Ainda me lembro do ar de frete do funcionário da loja Valentim de Carvalho do Rossio. Os olhos reviraram-se até à nuca quando despejei o conteúdo do meu mealheiro em cima do balcão, mais moedas de 25 do que de 100 escudos, contas mais demoradas que as do Orçamento de Estado Retificativo. Tinham sido meses a poupar o troco de quando ia fazer recados à minha mãe, para assim conseguir comprar uma biografia dos Queen, em inglês, que li e reli com a ajuda de um dicionário. Eu tinha 11 anos. Os posters no meu quarto eram do Bart Simpson, de uma boneca de ar adorável da Sarah Key e do Freddie Mercury.

Com os defeitos que possa ter, “Bohemian Rhapsody” tem logo à partida um mérito: o de ir conquistar os outros pré-adolescentes que continuam, década atrás de década, a colocar os Queen nas suas playlists. Contam-se pelos dedos das mãos as bandas que conseguem, apenas pelo carácter inabalável dos seus êxitos, continuar a conquistar públicos com a rapidez e solidez dos britânicos que se juntaram em 1973 e acabaram, na sua versão original, com a morte de Mercury em 1991. Filhos e sobrinhos da minha geração pedem para ir ver o filme, muitos deles hipnotizados por um trailer que percebeu que o que interessa aqui, o que vai sempre interessar, são as músicas, ainda reconhecíveis ao primeiro acorde. Mesmo quem renega os Queen para a prateleira do kitsch tem memórias de vida ligadas a um “We Will Rock You” ou a um “Don’t Stop Me Now”. Os Beatles chegaram polemicamente a proclamar-se mais populares que Jesus Cristo; os Queen têm uma omnipresença digna de um Deus barbudo.

[o trailer de “Bohemian Rhapsody”:]

Os Queen foram a minha banda preferida de toda a adolescência, numa altura em que talvez não fosse muito fixe alguém da minha idade gostar tanto deles. No rescaldo da morte de Freddie Mercury, tinha eu 10 anos acabados de fazer, todos os especiais e homenagens que surgiram apresentaram-me a obra e as personas, às quais me converti em menos de um Pai Nosso. Os adultos achavam adorável, e eu ficava com o status social de quem podia beber um conhaque em vez de um Capri Sonne, uma erudita com acne quanto baste que achava os Guns’n’Roses um bocado tontinhos.

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Em 2018 outras bandas já tomaram há muito o trono que foi dos Queen entre os meus 10 e os meus 14 anos. Não me lembro qual foi a última vez que meti um álbum a tocar (apesar de às vezes, quando preciso de exercitar o cérebro, voltar a passar em revista a lista da discografia para ver se ainda a sei de cor: Queen de 1973, Queen II de 1974, Sheer Heart Attack de 1974 e por aí em diante), mas é-me completamente impossível ouvir uma música sem sing-a-long completo, solos de guitarra recriados com onomatopeias absurdas incluídos. Assisti, impávida e serena, à Abbazização do grupo londrino: de foleiro a música de festa; de démodé a êxito recorrente.

“Bohemian Rhapsody”: os Queen e Freddie Mercury em versão oficial, expurgada e fantasiosa

A música que dá título ao filme, “Bohemian Rhapsody”, tem ciclicamente fases com décadas de disparidade onde volta a entrar nos tops. Uma dessas vezes é subtilmente abordada no meu detalhe preferido do filme. Mike Myers interpreta um ficcional executivo discográfico que não acredita no sucesso de um single com seis minutos que inclui ópera e palavras desconexas. As suas palavras são algo como: “Não é uma música que adolescentes no carro vão meter mais alto”. Ora Mike Meyers é um dos protagonistas desta mítica cena de “Wayne’s World”, filme de 1992 — cena responsável pelo famoso meme de redes sociais que reza “se o Bohemian Rhapsody começar a tocar e a pessoa ao teu lado não desatar a cantar, deixa de lhe falar; não precisas desse tipo de negatividade na tua vida”.

O filme tem sido trucidado pela crítica, que elogia Rami Malek e a sua prótese dentária e pouco mais. A maioria das apreciações vai na mesma direção: é uma versão Disney de Freddie Mercury. Ora Mercury foi, de facto, o meu Rato Mickey, o meu príncipe da Disney, o ídolo de infância. E por isso, a minha reação após o filme foi: é, de facto, um fairytale. E depois?

“Bohemian Rhapsody” deixa a fã de música feliz e a fã de cinema aborrecida. Se é uma obra prima da sétima arte? Longe, galaticamente longe disso – tem cenas mesmo a roçar o palerma, demasiado explicadas ou forçadas. Mas citando outra banda que nem tem nada a ver com o caso, o filme é “bem piroso e lamechas como o amor deve ser”. Durante mais de duas horas, o público que enchia a sala onde vi o filme estava genuinamente feliz e entretido e até galvanizado. É um filme feito para os fãs da música, os de sempre e os que agora vão ganhar embalo e procurar os Queen no Spotify. Não vai convencer quem não gosta, porque o filme se está perfeitamente a marimbar para eles – é a celebração da música de um grupo que sempre se considerou genial e que não é agora que vai levar lições de humildade.

A minha vida sem Freddie Mercury

Mesmo assim, os fãs com noção de cronologia da banda vão ter várias vezes de respirar fundo e pensar que é só um filme. O guionista Anthony McCarten já tinha mostrado que não estava cá para deixar factos fidedignos se meterem no seu caminho para contar uma história mainstream e sentimental. “Darkest Hour”, o seu filme de 2017 sobre a posição de Winston Churchill aquando da entrada do Reino Unido na Segunda Guerra Mundial, tem uma cena inenarrável na sua falsidade, na qual o primeiro ministro anda pelo metro de Londres a perguntar aos cidadãos o que pensam de Hitler. Convenhamos que o facto de colocar “We Will Rock You” em 1980 em vez de 1977 é ligeiramente menos grave. Mesmo assim, é difícil não ficar irritado com a falta de preciosismo na cronologia de bigodes e cortes de cabelo. Levo a estética muito a sério.

“Bohemian Rhapsody” não será, certamente, o único filme que se vai fazer sobre os Queen. Caramba, há sete “Velocidade Furiosa”, pode haver, sem problemas, sete filmes com diferentes abordagens à vida e obra de uma das bandas mais incontornáveis de sempre. Esta é a versão feelgood, com pretensões simples que no fundo sempre foram as pretensões da banda: deixar o público que gosta das suas músicas feliz. Outros filmes virão, nos quais o guitarrista Brian May e o baterista Roger Taylor não serão produtores executivos e não meterão o bedelho. Terão o seu dark side em exibição, mais cedo ou mais tarde. Para já, é abraçar sem complexos a tal versão Disney. Em dias maus, é o que nos faz falta.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa