Se o FC Porto partiu de Portugal com uma hora de atraso e chegou já com o dobro do delay à unidade hoteleira onde permaneceu concentrado até ao encontro com o Lokomotiv Moscovo, o conjunto russo também teve o seu percalço… e um pouco mais chato: por causa do trânsito (habitualmente caótico, confirma-se) na capital, os convocados e restante equipa técnica tiveram de arranjar uma solução alternativa e acabaram por apanhar o metro para o estádio. Cada um com o seu problema, cada um com a sua forma de “desenrascar”. Mas quem não facilitou e chegou mesmo a tempo foi Ivan, que dificilmente poderia pedir um jogo com tantas coisas memoráveis como aquele que aconteceu esta noite na Rússia.

Autocarro do Lokomotiv Moscovo ficou preso no trânsito e comitiva foi para o estádio de metro

Ivan Likhmanov tem cidadania russa, vive em Krasnodar e é sócio do FC Porto. E fanático, mesmo. Ao contrário do que se possa pensar, as principais equipas portuguesas têm mesmo fãs um pouco por todo o mundo. No caso dos dragões, e até por aquilo que se percebe a nível de redes sociais, as grandes franjas além dos países lusófonos ou que falam a mesma língua concentram-se na Colômbia e no México, também pelos inúmeros jogadores que foram brilhando em Portugal ao longo dos últimos anos. Mas há exceções e o Record chegou à fala com uma delas, que não disfarçava a ansiedade com esta noite.

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Ficha de jogo

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Lokomotiv Moscovo-FC Porto, 1-3

3.ª jornada do grupo D da Liga dos Campeões

Lokomotiv Stadium, em Moscovo

Árbitro: Bobby Madden (Escócia)

Lokomotiv Moscovo: Guilherme; Ignatyev, Kvirkvelia, Krychowiak, Höwedes; Denisov, Barinov; Aleksey Miranchuk, Anton Miranchuk, Manuel Fernandes (Zhemaletdinov, 66′) e Éder (Lysov, 81′)

Suplentes não utilizados: Kochenkov, Idowu, Tarasov, Rotenberg e Tugarev

Treinador: Yuri Semin

FC Porto: Casillas; Maxi Pereira, Felipe, Éder Militão, Alex Telles; Danilo, Herrera, Óliver Torres (Bazoer, 83′); Corona (André Pereira, 69′), Marega e Brahimi (Adrián López, 82′)

Suplentes não utilizados: Vaná, Chizodie, Sérgio Oliveira e Hernâni

Treinador: Sérgio Conceição

Golos: Marega (26′, g.p.), Herrera (35′), Anton Miranchuk (38′) e Corona (47′)

Ação disciplinar: cartão amarelo a Éder (25′), Óliver Torres (28′), Barinov (50′), Corona (59′) e Ignatyev (84′); cartão vermelho direto a Kvirkvelia (76′)

“O FC Porto já jogou na Rússia algumas vezes desde que comecei a apoiar este grande clube mas nunca pude ir ao estádio ver. Agora a minha vida mudou, posso gastar algum dinheiro e estou pronto para ir apoiar o clube do meu coração. Quando vi que o FC Porto ia jogar com o Lokomotiv, agradeci a Deus porque espero por este momento há muito tempo. Vou levar a bandeira que eu próprio projetei com ajuda de uma amiga. No ano passado levei essa bandeira numa excursão pela Crimeia”, comentou, ao mesmo tempo que admitiu o contacto de outros adeptos azuis e brancos que pediam que funcionasse como guia ou faziam variadas perguntas sobre o país. “Vai ser uma noite inesquecível!”, reforçou. E foi mesmo.

Na véspera, Ivan já tinha recebido, em conjunto com um bilhete para o jogo, uma camisola autografada por todos os jogadores das mãos do capitão Herrera. A terceira vez que visitava Moscovo estava a ser mágica e melhor ficou quando os comandados de Sérgio Conceição confirmaram uma regra dos dragões este século – tudo o que são jogos na capital, acabam em vitória; quando os mesmos foram fora da cidade, houve empates e derrotas à mistura. E houve dois fenómenos que acabaram por se cruzar neste jogo: por um lado, o palpite do adepto russo sobre quem marcaria para os azuis e brancos (acertou em cheio); por outro, a festa dos mexicanos em Moscovo, tal e qual como no Mundial onde houve autênticas invasões à Praça Vermelha. Ainda assim, houve muitos mais pontos com a sua história que Ivan guardará na memória.

Ponto 1. Sem Aboubakar, Soares e Otávio (que ainda viajou mas não recuperou a tempo do problema físico que o tem condicionado), Sérgio Conceição apresentou-se com um onze mais “conservador”, reforçando o meio-campo com Óliver Torres e colocando Corona na ala direita para apoiar mais de perto Marega, mais no eixo do ataque. E entrou melhor nos minutos iniciais, percebendo o benefício que tinha em avançar as zonas de pressão para perto da primeira fase de construção dos russos – que perdiam bolas atrás de bolas. No entanto, já depois de um remate de Aleksei Miranchuk por cima, viu o Lokomotiv beneficiar de uma grande penalidade por falta de Alex Telles (com dúvidas sobre se foi dentro ou fora da área). Manuel Fernandes, que andava com 100% de eficácia, permitiu a defesa a Iker Casillas. E foi esse lance aos 10′ que segurou os azuis e brancos ao jogo.

