é um aumento de 0,1%. O défice estrutural, de acordo com os cálculos de Bruxelas, vai crescer o equivalente a 0,8% do PIB no próximo ano, face a uma recomendação vinculativa dos ministros das Finanças, feita a julho, que obrigam Roma (e os restantes Estados-membros) a cortar o défice estrutural em 0,6% do PIB.
“Mais, com a dívida pública italiana em cerca de 130% do PIB, a nossa avaliação preliminar também indica que os planos de Itália não asseguram o cumprimento com a regra da dívida, que requer uma redução estável dos níveis da dívida no sentido do limite dos 60%”, podia ler-se na carta.
A Comissão Europeia também deixava no ar a ideia de que iria “chumbar” a proposta, ao considerar que a diferença entre os défices previstos para este ano e para 2019 “não tinha precedentes na história” das regras orçamentais da UE. Na prática, dizia Bruxelas, tal poderia significar que a Itália não será capaz de reduzir a sua dívida pública, como prometido.

Itália já estava à espera do “chumbo” de Bruxelas?

A resposta também é sim. No domingo, uma fonte do governo italiano citada pela Reuters já indicava que Roma estava à espera que Bruxelas lhe pedisse, pela primeira vez desde que a Comissão tem poderes mais fortes sobre os orçamentos dos Estados-membros (2013), para rever a sua proposta. A mesma fonte salientou que o governo italiano reuniu-se em conselho de ministros no domingo (três dias depois do envio da carta de Bruxelas), um encontro no qual o ministro da Economia italiano, Giovanni Tria, e o primeiro-ministro, Giuseppe Conte, terão tentado — em vão — conseguir uma redução do défice para 2019. A mesma fonte também deixou em aberto a possibilidade de Roma e a Comissão Europeia chegarem a um acordo sobre o défice nas três semanas de negociações que se seguiriam ao chumbo já esperado. Mas não disse nada sobre o que fazer quanto à dívida italiana, que ascende a 2,3 triliões de euros, uma das maiores do Mundo. Esse nível de dívida — na zona euro só a da Grécia é maior — torna o país vulnerável e, pior, torna-o uma possível fonte de contágio para outros países da zona euro.
O que pensa a Comissão sobre isto? Acha que a Itália se pode tornar numa nova Grécia? Não. O vice-presidente Valdis Dombrovskis desaromatizou na semana passada os receios de um “crash” económico na Europa relacionados com a Itália, afirmando que o orçamento italiano não implica uma “ameaça do estilo da Grécia” para a estabilidade financeira do bloco europeu.

E agora, o que acontece?

As primeiras declarações do governo italiano ao “chumbo” de Bruxelas soaram um pouco a bravata. Luigi Di Maio, vice primeiro-ministro italiano e dirigente do movimento Cinco Stelle, disse que a proposta italiana “é a primeira que não agrada à União Europeia”. “Não surpreende: é o primeiro que é escrito em Roma e não em Bruxelas. (…) Com os danos que já provocaram, certamente que não poderíamos continuar com as suas políticas. Vamos continuar a dizer à Comissão Europeia o que queremos com respeito. Mas a Comissão tem de mostrar o mesmo respeito pelo povo italiano e pelo governo que o representa hoje”, apontou Di Maio. Já em antecipação ao “chumbo”, mas minutos antes de ser anunciado, o primeiro-ministro italiano, Guiseppe Conte, avisou que o seu governo não tem um “plano B” orçamental que substitua a versão chumbada por Bruxelas. “Disse o que o défice de 2.4% do PIB é o limite. Posso dizer que será o nosso teto”, afirmou, indicando assim não estar disposto a grandes diminuições na despesa público ou grandes aumentos de impostos que permitam um défice mais baixo do que o estimado nesta proposta orçamental. Conte afirmou estar disposto a “operar uma revisão dos gastos, se necessário”, mas avisou que será sempre curta. O seu modelo de saneamento das contas públicas passa pelo “crescimento económico” e por “tirar-nos da armadilha da dívida”.

Sim, mas o que vai acontecer?

Agora, segundo a expectativa dos italianos, seguem-se três semanas de negociações. No final, caso Itália não altere em nada a sua proposta (e no entender de Bruxelas continue numa rota de incumprimento) a Comissão Europeia pode, teoricamente, aplicar sanções financeiras. Mas tal nunca foi feito, porque uma decisão como esta (chumbar uma proposta de OE de um Estado-membro) nunca tinha sido tomada, por isso toda a gente está a navegar em águas desconhecidas. Apesar do ambiente tenso, nenhum dos responsáveis do Governo italiano admite a saída de Itália do Euro ou da UE. Têm vindo a ser questionados sobre isso e a resposta tem sido sempre a mesma: “Não há, nem haverá, qualquer intenção de sair da União Europeia ou do sistema da moeda única”, disse o vice-primeiro-ministro Matteo Salvini.
Mas na manhã desta terça-feira surgiu mais um dado, algo bizarro, a fazer lembrar a Grécia nos tempos em que enfrentava a União Europeia.  O jornal italiano La Stampa noticiou que o mesmo Salvini pediu ao primeiro-ministro Giuseppe Conte que discuta com o presidente russo, Vladimir Putin, a possível compra de títulos da dívida italiana por parte da Rússia. Conte chegou esta terça-feira a Moscovo, onde na quarta-feira se encontra com Putin. Ou seja, Conte chegou a Moscovo no mesmo dia em que já se esperava que Bruxelas anunciasse o “chumbo”. De acordo com o jornal, “Salvini dá preferência à Rússia na compra de títulos italianos, uma vez que o BCE já não protege” a Itália.
Há semanas o líder do governo italiano “passou a mão pelo pêlo” do urso russo, defendendo que a UE abrande as sanções europeias à Rússia (ainda por causa da anexação da Crimeia). Aguarda-se o que dirá Giuseppe Conte após o encontro com o presidente russo, desta vez sobre dívida italiana.