Ponto 2. O guarda-redes espanhol já não travava uma grande penalidade na Liga dos Campeões desde 2007, num Real Madrid-Lazio. Mas até aqui este país com frio quando em Portugal andamos ainda de camisa e temperatura amena parece dar sorte aos dragões: por um lado, o único penálti defendido por um guardião dos azuis e brancos tinha sido por Helton na Rússia; por outro, todos os castigos máximos não convertidos em partidas do FC Porto na Liga milionária (três em 15) foram em encontros em solo russo e com caras conhecidas: o central do CSKA Ignaschevich, o avançado ex-Zenit (e FC Porto) Hulk e Manuel Fernandes.

Ponto 3. Os dragões tentavam variar entre a exploração da profundidade com a velocidade de Marega (manobra complicada por não haver muito espaço nas costas para que o maliano explodisse) com uma construção mais paciente e passando ao lado da habitual verticalidade sempre presente nas manobras ofensivas. Maxi Pereira e sobretudo Alex Telles tiveram inúmeras incursões pelos flancos mas na área havia pouco mais do que um deserto de opções para o último toque. No entanto, uma falta de Éder sobre Felipe num canto acabou por desbloquear finalmente o marcador: Marega foi chamado à conversão, não deu hipóteses a Guilherme – que ainda acertou o lado – e inaugurou o marcador naquele que foi o primeiro golo no FC Porto de penálti. E logo daquele que era a grande referência de Ivan, que já entoava antes do encontro a música dedicada ao dianteiro maliano.

Ponto 4. Como referimos aqui no Observador ao longo do Mundial, se existiam adeptos que tinham tomado conta da Rússia eram os mexicanos, sobretudo depois da surpreendente vitória alcançada no Luzhniki Stadium frente à Alemanha, a primeira grande surpresa da prova. Esta noite, mesmo sem terem feito jogos do outro mundo, foram eles que voltaram a reinar em Moscovo (só faltavam os sombreros, tantas vezes requisitados para as selfies da ordem entre adeptos do futebol no Campeonato do Mundo): Corona iniciou e concluiu uma jogada de envolvimento pela direita com uma finta na linha para fora com cruzamento e Herrera, a surgir de trás sem marcação nas costas de Marega, aproveitou a autoestrada para cabecear para o 2-0 (35′).

Ponto 5. Se no ataque as coisas estavam a correr bem a nível de eficácia, com dois golos noutros tantos remates enquadrados com a baliza de Guilherme, lá atrás a habitual segurança defensiva dos azuis e brancos tinha buracos anormais por influência dos irmãos gémeos Miranchuk, Anton e Aleksei, verdadeiros quebra cabeças nas alas e movimentos interiores. Ainda assim, se o Lokomotiv reentrou no jogo com um golo pouco depois do 2-0, também contou com a ajuda de Éder Militão, que teve um dos raríssimos erros num corte imperfeito e deixou a bola à disposição para uma insistência concluída com sucesso na área, perante os protestos de Casillas perante a permissividade de um setor que é dos mais fortes da equipa (38′).

Ponto 6. Sem mexer em jogadores, Yuri Semin e Sérgio Conceição fizeram alguns ajustes em termos táticos para o segundo tempo, não alterando estruturas mas tentando inverter dinâmicas. Mais uma vez, voltou a cair para os azuis e brancos: Brahimi, que está com um início de temporada com muito menos influência nos números da equipa dos que em épocas anteriores, arrancou ainda no seu meio-campo numa transição rápida perante a total passividade dos russos na recuperação, fez o passe de rutura para Corona e o mexicano apontou o 3-1 com um remate forte descaído na direita (47′). O extremo marcou o terceiro golo em 2018/19, tantos como no ano passado. Guilherme sofreu o terceiro golo da noite sem ter conseguido fazer uma defesa. E o encontro acabou por ficar quase sentenciado porque, menos de dez minutos depois, um golo de Éder após defesa incompleta de Iker Casillas foi mal anulado (o português estava em linha no momento do primeiro remate), impedindo o 3-2.

Ponto 7. Danilo, que esteve largos meses afastado da equipa após grave lesão, voltou a ser aquele polvo que joga por dois médios, batendo também o recorde de recuperações de bola nesta terceira jornada da Champions; Óliver Torres, com aqueles momentos de classe que só ele consegue arrancar no meio-campo azul e branco, vestiu o fato de operário e destacou-se também nas ações defensivas. O Lokomotiv ia tentando explorar mais erros da defesa portista mas os dois elementos que estavam à sua frente foram impedindo grandes incursões e o terceiro, Herrera, ainda conseguiu “sacar” um cartão vermelho ao central Kverkvelia, depois de um erro monumental sendo a última unidade da defesa. O vencedor estava encontrado, o resultado não mais voltaria a mexer.

Numa noite que teve portugueses em destaque pelos melhores e piores motivos noutros jogos da Champions (Raphael Guerreiro entrou e marcou na goleada do B. Dortmund ao Atl. Madrid, Mário Rui fez um autogolo no empate a dois do Nápoles com o PSG arrancado com um golo de Di María no final), Manuel Fernandes e Éder estiveram diretamente ligados ao triunfo do FC Porto diante do Lokomotiv, carimbado pela dupla de mexicanos nos dragões que tomou conta de Moscovo como no Mundial. E Ivan já leva algumas histórias para contar no regresso a Krasnodar, a cerca de 1.200 quilómetros do local onde os azuis e brancos deram um passo importante para a qualificação para os oitavos de final da Liga dos Campeões.